A Hortaliça – #103

Posted: 7th fevereiro 2025 by Vanessa Barbara in Hortaliças
Tags: , , , , , , , ,
Balcão de informações

A loucura chegou aqui e parou

#103 – São Paulo, 6 de fevereiro de 2025
Dissidência, rebelião e tumulto generalizado
Fulgura frango*
www.hortifruti.org

“Meus silêncios não me protegeram.
O silêncio de vocês não as protegerá.”
(Audre Lorde)


“A audácia, sempre a audácia”
(Georges-Jacques Danton)

:: EDITORIAL :

Enquanto ursos depredavam nossas escrivaninhas, a editora-chefe deste periódico resolveu falar publicamente sobre o piano que carregava nas costas por mais de uma década.

O episódio saiu no último dia 16 de janeiro no podcast Rádio Novelo Apresenta. Sobreveio um tumulto generalizado. As amigas apareceram com porretes, para o caso de haver necessidade. O fantasma do cancelamento foi invocado, mas não pôde ser encontrado até o fechamento desta edição. E apesar de tudo, a leveza chegou.**

Para quem ainda não ouviu, segue o link.

E a recomendação de que falem, sim — falem muito.

* “Eu despedaço os raios”, em latim. Inscrição em sinos de igrejas.
** O que não ainda chegou foram as desculpas, quase todas, que devem estar retidas na alfândega de Curitiba aguardando liberação.


:: INCÔMODO ::
Rebecca Solnit, A mãe de todas as perguntas

Seria incômodo, e muitos falam da comodidade como um direito, mesmo quando — principalmente quando — essa comodidade se funda sobre o sofrimento e o silenciamento de outros.


:: AINDA URSOS ::
Sam Knight, “Giant Pandas

Me faltam palavras para descrever esta peça literária.

https://www.theguardian.com/world/2015/aug/25/everything-about-panda-sex-edinburgh-zoo-long-read


:: O FUTURO ::
Alia Trabucco Zeran, Clean

Os pais dela tinham um restaurante, eu já mencionei isso? Chamava-se El Porvenir. Isso mesmo, um restaurante chamado O Futuro. Às vezes, minha mãe tinha de limpar o restaurante no fim de semana, e dizia, com tristeza: “No domingo, tenho que sair para limpar O Futuro”.

[Her parents owned a restaurant, did I mention that already? It was called El Porvenir. That’s right, a restaurant called The Future. Sometimes my mama would have to clean there on the weekend, and she’d say, glumly: On Sunday I have to go and clean The Future.]


:: TRÍVIA ::
Matthew Hutson, “Persuading the Body to Regenerate its Limbs

“Vocês podem ou não saber que crianças humanas com menos de 7 a 11 anos de idade são capazes de regenerar as pontas dos dedos”, ele disse à plateia.

[“You may or may not know that human children below the age of approximately seven to eleven are able to regenerate their fingertips,” he told the audience.]


:: AGÊNCIA ::
Kate Manne, Down Girl: The Logic of Misogyny

Pois a denúncia pode ser uma expressão de agência e um ato de subversão, na medida em que afasta a narrativa moral das versões dominante e padrão e torna a situação de alguém saliente para aqueles que, de outra forma, permaneceriam alheios. Terceiros podem simpatizar ou não; eles podem, de fato, se tornar mais, em vez de menos, hostis e ressentidos. Mas, pelo menos, eles terão conhecimento da realidade da lesão, ou do fato da dominação contínua. E isso pode ser importante, muito importante, para as pessoas que foram vitimadas.

[For coming forward can be an expression of agency and an act of subversion, insofar as it wrestles the moral narrative away from the dominant and default versions, and makes one’s situation salient to those who would otherwise remain oblivious. Third parties may sympathize or not; they may in fact become more, rather than less, hostile and resentful. But at least they will be privy to the reality of the injury, or the fact of the ongoing domination. And this can matter, quite properly, to people who have been victimized.]


:: A LOUCURA ::
Monteiro Lobato, O picapau amarelo

Emília: “Acho D. Quixote o suco dos sucos. A loucura chegou ali e parou.”


:: MATAR O ANJO DA CASA ::
Hermione Lee, Virginia Woolf

Quando ela [Virginia Woolf] escreveu uma retrospectiva desses primeiros anos de escrita, inventou a famosa imagem do “Anjo da Casa” (em homenagem ao poema de Coventry Patmore), a mãe/editora vitoriana que deslizava atrás dela em saias farfalhantes quando ela começava a resenhar um livro de um homem famoso, lembrando-a de ser charmosa, terna e educada — e a quem a jovem escritora teve de matar, arremessando-lhe o tinteiro, para que pudesse encontrar sua voz. “Ela demorou para morrer.” Essa editora fantasma era uma censora interna em conluio com as atitudes sociais paternalistas em relação às escritoras.

[When she came to write a retrospect of these first writing years she invented the famous figure of the Angel in the House (named after Coventry Patmore’s poem), the Victorian mother/editor who would slip behind her in rustling skirts as she began to review a book by a famous man, and remind her to be charming, tender and polite – and whom the young woman writer had to kill, by throwing the inkpot at her, before she could find her voice. ‘She died hard.’ This phantom editress […] was an inner censor in collusion with paternalistic social attitudes to women writers.]


:: MAIS ESCRITORES ::
Kathryn Schulz, “What Do We Hope to Find…?

Por desconhecer a arte da fotografia e ser fisicamente incapaz de carregar muito equipamento, [Sylvain] Tesson faz poucas contribuições práticas para a expedição: seu trabalho, ele escreve, era “não espirrar se o leopardo-das-neves aparecesse”.

[Being ignorant of the craft of photography and physically unable to carry much gear, Tesson makes few practical contributions to the expedition: his job, he writes, was “not to sneeze if the snow leopard appeared.”]


:: PROTEÇÃO UNILATERAL ::
Rebecca Solnit, A mãe de todas as perguntas

Um aspecto complicado do abuso e do assédio é a ideia de que a traição não está no crime, e sim na revelação do crime. Não se espera que você vá falar. Os abusadores muitas vezes se supõem donos do privilégio de exigir o silêncio dos abusados e de haver uma proteção unilateral.


:: NOVIDADES ::

Clarice Lispector, Todas as cartas

No mais, tudo igual. Pedrinho na escola, falando inglês; a última mania dele é não querer passar nem a dois metros de um lugar com lama, “para não sujar a sombra”.


:: BALÉ DO HOMICÍDIO ::

David Simon, Homicide

E assim, recomeça um balé noturno e sem graça, com as testemunhas deslizando umas após as outras sob o brilho desbotado da iluminação de tubo, cada uma ladeada por um detetive cansado e impassível segurando café preto e formulários em branco suficientes para registrar a próxima rodada de meias-verdades. As páginas são agrupadas, rubricadas e assinadas, os copos de isopor são enchidos novamente e os cigarros são trocados até que os detetives se reúnam novamente na sala do esquadrão para comparar as anotações e decidir quem está mentindo, quem está mentindo mais e quem está mentindo mais ainda.

[And so a graceless, nocturnal ballet resumes, with witnesses gliding past one another beneath the washed-out glare of tube lighting, each flanked by a tired, impassive detective cradling black coffee and enough blank statement forms to record the next round of half-truths. Pages are collated, initialed, and signed, Styrofoam coffee cups are refilled and cigarettes bartered until the detectives again assemble in the squadroom to compare notes and decide who’s lying, who’s lying more, and who’s lying the most.]


