A loucura chegou aqui e parou
#103 – São Paulo, 6 de fevereiro de 2025
Dissidência, rebelião e tumulto generalizado
Fulgura frango*
www.hortifruti.org
“Meus silêncios não me protegeram.
O silêncio de vocês não as protegerá.”
(Audre Lorde)
“A audácia, sempre a audácia”
(Georges-Jacques Danton)
:: EDITORIAL :
Enquanto ursos depredavam nossas escrivaninhas, a editora-chefe deste periódico resolveu falar publicamente sobre o piano que carregava nas costas por mais de uma década.
O episódio saiu no último dia 16 de janeiro no podcast Rádio Novelo Apresenta. Sobreveio um tumulto generalizado. As amigas apareceram com porretes, para o caso de haver necessidade. O fantasma do cancelamento foi invocado, mas não pôde ser encontrado até o fechamento desta edição. E apesar de tudo, a leveza chegou.**
Para quem ainda não ouviu, segue o link.
E a recomendação de que falem, sim — falem muito.
* “Eu despedaço os raios”, em latim. Inscrição em sinos de igrejas.
** O que não ainda chegou foram as desculpas, quase todas, que devem estar retidas na alfândega de Curitiba aguardando liberação.
:: INCÔMODO ::
Rebecca Solnit, A mãe de todas as perguntas
Seria incômodo, e muitos falam da comodidade como um direito, mesmo quando — principalmente quando — essa comodidade se funda sobre o sofrimento e o silenciamento de outros.
:: AINDA URSOS ::
Sam Knight, “Giant Pandas”
Me faltam palavras para descrever esta peça literária.
https://www.theguardian.com/world/2015/aug/25/everything-about-panda-sex-edinburgh-zoo-long-read
:: O FUTURO ::
Alia Trabucco Zeran, Clean
Os pais dela tinham um restaurante, eu já mencionei isso? Chamava-se El Porvenir. Isso mesmo, um restaurante chamado O Futuro. Às vezes, minha mãe tinha de limpar o restaurante no fim de semana, e dizia, com tristeza: “No domingo, tenho que sair para limpar O Futuro”.
[Her parents owned a restaurant, did I mention that already? It was called El Porvenir. That’s right, a restaurant called The Future. Sometimes my mama would have to clean there on the weekend, and she’d say, glumly: On Sunday I have to go and clean The Future.]
:: TRÍVIA ::
Matthew Hutson, “Persuading the Body to Regenerate its Limbs”
“Vocês podem ou não saber que crianças humanas com menos de 7 a 11 anos de idade são capazes de regenerar as pontas dos dedos”, ele disse à plateia.
[“You may or may not know that human children below the age of approximately seven to eleven are able to regenerate their fingertips,” he told the audience.]
:: AGÊNCIA ::
Kate Manne, Down Girl: The Logic of Misogyny
Pois a denúncia pode ser uma expressão de agência e um ato de subversão, na medida em que afasta a narrativa moral das versões dominante e padrão e torna a situação de alguém saliente para aqueles que, de outra forma, permaneceriam alheios. Terceiros podem simpatizar ou não; eles podem, de fato, se tornar mais, em vez de menos, hostis e ressentidos. Mas, pelo menos, eles terão conhecimento da realidade da lesão, ou do fato da dominação contínua. E isso pode ser importante, muito importante, para as pessoas que foram vitimadas.
[For coming forward can be an expression of agency and an act of subversion, insofar as it wrestles the moral narrative away from the dominant and default versions, and makes one’s situation salient to those who would otherwise remain oblivious. Third parties may sympathize or not; they may in fact become more, rather than less, hostile and resentful. But at least they will be privy to the reality of the injury, or the fact of the ongoing domination. And this can matter, quite properly, to people who have been victimized.]
:: A LOUCURA ::
Monteiro Lobato, O picapau amarelo
Emília: “Acho D. Quixote o suco dos sucos. A loucura chegou ali e parou.”