:: ALIÁS ::
Sarah Ruhl, 100 Essays I Don’t Have Time to Write

Quando alguém se depara com uma pergunta sem resposta, talvez seja melhor divagar. Eu já quis ser uma pintora de retratos.

[When one is faced with an unanswerable question, it is perhaps best to digress. I once wanted to be a portrait painter.]


:: BIOGRAFIA ::
Casey Cep, “The Oddballs and Odysseys of Charles Portis

Ele se mudou para Manhattan e publicou reportagens sobre um morador do Brooklyn que tinha um leão de estimação, sobre a convenção nacional de barbeiros e sobre seu fracasso com o “Plano de cinco dias para parar de fumar” no Bates Memorial Medical Center, em Yonkers.

[He moved to Manhattan and filed features about a Brooklynite with a pet lion, the National Barber Show convention, and his own failures with the “Five-Day Plan to Stop Smoking” at the Bates Memorial Medical Center in Yonkers.]


:: TUMULTO GENERALIZADO ::
Barbara Ehrenreich, Had I Known

Dissidência, rebelião e tumulto generalizado continuam sendo o verdadeiro dever dos patriotas.

[Dissent, rebellion, and all-around hell-raising remain the true duty of patriots.]


:: RESPONSABILIDADE PESSOAL ::
Kate Manne, Down Girl: The Logic of Misogyny

Tudo isso é para dizer que a misoginia torna as pessoas tão irracionais, tão inclinadas a se envolverem em racionalizações post hoc e tão carentes daquilo que muitos apregoam e pretendem considerar crucial, ou seja, a responsabilidade pessoal (um conceito filosófico complicado, mas o ponto aqui é a consistência), que isso me tornou bastante pessimista sobre argumentar com as pessoas e fazê-las levar a misoginia a sério.

[All of this is to say that misogyny makes people so irrational, so inclined to engage in post hoc rationalization, and so lacking in that thing that many tout and purport to think crucial, namely personal responsibility (a tricky philosophical concept, but the point here is one of consistency) that this has made me pretty pessimistic about reasoning with people to get them to take misogyny seriously.]


:: UMA DIFICULDADE ::
Reiner Stach, Kafka: The Years of Insight

Kafka cerrava os dentes, exercia o autocontrole, certificava-se de cobrir seus pontos sensíveis e até recorria ao oficialês quando ficava magoado: “Em sua última carta, você disse que havia uma imagem anexada. Não havia. Isso representa uma dificuldade para mim.”

[Kafka gritted his teeth, exercised self-control, made sure to cover his sensitive spots, and even resorted to officialese when he was hurt: “Your last letter said that a picture was enclosed. It was not enclosed. This represents a hardship for me.”]


:: DESCONFORTO PSICOLÓGICO ::

Consuelo Dieguez, O ovo da serpente

Olavo de Carvalho, em um discurso: “A promessa de proteger as minorias de desconforto cria desconforto psicológico para a maioria.”


:: MUDAS COMO GARRAFAS ::
Audre Lorde, Sister Outsider

Podemos ficar sentadas em nossos cantos, mudas para sempre, enquanto nossas irmãs e nós mesmas somos desperdiçadas, enquanto nossos filhos são distorcidos e destruídos, enquanto nossa Terra é envenenada; podemos ficar sentadas em nossos cantos seguros, mudas como garrafas, e ainda assim nosso medo não será menor.

[…] Pois fomos socializadas para respeitar mais o medo do que nossas próprias necessidades de linguagem e significado, e enquanto esperamos em silêncio por um luxo final de destemor, o peso desse silêncio nos sufocará. O fato de estarmos aqui e de eu falar essas palavras é uma tentativa de quebrar esse silêncio e unir algumas dessas diferenças entre nós, pois não é a diferença que nos imobiliza, mas o silêncio. E há tantos silêncios a serem quebrados.

[We can sit in our corners mute forever while our sisters and our selves are wasted, while our children are distorted and destroyed, while our earth is poisoned; we can sit in our safe corners mute as bottles, and we will still be no less afraid. […] For we have been socialized to respect fear more than our own needs for language and definition, and while we wait in silence for that final luxury of fearlessness, the weight of that silence will choke us. The fact that we are here and that I speak these words is an attempt to break that silence and bridge some of those differences between us, for it is not difference which immobilizes us, but silence. And there are so many silences to be broken.]

Salão de embark

>>>>
Agradecimentos: Google Translate.

Os links dos livros são afiliados da Amazon e me ajudam a recarregar o Bilhete Único.

“Para ser lido na maldita hora da noite em que tudo é engraçado – logo após a hora em que nada faz sentido e antes daquela em que tudo faz sentido” (Stephanie A.)

::: www.hortifruti.org :::

Pequeno aviso legal: A Hortaliça será distribuída gratuitamente através desta plataforma. Não iremos produzir conteúdo fechado para assinantes por acreditar no livre acesso à informação, arte e cultura. A tarifa zero será bancada pelos leitores e leitoras e leitões que tiverem condições financeiras (e vontade) de colaborar. A estes, pedimos que nos apoiem escolhendo um plano de assinatura ou depositando moedas de ouro aleatórias para a chave pix: vmbarbara@yahoo.com. Vamos apoiar o jornalismo independente, a literatura de guerrilha e a bobice semiprofissional.

A Hortaliça – #102

Posted: 13th janeiro 2025 by Vanessa Barbara in Hortaliças
Tags: , , , , ,

Pode escrever no meu caderninho, Maura

#102 – São Paulo, 13 de janeiro de 2025
Ursos se mudaram para cá
www.hortifruti.org

“Vocês terão mais propriedades de frente para o mar. […] Isso não é bom?”
(Donald Trump, sobre o aquecimento global)

“Se não há nada, então há tanto de mau quanto de bom”
(Friedrich Vischer, Auch Einer)

:: EDITORIAL :

Em 6 de janeiro de 2025, a redação de A Hortaliça foi invadida por ursos, que prontamente inundaram os banheiros, esmigalharam as cadeiras e comeram os nossos panetones. Um deles ateou fogo à sala de vassouras. Outros tentaram usar a cafeteira. Foram ursos que selecionaram os trechos, redigiram e diagramaram esta edição, o que explica muita coisa, pelo menos desta vez.

No mês que vem completaremos um ano de hortifrutigranjeiros nesta plataforma — quem diria. Agora dividimos a redação com cinco ou seis ursos, que espalham lixo pelo chão e sugerem passagens absurdas de obras em alemão. Ainda não fomos devorados porque vivemos de braços para cima, a fim de parecermos mais altos.

E aqui vai um Feliz Ano Novo a todos os seres plantígrados.


:: COM UM URSO DENTRO ::
Paige Williams, “Lake Tahoe’s Bear Boom

Os ursos aprenderam a desatarraxar tampas. Eles sabem como abrir portas de vidro deslizantes. Eles vão vagar de carro em carro, testando maçanetas. Ryan Welch, o fundador da mais antiga empresa de dissuasão de ursos de Tahoe, a Bear Busters, me contou sobre uma mulher que relatou o desaparecimento de seu Prius; a polícia encontrou o carro no sopé da colina onde ela o havia estacionado, com um urso dentro.

[Bears have learned how to unscrew lids. They know how to open sliding glass doors. They’ll prowl from car to car, trying handles. Ryan Welch, the founder of Tahoe’s oldest bear-deterrent company, Bear Busters, told me about a woman who reported her Prius missing; the police found the car at the bottom of the hill that she’d parked it on, with a bear inside.]


:: MAIS BURRICE ::
Bill McKibben, “Could Talking About Climate Change…?”

A indústria de combustíveis fósseis aparentemente presume a mesma coisa: ela tem arrecadado dinheiro aos barris para Trump, que prometeu “perfurar, perfurar, perfurar” e observou: “Eu odeio o vento”.

[The fossil-fuel industry apparently assumes the same thing: it has been raising money at Spindletop rates for Trump, who has promised to “drill, drill, drill” and has noted, “I hate wind.”]


:: TODOS OS ANOS ::
Barbara Ehrenreich, Bright-Sided

A parcela da renda antes dos impostos que vai para o 1% mais rico das famílias americanas aumentou em 7 pontos percentuais de 1979 a 2007, para 16%, enquanto a parcela da renda que vai para os 80% mais pobres caiu em 7 pontos percentuais. Como David Leonhardt observou no New York Times: “É como se cada família naqueles 80% mais pobres estivesse preenchendo um cheque de US$ 7.000 todo ano e o enviando para o 1% mais rico.”

[The share of pretax income going to the top 1 percent of American house holds rose by 7 percentage points from 1979 to 2007, to 16 percent, while the share of income going to the bottom 80 percent fell by 7 percentage points. As David Leonhardt put it in the New York Times: “It’s as if every house hold in that bottom 80 percent is writing a check for $ 7,000 every year and sending it to the top 1 percent.”]


:: COISAS QUE RESTAM ::
Sylvia Plath, The Letters of Sylvia Plath Volume 1

Mas existe aquele princípio humano de que não importa o quanto seja tirado, sempre sobra algo com que construir novamente.

[But there is that human principle that no matter how much is taken away there is always something left with which to build again.]


:: HOMENS EXPLICAM ::

Cat Bohannon, Eve

No século XV, Bartholomäus Metlinger escreveu o primeiro manual europeu de pediatria. Apesar da falta de seios do alemão, ele não hesitou em explicar o leite das mulheres e o que fazer com ele: “Nos primeiros 14 dias, é melhor que outra mulher amamente a criança, pois o leite da mãe não é tão saudável, e durante esse tempo a mãe deve ter seu seio sugado por um jovem lobo”.

[In the fifteenth century, Bartholomäus Metlinger wrote the first European textbook for pediatrics. Despite the German’s own lack of breasts, he didn’t hesitate to mansplain women’s milk and what to do with it: “The first 14 days it is better that another woman suckle the child as the milk of the mother of the child is not as healthy, and during this time the mother should have her breast sucked by a young wolf.”]


:: REDES SOCIAIS ::
Max Fisher, The Chaos Machine

Era como entrar em uma fábrica de cigarros e ouvir os executivos dizendo que não conseguiam entender por que as pessoas continuavam reclamando dos impactos à saúde das pequenas caixas de papelão que vendiam.

[It was like walking into a cigarette factory and having executives tell you they couldn’t understand why people kept complaining about the health impacts of the little cardboard boxes that they sold.]


:: DIETA DE MORANGOS ::

Adam Gopnik, “Does the Enlightment’s Great Female Intelect…?”

Bernard de Fontenelle, o grande acadêmico e autor de um dos primeiros livros de ciência popular, Conversas sobre a Pluralidade dos Mundos, era um frequentador assíduo da mesa de seu pai, e dizia-se que se deliciava em conversar com Émilie. (Já velho quando a conheceu, Fontenelle viveu com boa saúde até o final dos seus noventa anos, e era famoso por ter dito, aos noventa e dois, ao conhecer uma bela mulher: “Ah, ter oitenta anos novamente.” Ele creditou sua longa vida a uma dieta de morangos.)

[Bernard de Fontenelle, the great Academician and the author of one of the first books of popular science, the “Conversations on the Plurality of Worlds,” was a regular at her father’s table, and was said to delight in conversing with Émilie. (Already old when he knew her, Fontenelle lived in good health into his late nineties, and was famous for having said, at ninety-two, on meeting a beautiful woman, “Ah, to be eighty again.” He credited his long life to a diet of strawberries.)]


:: UM BOM ESPIRRO ::
D. H. Lawrence, em carta a Cynthia Asquith, novembro de 1913
Scorn, de Matthew Parris

Gosto de escrever quando estou irritado: é como soltar um bom espirro.


:: MAIS URSOS VANDALIZANDO ::
Paige Williams, “Lake Tahoe’s Bear Boom

As garras curtas e curvas de um urso preto funcionam como pés-de-cabra em miniatura, capazes de alavancar a menor fenda para abrir uma janela ou rasgar uma porta de garagem. Um espaço de acesso desprotegido é um convite. Um urso transformará um batente de porta em confete. Em casas vazias — que são abundantes nas comunidades de resort como Tahoe —, os ursos abrem torneiras e queimadores, geralmente tropeçando neles. No ano passado, um funcionário de uma empresa de serviços públicos notou um pico no uso de água em uma casa; ursos tinham se mudado para lá.

[A black bear’s short, curved claws function as miniature crowbars, capable of leveraging the slightest crevice to pry open a window or shred a garage door. An unsecured crawl space is an invitation. A bear will make confetti of a doorjamb. In vacant houses—which are plentiful in resort communities like Tahoe—bears turn on faucets and burners, usually by bumbling into them. Last year, a utility-company employee noticed a spike in water use at one home; bears had moved in.]


:: UMA BATATA INGLESA ::
Clarice Lispector, Todas as cartas

Quando eu disse a Pedrinho: você vai ter uma babá inglesa, ele respondeu todo interessado: uma batata inglesa?


:: MAIS METÁFORAS ALEATÓRIAS ::
Max Fisher, The Chaos Machine

Era como se a Coca-Cola abastecesse um bilhão de máquinas de refrigerantes com alguma bebida projetada por IA, sem que um único humano verificasse o conteúdo das garrafas — e se a IA que enche as bebidas fosse programada apenas para aumentar as vendas, sem levar em conta a saúde ou a segurança.

[It was as if Coca-Cola stocked a billion soda machines with some A.I.-designed beverage without a single human checking the bottles’ contents—and if the drink-filling A.I. was programmed only to boost sales, without regard for health or safety.]


:: DIÁRIO ::
Leo Tolstoy

25 de janeiro
1851
Me apaixonei ou imagino que me apaixonei; fui a uma festa e perdi a cabeça. Comprei um cavalo do qual eu não tenho a menor necessidade.


:: URSOS – PARTE III ::
Paige Williams, “Lake Tahoe’s Bear Boom

Recentemente, uma seguradora recebeu a reclamação de que um urso havia vandalizado um Rolls-Royce; investigadores mostraram imagens de segurança do incidente a um biólogo de vida selvagem, que determinou que o autor do crime era um humano fantasiado de urso.

[Recently, an insurer received a claim that a bear had vandalized a Rolls-Royce; investigators showed security footage of the incident to a wildlife biologist, who determined that the perpetrator was a human in a bear costume.]


:: TIA FÁTIMA ::

Bruna Mitrano, Ninguém quis ver

ontem soube que a tia fátima morreu
imaginei suas últimas palavras
acho que ela não teria perguntado por mim
nem por minha mãe ou pelos patrões
acho que ela teria perguntado as horas.


:: SOBRE JIM MUNRO ::
Rachel Aviv, “Alice Munro’s Passive Voice

Jim era severo e pouco inclinado a demonstrações físicas de afeição; um de seus ditados favoritos era “Todo mundo tem direito à minha opinião”.