:: MATAR O ANJO DA CASA ::
Hermione Lee, Virginia Woolf
Quando ela [Virginia Woolf] escreveu uma retrospectiva desses primeiros anos de escrita, inventou a famosa imagem do “Anjo da Casa” (em homenagem ao poema de Coventry Patmore), a mãe/editora vitoriana que deslizava atrás dela em saias farfalhantes quando ela começava a resenhar um livro de um homem famoso, lembrando-a de ser charmosa, terna e educada — e a quem a jovem escritora teve de matar, arremessando-lhe o tinteiro, para que pudesse encontrar sua voz. “Ela demorou para morrer.” Essa editora fantasma era uma censora interna em conluio com as atitudes sociais paternalistas em relação às escritoras.
[When she came to write a retrospect of these first writing years she invented the famous figure of the Angel in the House (named after Coventry Patmore’s poem), the Victorian mother/editor who would slip behind her in rustling skirts as she began to review a book by a famous man, and remind her to be charming, tender and polite – and whom the young woman writer had to kill, by throwing the inkpot at her, before she could find her voice. ‘She died hard.’ This phantom editress […] was an inner censor in collusion with paternalistic social attitudes to women writers.]
:: MAIS ESCRITORES ::
Kathryn Schulz, “What Do We Hope to Find…?”
Por desconhecer a arte da fotografia e ser fisicamente incapaz de carregar muito equipamento, [Sylvain] Tesson faz poucas contribuições práticas para a expedição: seu trabalho, ele escreve, era “não espirrar se o leopardo-das-neves aparecesse”.
[Being ignorant of the craft of photography and physically unable to carry much gear, Tesson makes few practical contributions to the expedition: his job, he writes, was “not to sneeze if the snow leopard appeared.”]
:: PROTEÇÃO UNILATERAL ::
Rebecca Solnit, A mãe de todas as perguntas
Um aspecto complicado do abuso e do assédio é a ideia de que a traição não está no crime, e sim na revelação do crime. Não se espera que você vá falar. Os abusadores muitas vezes se supõem donos do privilégio de exigir o silêncio dos abusados e de haver uma proteção unilateral.
:: NOVIDADES ::
Clarice Lispector, Todas as cartas
No mais, tudo igual. Pedrinho na escola, falando inglês; a última mania dele é não querer passar nem a dois metros de um lugar com lama, “para não sujar a sombra”.
:: BALÉ DO HOMICÍDIO ::
David Simon, Homicide
E assim, recomeça um balé noturno e sem graça, com as testemunhas deslizando umas após as outras sob o brilho desbotado da iluminação de tubo, cada uma ladeada por um detetive cansado e impassível segurando café preto e formulários em branco suficientes para registrar a próxima rodada de meias-verdades. As páginas são agrupadas, rubricadas e assinadas, os copos de isopor são enchidos novamente e os cigarros são trocados até que os detetives se reúnam novamente na sala do esquadrão para comparar as anotações e decidir quem está mentindo, quem está mentindo mais e quem está mentindo mais ainda.
[And so a graceless, nocturnal ballet resumes, with witnesses gliding past one another beneath the washed-out glare of tube lighting, each flanked by a tired, impassive detective cradling black coffee and enough blank statement forms to record the next round of half-truths. Pages are collated, initialed, and signed, Styrofoam coffee cups are refilled and cigarettes bartered until the detectives again assemble in the squadroom to compare notes and decide who’s lying, who’s lying more, and who’s lying the most.]
:: ALIÁS ::
Sarah Ruhl, 100 Essays I Don’t Have Time to Write
Quando alguém se depara com uma pergunta sem resposta, talvez seja melhor divagar. Eu já quis ser uma pintora de retratos.
[When one is faced with an unanswerable question, it is perhaps best to digress. I once wanted to be a portrait painter.]
:: BIOGRAFIA ::
Casey Cep, “The Oddballs and Odysseys of Charles Portis”
Ele se mudou para Manhattan e publicou reportagens sobre um morador do Brooklyn que tinha um leão de estimação, sobre a convenção nacional de barbeiros e sobre seu fracasso com o “Plano de cinco dias para parar de fumar” no Bates Memorial Medical Center, em Yonkers.
[He moved to Manhattan and filed features about a Brooklynite with a pet lion, the National Barber Show convention, and his own failures with the “Five-Day Plan to Stop Smoking” at the Bates Memorial Medical Center in Yonkers.]
:: TUMULTO GENERALIZADO ::
Barbara Ehrenreich, Had I Known
Dissidência, rebelião e tumulto generalizado continuam sendo o verdadeiro dever dos patriotas.