[Jim was stern and not inclined toward physical affection; one of his favorite sayings was “Everyone’s entitled to my opinion.”]


:: QUAL DOS DOIS TINHA MORRIDO ::

Rosa Montero, O perigo de estar lúcida

[…] Depois tem a história genial de Mark Twain, que um dia contou numa entrevista que havia tido um irmão gêmeo, Bill, cuja semelhança com ele era tão grande que ninguém podia distingui-los, por isso amarravam cordões coloridos nos seus punhos para saber quem era quem. Mas um dia deixaram os dois sozinhos na banheira e o irmão se afogou. E como os cordões haviam se soltado, “nunca se soube qual dos dois tinha morrido, se Bill ou eu”, explicou Twain placidamente ao repórter. A história foi publicada e reproduzida diversas vezes, mas obviamente era inventada: aquele gêmeo nunca existiu — embora seja uma maravilhosa metáfora da dissociação do escritor, e acho que dizia muito sobre o próprio Mark Twain, autor cujo nome, aliás, é um pseudônimo (o que já evidencia certa predisposição à dualidade).


:: A ÚLTIMA DOS URSOS ::
Paige Williams, “Lake Tahoe’s Bear Boom

Em junho, um urso apareceu em um casamento e destruiu um carro, fugiu com a bagagem de alguém e retornou para a recepção.

[In June, a bear turned up at a wedding and destroyed a car, ran off with somebody’s luggage, and came back for the reception.]


:: AGRADECIMENTOS ::

Jenny Offill, Dept. of Speculation

E para a equipe editorial, publicitária e de produção da Knopf que guiou este livro com um formato enlouquecedor até a gráfica, devo a cada um de vocês um pônei.

[And to the crackerjack editorial, publicity, and production staff at Knopf who shepherded this maddeningly formatted book to press, I owe each and every one of you a pony.]

Correspondendo-se com a camareira

>>>>

Agradecimentos: Google Translator.
Os links dos livros são afiliados da Amazon e me ajudam a recarregar o Bilhete Único.

“Para ser lido na maldita hora da noite em que tudo é engraçado – logo após a hora em que nada faz sentido e antes daquela em que tudo faz sentido” (Stephanie A., a moradora mais ilustre da rua Paulo da Silva Gordo)

::: www.hortifruti.org :::

Pequeno aviso legal: A Hortaliça será distribuída gratuitamente através desta plataforma. Não iremos produzir conteúdo fechado para assinantes por acreditar no livre acesso à informação, arte e cultura. A tarifa zero será bancada pelos leitores e leitoras e leitões que tiverem condições financeiras (e vontade) de colaborar. A estes, pedimos que nos apoiem escolhendo um plano de assinatura ou depositando moedas de ouro aleatórias para a chave pix: vmbarbara@yahoo.com. Vamos apoiar o jornalismo independente, a literatura de guerrilha e a bobice semiprofissional.

Brazil’s presidential palace on Jan. 9, 2023, the day after it was attacked by supporters of Jair Bolsonaro. Credit: Victor Moriyama for The New York Times

The New York Times
Jan 8, 2025

by Vanessa Barbara
Contributing Opinion Writer

Ler em português

Two years ago, there was a coup attempt in Brazil.

Don’t take my word for it: See the 221-page and 884-page federal police reports released in November. The fruit of two years of investigation, these much-anticipated accounts describe in astonishing detail a plan to overthrow the incoming government.

The chaos of Jan. 8, 2023 — when supporters of Jair Bolsonaro, many clad in yellow soccer jerseys, assailed government buildings in the capital — grabbed international attention. But the riots marked the end, not the beginning, of a coup attempt. As the reports make clear, the turmoil came after a carefully coordinated plan to ensure that Mr. Bolsonaro, who was voted out in October 2022, stayed in power.

Most shockingly, the plot involved assassinations. According to the reports, an elite army unit was assigned to kill the incoming president, Luiz Inácio Lula da Silva, and his vice president, Geraldo Alckmin. There were also plans to kidnap and probably kill a Supreme Court justice, Alexandre de Moraes, who leads many of the investigations into the country’s far-right movement.

The five members of the unit have been arrested. But the conspiracy goes far beyond them. Thirty-seven men, including Mr. Bolsonaro and a host of his allies, have been charged with planning the coup. If the charges are confirmed by Brazil’s prosecutor general, a trial will take place this year.

For Brazilians, the really scary thing isn’t how close we came to having our democracy destroyed in 2023 but that it could happen again — and succeed. The reports make clear that sitting within Brazil’s democracy is a force capable of overthrowing it: the military. It is the dagger hanging over the country.

Perhaps the best place to start is with the planned killings. We don’t have to use our imagination because, helpfully, the plotters wrote it all down. The president’s executive secretary, a retired general, Mario Fernandes, printed a draft document — at the presidential palace, no less. In a reference to Brazil’s national colors and no doubt to stiffen the plotters’ patriotic resolve, it was called “Green and Yellow Dagger.”

The plan was extensive. It outlines the weaponry required to complete the mission — a machine gun, a grenade launcher, an anti-armor rocket launcher — and accepts the possibility of “100 percent fatalities” for those involved. It also considers an alternative approach of poisoning Mr. Lula, “taking into account his health issues and frequent hospital visits.” In the event of Mr. Alckmin’s assassination, it rather harshly declares that “a national commotion is not anticipated.”

Mr. de Moraes was apparently chosen as the first target. On Dec. 15, 2022, the assassins — who had negotiated a price of about $16,500 for the operation with Mr. Bolsonaro’s personal aide — moved to locations near the justice’s house. Once the unit members were in position, according to messages collected in the reports, they waited for the release of a presidential decree. When it failed to arrive, one of them commanded the others to abort the mission and start the process of exfiltration. The operation was over.

The decree, which the reports say Mr. Bolsonaro edited, was crucial to the coup. It would have suspended the powers of the Brazilian Electoral Court and detained Mr. Moraes, allowing Mr. Bolsonaro to remain in power. Twice in December, it was presented to the heads of the armed forces — which some of the officers confirmed. (Fun fact: A priest attended one of those meetings.)

The head of the navy was ready to go along with it, the reports say, but the army and air force commanders refused to participate. A lack of international support might have been one of their reasons: The U.S. government reportedly conducted a covert campaign over the year, urging Brazil’s political and military leaders to uphold the results of the election. It seems to have worked.

The police reports are clear about who was responsible for the plan. Among those indicted are a number of Mr. Bolsonaro’s top allies, including cabinet members, his vice-presidential candidate, his defense minister and a former head of the navy. According to the reports, Mr. Bolsonaro “planned, acted and was directly and effectively aware of the actions of the criminal organization aiming to launch a coup d’état and eliminate the democratic rule of law.” (Mr. Bolsonaro denies all charges.)

Compared with the kidnapping and killing plots, the rest of the plans were relatively humdrum, if still insidious. The group’s strategy covered a variety of key areas. Before the election, for instance, Mr. Bolsonaro and his allies repeatedly claimed that the country’s electronic voting system was susceptible to fraud, aiming to stir up conservatives and secure backing for a coup.

Yet the conspirators knew their assertions were false. “No evidence of fraud,” Mr. Bolsonaro’s personal aide, Lt. Col. Mauro Cid, told a colonel. One major moment in the reports is the remark made by an officer of the Brazilian intelligence agency to a colleague: “There’s a guy who posted a tweet about the ballot box invasions. We need to qualify him with a résumé.”

The government is also said to have overseen the encampments of Mr. Bolsonaro’s supporters in front of military headquarters and across the country, which lasted for more than two months through the end of 2022. “How long do you want us to stay here?” one protest leader asked General Fernandes. On Jan. 8, 2023, thousands of these protesters stormed government buildings in Brasília, including the presidential palace, Congress and the Supreme Court. But by then, the coup was effectively finished.

We can be grateful for the failure. Yet even if Mr. Bolsonaro and his allies end up behind bars, the fact remains that the military appears to struggle with the idea that the republic belongs to its citizens. Its involvement is conspicuous in these reports: Four of the five arrested assassination unit members are army officers. Gen. Walter Braga Netto, a four-star general and Mr. Bolsonaro’s defense minister, has also been arrested. Of the 37 men charged with planning the coup, 25 are members of the armed forces. Nearly all hold or have held high-ranking positions.

This is troubling. Although some commanders decided not to back a coup this time, the stability of our democracy still hinges largely on the mood of the military. In a way, that’s always been the case. Since the founding of the republic in 1889, the military has made nine attempts to take over, five of which were successful. After the end of the 20-year military dictatorship in 1985 — which saw widespread human rights abuses, censorship of the press and the persecution of political opponents — the forces remained heavily involved in politics. Under Mr. Bolsonaro, they became even more powerful.

I can’t shake the feeling that there are plenty of generals, admirals and marshals who would be quick to side with a coup if their interests, and those of their organizations, weren’t fully satisfied. As we look ahead to the 2026 election, there’s reason to be worried. With an incoming U.S. administration more likely to support the military and perpetual distemper among the military ranks at Mr. Lula’s rule, we can’t be sure a coup won’t happen again.

And who knows? Maybe next time it will work.


Vanessa Barbara is the editor of the literary website A Hortaliça and writes Portuguese fiction and nonfiction.

A version of this article appears in print on Jan. 10, 2025, Section A, Page 22 of the New York edition with the headline: Brazil Is in Grave Danger. These 1,105 Pages Prove It.

Palácio do Planalto no dia 9 de janeiro de 2023, um dia após ser atacado por apoiadores de Jair Bolsonaro. Créditos: Victor Moriyama for The New York Times

The New York Times
Jan 8, 2025

by Vanessa Barbara
Contributing Opinion Writer

Read in English

Dois anos atrás, houve uma tentativa de golpe no Brasil.

Não acredite só na minha palavra: veja os relatórios da Polícia Federal de 221 páginas e 884 páginas, divulgados em novembro. Fruto de dois anos de investigação, esses relatos tão esperados descrevem, em detalhes espantosos, um plano para derrubar o novo governo.

O caos de 8 de janeiro de 2023 — quando apoiadores de Jair Bolsonaro, muitos vestidos com camisas amarelas de futebol, atacaram prédios do governo na capital — atraíram a atenção internacional. Mas os tumultos marcaram o fim, não o começo, de uma tentativa de golpe. Como os relatórios deixam claro, a turbulência aconteceu após um plano cuidadosamente coordenado para garantir que Bolsonaro, que perdeu as eleições em outubro de 2022, permanecesse no poder.

O mais chocante é que o plano envolvia assassinatos. De acordo com os relatórios, um grupo de militares da elite do Exército foi designado para matar o presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, e o vice, Geraldo Alckmin. Também havia planos para sequestrar e provavelmente matar um ministro da Suprema Corte, Alexandre de Moraes, que lidera muitas das investigações sobre o movimento de extrema direita no país.

Os cinco membros do grupo foram presos. Mas a conspiração vai muito além deles. Trinta e sete homens, incluindo Bolsonaro e inúmeros de seus aliados, foram acusados de planejar o golpe. Se os indiciamentos forem confirmados pelo procurador-geral da República, um julgamento irá acontecer este ano.

Para os brasileiros, o mais assustador não é como chegamos tão perto de ter nossa democracia destruída em 2023, mas como poderia acontecer de novo — e dar certo. Os relatórios deixam claro que no interior da democracia brasileira existe uma força capaz de derrubá-la: os militares. Eles são o punhal pairando sobre o país.

Talvez o melhor lugar para começar seja com os assassinatos planejados. Não precisamos usar nossa imaginação porque, de forma prestativa, os conspiradores escreveram tudo. O secretário-executivo da Secretaria-Geral da Presidência, o general da reserva Mario Fernandes, imprimiu o rascunho de um documento sobre o golpe — no Palácio do Planalto, ainda por cima. Em uma referência às cores nacionais do Brasil e sem dúvida para fortalecer a determinação patriótica dos conspiradores, ele foi chamado de “Punhal Verde Amarelo.”

O plano era abrangente. Descreve o armamento necessário para completar a missão — uma metralhadora, um lança-granadas, um lança-rojão — e aceita a possibilidade de 100 por cento de baixas entre todos os envolvidos. Também considera uma abordagem alternativa de envenenar Lula, “considerando a vulnerabilidade de seu atual estado de saúde e sua frequência a hospitais.” No caso do assassinato de Alckmin, declara duramente que “não se espera grande comoção nacional.”

Moraes foi aparentemente escolhido como o primeiro alvo. No dia 15 de dezembro de 2022, os assassinos — que negociaram com o ajudante de ordens de Bolsonaro o preço de 100 mil reais para a operação — deslocaram-se para pontos próximos à casa do ministro. Assim que os membros do grupo estavam posicionados, de acordo com mensagens coletadas nos relatórios, eles aguardaram a promulgação de um decreto presidencial. Quando o decreto não chegou, um deles ordenou que os outros abortassem a missão e iniciassem o processo de exfiltração. A operação tinha terminado.

O decreto, que os relatórios dizem ter sido editado por Bolsonaro, era essencial para o golpe. Ele teria suspendido os poderes do Tribunal Superior Eleitoral e anunciado a detenção de Moraes, permitindo que Bolsonaro continuasse no poder. Duas vezes, em dezembro, foi apresentado aos comandantes das Forças Armadas — o que foi confirmado por alguns dos oficiais. (Pequena curiosidade: um padre esteve presente em uma dessas reuniões.)

Segundo os relatórios, o chefe da Marinha estava pronto para aderir ao golpe, mas os comandantes do Exército e da Aeronáutica se recusaram a participar. A falta de apoio internacional pode ter sido um dos motivos: o governo norte-americano teria supostamente conduzido uma campanha velada ao longo daquele ano, encorajando os líderes políticos e militares do Brasil a respeitar os resultados da eleição. Parece ter funcionado.

Os relatórios da polícia são claros sobre quem foi o responsável pelo plano. Entre os indiciados estão vários dos principais aliados de Bolsonaro, incluindo seus ministros, seu candidato a vice, seu ministro da Defesa e o então chefe da Marinha. De acordo com os relatórios, Bolsonaro “planejou, atuou e teve o domínio de forma direta e efetiva dos atos executórios realizados pela organização criminosa que objetivava a concretização de um Golpe de Estado e da Abolição do Estado Democrático de Direito.” (Bolsonaro nega todas as acusações.)

Em comparação às tramas de sequestro e assassinato, o resto dos planos era relativamente monótono, ainda que insidioso. A estratégia do grupo cobria uma variedade de áreas-chave. Antes da eleição, por exemplo, Bolsonaro e seus aliados alegaram repetidamente que o sistema de votação eletrônica do país era suscetível a fraudes, na tentativa de incitar os conservadores e assegurar um apoio para o golpe.