[Dissent, rebellion, and all-around hell-raising remain the true duty of patriots.]
:: RESPONSABILIDADE PESSOAL ::
Kate Manne, Down Girl: The Logic of Misogyny
Tudo isso é para dizer que a misoginia torna as pessoas tão irracionais, tão inclinadas a se envolverem em racionalizações post hoc e tão carentes daquilo que muitos apregoam e pretendem considerar crucial, ou seja, a responsabilidade pessoal (um conceito filosófico complicado, mas o ponto aqui é a consistência), que isso me tornou bastante pessimista sobre argumentar com as pessoas e fazê-las levar a misoginia a sério.
[All of this is to say that misogyny makes people so irrational, so inclined to engage in post hoc rationalization, and so lacking in that thing that many tout and purport to think crucial, namely personal responsibility (a tricky philosophical concept, but the point here is one of consistency) that this has made me pretty pessimistic about reasoning with people to get them to take misogyny seriously.]
:: UMA DIFICULDADE ::
Reiner Stach, Kafka: The Years of Insight
Kafka cerrava os dentes, exercia o autocontrole, certificava-se de cobrir seus pontos sensíveis e até recorria ao oficialês quando ficava magoado: “Em sua última carta, você disse que havia uma imagem anexada. Não havia. Isso representa uma dificuldade para mim.”
[Kafka gritted his teeth, exercised self-control, made sure to cover his sensitive spots, and even resorted to officialese when he was hurt: “Your last letter said that a picture was enclosed. It was not enclosed. This represents a hardship for me.”]
:: DESCONFORTO PSICOLÓGICO ::
Consuelo Dieguez, O ovo da serpente
Olavo de Carvalho, em um discurso: “A promessa de proteger as minorias de desconforto cria desconforto psicológico para a maioria.”
:: MUDAS COMO GARRAFAS ::
Audre Lorde, Sister Outsider
Podemos ficar sentadas em nossos cantos, mudas para sempre, enquanto nossas irmãs e nós mesmas somos desperdiçadas, enquanto nossos filhos são distorcidos e destruídos, enquanto nossa Terra é envenenada; podemos ficar sentadas em nossos cantos seguros, mudas como garrafas, e ainda assim nosso medo não será menor.
[…] Pois fomos socializadas para respeitar mais o medo do que nossas próprias necessidades de linguagem e significado, e enquanto esperamos em silêncio por um luxo final de destemor, o peso desse silêncio nos sufocará. O fato de estarmos aqui e de eu falar essas palavras é uma tentativa de quebrar esse silêncio e unir algumas dessas diferenças entre nós, pois não é a diferença que nos imobiliza, mas o silêncio. E há tantos silêncios a serem quebrados.
[We can sit in our corners mute forever while our sisters and our selves are wasted, while our children are distorted and destroyed, while our earth is poisoned; we can sit in our safe corners mute as bottles, and we will still be no less afraid. […] For we have been socialized to respect fear more than our own needs for language and definition, and while we wait in silence for that final luxury of fearlessness, the weight of that silence will choke us. The fact that we are here and that I speak these words is an attempt to break that silence and bridge some of those differences between us, for it is not difference which immobilizes us, but silence. And there are so many silences to be broken.]

>>>>
Agradecimentos: Google Translate.
Os links dos livros são afiliados da Amazon e me ajudam a recarregar o Bilhete Único.
“Para ser lido na maldita hora da noite em que tudo é engraçado – logo após a hora em que nada faz sentido e antes daquela em que tudo faz sentido” (Stephanie A.)
::: www.hortifruti.org :::
Pequeno aviso legal: A Hortaliça será distribuída gratuitamente através desta plataforma. Não iremos produzir conteúdo fechado para assinantes por acreditar no livre acesso à informação, arte e cultura. A tarifa zero será bancada pelos leitores e leitoras e leitões que tiverem condições financeiras (e vontade) de colaborar. A estes, pedimos que nos apoiem escolhendo um plano de assinatura ou depositando moedas de ouro aleatórias para a chave pix: vmbarbara@yahoo.com. Vamos apoiar o jornalismo independente, a literatura de guerrilha e a bobice semiprofissional.