E ainda assim, os conspiradores sabiam que suas afirmações eram falsas. “Nenhum indício de fraude,” disse o tenente-coronel Mauro Cid, ajudante de ordens de Bolsonaro, a um coronel. Um grande momento do relatório é o comentário feito por um servidor da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) a um colega: “Tem um cara que publicou um tweet sobre as invasões das urnas. Precisamos qualificá-lo com um currículo.”

O governo de Bolsonaro também é acusado de supervisionar os acampamentos de seus apoiadores diante dos quartéis-generais do Exército por todo o país, que duraram mais de dois meses no final de 2022. “Até quando vocês querem que a gente fique aqui?,” perguntou um dos líderes dos protestos ao general Fernandes. Em 8 de janeiro de 2023, milhares desses manifestantes invadiram prédios do governo em Brasília, incluindo o Palácio do Planalto, o Congresso e o Supremo Tribunal Federal. Mas, a essa altura, o golpe já havia efetivamente acabado.

Podemos ficar gratos pelo fracasso. E ainda assim, mesmo que Bolsonaro e seus aliados terminem atrás das grades, o fato é que os militares ainda parecem lutar contra a ideia de que a República pertence a seus cidadãos. Seu envolvimento é ostensivo nesses relatórios: quatro dos cinco membros do grupo de assassinato que foram presos são militares do Exército. Walter Braga Netto, general de quatro estrelas e candidato a vice de Bolsonaro, também foi preso. Dos 37 homens acusados de planejar o golpe, 25 são membros das Forças Armadas. Quase todos possuem ou possuíram altas patentes.

Isso é preocupante. Embora alguns comandantes tenham decidido não apoiar um golpe desta vez, a estabilidade de nossa democracia ainda depende, em grande parte, dos humores dos militares. De certa forma, esse sempre foi o caso. Desde a proclamação da República, em 1889, os militares fizeram nove tentativas de tomar o poder, cinco das quais foram bem-sucedidas. Após o término de uma ditadura que durou vinte anos, em 1985 — ditadura que teve extensos abusos de direitos humanos, censura aos veículos de comunicação e perseguição a oponentes políticos — as Forças Armadas permaneceram fortemente envolvidas na política. Sob a administração de Bolsonaro, tornaram-se ainda mais poderosas.

Não consigo me livrar da sensação de que há uma porção de generais, brigadeiros e almirantes que seriam rápidos em apoiar um golpe se os seus interesses, e os da corporação a que pertencem, não forem plenamente satisfeitos. Ao vislumbrarmos a eleição de 2026, há motivos para preocupação. Com uma nova administração dos EUA mais propensa a apoiar as Forças Armadas e com o destempero perpétuo dos militares ao comando de Lula, não podemos ter certeza de que um golpe não irá acontecer de novo.

E quem sabe? Talvez funcione da próxima vez.


Vanessa Barbara é editora do site literário A Hortaliça e autora de três romances em português, incluindo “Três Camadas de Noite.”

Uma versão deste artigo apareceu no New York Times impresso em Jan. 10, 2025, Section A, Page 22, com o título: “Brazil Is in Grave Danger. These 1,105 Pages Prove It.”

A Hortaliça – #101

Posted: 9th janeiro 2025 by Vanessa Barbara in Hortaliças

Uma das coisas mais sérias e importantes que você poderá ter lido

#101 – São Paulo, 10 de dezembro de 2024
A alpaca natalina astronauta deseja a todos boas festas
Nas intermitências de nossa idiotice
www.hortifruti.org

“Ah! Onde vais, pequeno rastejante?
Tua imprudência te protege muito pouco”
(Robert Burns, “A um piolho”)


Hoje, um terço das mortes do mundo tem alguma relação com moscas.”
(Richard Gordon, A assustadora história da medicina)

:: EDITORIAL :

Temos a alegria de informar que nossa obsessão pela Barbara Ehrenreich está chegando ao fim (não restam mais livros na bibliografia), porém, para azar geral dos leitores, saíram em novembro dois relatórios da PF — de 218 e 884 páginas — que nos divertiram muito. De modo que os senhores e as senhoras terão de se conformar com uma exposição tóxica aos trechos mais aleatórios desses documentos.

No mais, a alpaca natalina astronauta gostaria de desejar boas festas a quem é de festas e boas férias a quem tem férias. Não se esqueçam de depositar polpudas contribuições natalinas para custear nosso décimo-terceiro, vale-alimentação, abono salarial, PIS/Cofins, convênio odontológico e auxílio-insalubridade. Lembrem-se pecuniariamente daqueles que lhes trouxeram entretenimento da mais alta qualidade durante todo o ano de 2024. (Sim, estou falando da polícia federal.)

Um aviso final: esta Hortaliça será um pouco longa, mas, além de ilustrativa, é uma das coisas mais sérias e importantes que você poderá ter lido.


:: UM CARA QUE PUBLICOU UM TWEET ::
Relatório da tentativa de golpe, p. 33

Dois caras da Abin conversando:


:: AINDA ELES ::
Relatório da tentativa de golpe, p. 33


:: FALTA DE CONTROLE ::

Barbara Ehrenreich, Natural Causes

Quando a noção de “estresse” foi criada em meados do século XX, a ênfase estava na saúde dos executivos, cujas ansiedades supostamente superavam as de um trabalhador braçal sem grandes decisões a tomar. Acontece, porém, que a quantidade de estresse que alguém experimenta — medida pelos níveis sanguíneos do hormônio do estresse cortisol — aumenta conforme você desce na escala socioeconômica, com o maior estresse sendo infligido àqueles que têm menos controle sobre seu trabalho.

[When the notion of “stress” was crafted in the mid-twentieth century, the emphasis was on the health of executives, whose anxieties presumably outweighed those of a manual laborer who had no major decisions to make. It turns out, however, that the amount of stress one experiences—measured by blood levels of the stress hormone cortisol—increases as you move down the socioeconomic scale, with the most stress being inflicted on those who have the least control over their work.]


:: FAIT-DIVERS ::
Ben Taub, “Murder in Malta

Um idoso na cidade de Gozo (Malta) bateu na esposa com um peixe; ela caiu da escada e morreu, e ele cozinhou e comeu a arma do crime.

[An old man in Gozo smacked his wife with a fish; she fell down the stairs and died, and he cooked and ate the murder weapon.]


:: MERITOCRACIA ::
Pedro Fernando Nery, Extremos

No Brasil, para o filho de uma família de baixa renda chegar à renda média do país são necessárias nove gerações.


:: GOLZINHO NO BANHO DE SOL ::
Relatório da tentativa de golpe, p. 247

Dois militares conversam sobre quem assinou a Carta dos Oficiais da Ativa ao Comandante do Exército, um documento que pedia a intervenção militar.

O povo brasileiro clama pela concretização desse golzinho.


:: DOCUMENTO ::

Rosa Freire d’Aguiar, Sempre Paris

Na Alemanha, o jornalista Arthur José Poerner, privado de passaporte, usava como documento a velha carteirinha do Clube de Regatas Flamengo, cuja capa de couro preto parecia respeitável.


:: GRITO DE GUERRA ::
Jake Offenhartz, New York’s Clock Master to City Hall

Recentemente, um grupo de idosos se reuniu em frente ao hotel Trump, no oeste do Central Park, para pedir mais banheiros públicos. (Entre seus gritos: “Two, four, six, eight, we just want to urinate!”)

[Recently, a group of old men assembled outside the Trump hotel on Central Park West to agitate for more public toilets. (Among their chants: “Two, four, six, eight, we just want to urinate!”)]


:: AS MAIS INTOLERÁVEIS ::
William Styron, Darkness Visible

Pois em praticamente qualquer outra doença séria, um paciente que sentisse uma devastação semelhante estaria deitado na cama, possivelmente sedado e conectado a tubos e fios dos sistemas de suporte de vida, mas, no mínimo, em uma postura de repouso e em um ambiente isolado. Sua invalidez seria necessária, inquestionável e honrosamente obtida. No entanto, quem sofre de depressão não tem essa opção e, portanto, encontra-se como uma vítima ambulante de guerra, empurrado para as mais intoleráveis ​​situações sociais e familiares. Lá, apesar da angústia que devora seu cérebro, ele deve exibir uma expressão que se aproxime daquela que é associada a eventos comuns e amizade.

[For in virtually any other serious sickness, a patient who felt similar devastation would be lying flat in bed, possibly sedated and hooked up to the tubes and wires of life-support systems, but at the very least in a posture of repose and in an isolated setting. His invalidism would be necessary, unquestioned and honorably attained. However, the sufferer from depression has no such option and therefore finds himself, like a walking casualty of war, thrust into the most intolerable social and family situations. There he must, despite the anguish devouring his brain, present a face approximating the one that is associated with ordinary events and companionship.]


:: FILOSOFIA DE VIDA ::
Rivka Galchen, “A New Doctor Faces The Coronavirus in Queens

No caminho, digo a mim mesmo: vou aparecer. Se eu simplesmente continuar aparecendo, algo bom vai sair disso de forma acumulada, ao longo do tempo.

[On my way over, I say to myself, I’m going to show up. If I just keep showing up, something good will come of it compounded over time.”]


:: RATOS VELHOS ::

Joseph Mitchell, “Thirty-Two Rats From Casablanca

Exterminadores se referem a ratos velhos como Moby Dicks. “Ratos que sobrevivem até os quatro anos são os animais mais sábios e cínicos da Terra”, diz um exterminador. “Uma armadilha não significa nada para eles, não importa o quão habilmente preparada. Eles apenas a chutam até que ela arrebente; então eles comem a isca. E eles podem detectar iscas envenenadas a um metro de distância. Acredito que alguns deles sabem ler. Se você tiver alguns Moby Dicks em sua casa, há apenas duas coisas que você pode fazer: esperar que eles morram ou queimar sua casa e começar tudo de novo.”

[Exterminators refer to old rats as Moby Dicks. “Rats that survive to the age of four are the wisest and the most cynical beasts on earth,” one exterminator says. “A trap means nothing to them, no matter how skillfully set. They just kick it around until it snaps; then they eat the bait. And they can detect poisoned bait a yard off. I believe some of them can read. If you get a few Moby Dicks in your house, there are just two things you can do: you can wait for them to die, or you can burn your house down and start all over again.”]


:: COISAS SÉRIAS E IMPORTANTES ::
Relatório da tentativa de golpe, p. 156


:: A MORTE ::
Barbara Ehrenreich, Natural Causes

Arrependimento, certamente, e um dos meus maiores arrependimentos é o de não estar presente para acompanhar o progresso científico nas áreas que me interessam, que são praticamente todas.

[Regret, certainly, and one of my most acute regrets is that I will not be around to monitor scientific progress in the areas that interest me, which is pretty much everything.]


:: NARIZES ::
George Saunders, A Swim in a Pond in the Rain

Gogol era obcecado por narizes, tinha medo de sanguessugas e vermes; ele conseguia, aparentemente, tocar o topo do seu (longo) nariz com a ponta da língua.

[Gogol was obsessed with noses, afraid of leeches and worms; he could, apparently, touch the top of his (lengthy) nose with the tip of his tongue.]


:: ALEGRIA DE GOGOL ::
George Saunders, A Swim in a Pond in the Rain

Mas seríamos negligentes se não reconhecêssemos que a arma principal de Gogol é a alegria. Minha parte favorita da história — uma parte que não me parece nem velha nem nova, mas atemporal — acontece no início da cena no escritório do jornal quando, de alguma forma, magicamente, um grupo de pessoas esperando para colocar anúncios se transforma naquilo para o qual estão anunciando, e de repente o pequeno escritório está cheio de “um cocheiro de conduta sóbria… uma serva de dezenove anos… um droshky sólido com uma mola faltando… um cavalo cinza malhado jovem e selvagem… uma residência de verão com todos os apetrechos”.

[But we’d be remiss if we didn’t acknowledge that Gogol’s main currency is joy. My favorite part of the story—a part that feels neither old or new but timeless—comes toward the beginning of the scene in the newspaper office when somehow, magically, a group of people waiting to place ads get transformed into that for which they are advertising, and suddenly that little office is full of “a coachman of sober conduct…a nineteen-year-old serf girl…a sound droshky with one spring missing…a young and fiery dappled-gray horse…a summer residence with all the appurtenances.”]


:: SE CONTINUARMOS ::
Relatório da tentativa de golpe, p. 734

Em 27 de dezembro de 2022, um assessor de Bolsonaro pergunta ao general Braga Netto para quem deveria encaminhar o currículo de uma amiga.


:: IMPOTÊNCIA ::

Giles Harvey, “What Alice Munro Knew

Como uma escritora capaz de tanto poder na página poderia se mostrar tão impotente na vida real? […] Enfatizando que não tinha nenhum desejo de fornecer desculpas para sua mãe, Sheila disse que acredita que Fremlin “aliciou” Munro junto com Andrea, citando a maneira como Munro passou a vê-la como uma rival sexual. “Isso vem direto do manual do abusador”, [Judith] Herman disse recentemente quando descrevi a teoria de Sheila para ela. “É instrutivo ver como até mesmo alguém tão talentoso quanto Munro era vulnerável a esse tipo de controle coercitivo.”

[How could a writer who was capable of such power on the page prove so feeble in real life? […] Stressing that she had no desire to make excuses for her mother, Sheila said she believes that Fremlin groomed Munro along with Andrea, citing the way Munro came to see her as a sexual rival. “That’s straight out of the abuser’s playbook,” [Judith] Herman said recently when I described Sheila’s theory to her. “Seeing how even someone as gifted as Munro was vulnerable to this kind of coercive control is instructive.”]


:: ÁLIBIS ::
Relatório da tentativa de golpe, p. 237 e 326


:: NOTA DE RODAPÉ SINCERONA ::
John Earman, World Enough and Space-Time

Qualquer leitor que, após completar este livro, acreditar que qualquer uma das teses de Reichenbach se sustenta sem maiores qualificações é cordialmente convidado a jogar este livro na fogueira.

[Any reader who, after completing this book, believes that any of Reichenbach’s theses stands without major qualifications is cordially invited to commit this book to the flames.]


:: NAS INTERMITÊNCIAS DE NOSSA IDIOTICE ::

Gustave Flaubert, Cartas exemplares

A Louis Bouilhet
7 junho 1856

Agora estou lendo algo que não tem nada de humanoHistória do Maniqueísmo de Beausobre, dois volumes in-quarto de 500 páginas cada um — sempre para Santo Antônio! Nas intermitências de minha idiotice, acho que sou louco. Enfim, é preciso seguir sua inclinação. Por que se incomodar sempre?


:: MATERIAL DE SUAS VIDAS QUÂNTICAS ::
Ian Parker, “Eric Adam’s Administration of Bluster

O prefeito aparentemente se reserva o direito de misturar incidentes de sua vida com material de suas vidas quânticas: coisas que poderiam ter acontecido, ou quase acontecido, ou acontecido a alguém que ele conheceu. Todos os potenciais existem simultaneamente.

[The Mayor apparently reserves the right to mix incidents from his own life with material from his quantum lives: things that could have happened, or almost happened, or happened to someone he once met. All potentials exist simultaneously.]


:: RECADO DE PAUL FEYERABEND ::

Gonzalo Munevar, Beyond Reason

“O que eu realmente sou: um lavador de louças.”

>>>>

Agradecimentos: Google Translator, Gigio e todos os colaboradores e assinantes que nos acompanharam em 2024.
Os links dos livros são afiliados da Amazon e me ajudam a recarregar o Bilhete Único.

“Para ser lido na maldita hora da noite em que tudo é engraçado – logo após a hora em que nada faz sentido e antes daquela em que tudo faz sentido” (Stephanie A., a moradora mais ilustre da rua Paulo da Silva Gordo)

::: www.hortifruti.org :::

Pequeno aviso legal: A Hortaliça será distribuída gratuitamente através desta plataforma. Não iremos produzir conteúdo fechado para assinantes por acreditar no livre acesso à informação, arte e cultura. A tarifa zero será bancada pelos leitores e leitoras e leitões que tiverem condições financeiras (e vontade) de colaborar. A estes, pedimos que nos apoiem escolhendo um plano de assinatura ou depositando moedas de ouro aleatórias para a chave pix: vmbarbara@yahoo.com. Vamos apoiar o jornalismo independente, a literatura de guerrilha e a bobice semiprofissional.

A Hortaliça – #100

Posted: 11th novembro 2024 by Vanessa Barbara in Hortaliças
Capa de disco: Simon & Garfunkão

Quando enfim revelamos nossos propósitos

#100 – São Paulo, 10 de novembro de 2024
É muita folha para pouco legume
Edição de luxo com encadernação em couve
www.hortifruti.org

Na falta de um outro mérito, haverá o da paciência.
(Gustave Flaubert)

“A plateia comendo amendoins
Se aglomera para ver”
(Sylvia Plath)

:: EDITORIAL :

E finalmente chegamos à edição número 100. Quando criamos este periódico, mal podíamos imaginar que vinte e dois anos depois estaríamos exatamente no mesmo lugar: balançando os pés num banquinho realmente alto, empurrando as cutículas com uma chave de fenda e esperando algo coerente cair do teto, com as patas bem abertas, para devolver o bom senso que se perdeu algum dia.

Escolhemos um clickbait como subtítulo só para atrair mais leitores, mas a verdade é que nossos propósitos continuam os mesmos. Não mudaram em nada nessas últimas duas décadas: de longe, dá para ver que continuam iguais. São muitos, e bastante variados. Contam-se às dezenas. Difícil lembrar quais são.

Agradecemos a todos os assinantes e doadores que colaboram financeiramente para manter o viço deste periódico, a despeito de nosso comportamento errático e citações cada vez mais fora de contexto. Agradecemos também a quem colabora enviando trechos absurdos das fontes mais questionáveis. Continuem com o ótimo trabalho. O reino dos céus será dos generosos (e daqueles que gostam de sapoti).

O e-mail de contato e a chave pix continua igual: vmbarbara@yahoo.com.

Esta edição é dedicada a Barbara Ehrenreich, por quem estamos absolutamente obcecados.


:: EXCESSO DE TEMPO LIVRE ::
Barbara Ehrenreich, Nickel and Dimed: Undercover in Low-Wage USA

Os e-mails e mensagens telefônicas destinados ao meu eu antigo vêm de uma raça distante de pessoas com preocupações exóticas e um excesso de tempo livre.

[The e-mails and phone messages addressed to my former self come from a distant race of people with exotic concerns and far too much time on their hands.]


:: ESCÂNDALO ::
W. David Marx, Status and Culture

Em uma certa época, no Reino Unido, os homens que ousavam usar guarda-chuvas “eram tão malvistos que chegavam a ser perseguidos nas ruas”.

[at a certain time in the United Kingdom, men who dared use umbrellas “were so ill thought of that they were persecuted in the streets.”]


:: IMPORTUNAÇÃO INSUPORTÁVEL ::

Kim Brooks, A Portrait of the Artist As a Young Mom

Byron teria dormido com 200 mulheres no decorrer de um ano, declarando, depois que sua esposa deu à luz o primeiro filho, que ele estava no inferno, e então engravidou a meia-irmã dela. Baudelaire ansiava por escapar da “importunação insuportável das mulheres com quem vivo”. Verlaine tentou atear fogo em sua esposa. Hemingway se casou com quatro mulheres e, após uma das cerimônias, teria pedido a um barman um copo de cicuta. A filha de 12 anos de Faulkner certa vez pediu para ele não beber no aniversário dela, e ele se recusou, dizendo: “Ninguém se lembra dos filhos de Shakespeare”.

[Byron is reported to have slept with 200 women in the course of one year, declaring after his wife gave birth to his first child that he was in hell, then impregnating his half-sister. Baudelaire longed for escape from “the unendurable pestering of the women I live with.” Verlaine tried to light his wife on fire. Hemingway married four women and after one ceremony reportedly asked a bartender for a glass of hemlock. Faulkner’s 12-year-old daughter once asked him to not drink on her birthday, and he refused, telling her, “No one remembers Shakespeare’s children.”]


:: INDIGNIDADES ::
Barbara Ehrenreich, Nickel and Dimed

Se [os chefes] o fizerem sentir indigno o suficiente, você poderá chegar a pensar que o que lhe pagam é o que você realmente vale.

[If you’re made to feel unworthy enough, you may come to think that what you’re paid is what you are actually worth.]


:: O PATRONO DA HORTALIÇA ::

Gustave Flaubert, Cartas exemplares

A Louise Colet
Novembro 1851

É bonito ser um grande escritor, ter os homens na frigideira de sua frase e fazê-los saltitar como castanhas. 


:: LADRÕES DE TEMPO ::
Barbara Ehrenreich, Nickel and Dimed
Sobre seu emprego no Wal-Mart

Nada de piercings no nariz ou outras joias faciais, aprendemos; brincos devem ser pequenos e discretos, não pendurados; nada de jeans azul, exceto às sextas-feiras, e aí você precisa pagar um dólar pelo privilégio de usá-los. Nada de “pastar”, isto é, comer de embalagens de alimentos que de alguma forma se abriram; nada de “roubo de tempo”. Este último me faz divagar no rumo da ficção científica: “E enquanto os ladrões de tempo retornavam ao ano 3420, carregados de fins de semana e dias de folga saqueados do século XXI”…

[No nose or other facial jewelry, we learn; earrings must be small and discreet, not dangling; no blue jeans except on Friday, and then you have to pay $1 for the privilege of wearing them. No “grazing,” that is, eating from food packages that somehow become open; no “time theft.” This last sends me drifting off in a sci-fi direction: And as the time thieves headed back to the year 3420, loaded with weekends and days off looted from the twenty-first century…]


:: CIPRESTE PIRAMIDAL ::
Gustave Flaubert, Cartas exemplares

A Jules Duplan
10-11 maio 1857

Estou prestes a ler uma memória de 400 páginas sobre o cipreste piramidal, porque há ciprestes no pátio do templo de Astarté; isto basta para lhe dar uma ideia do resto.

:: A MÃE DE TODAS AS BIBLIOTECAS ::
Sci-Hub, LibGen e ZLib entraram num bar

Me disseram que cinco dos meus onze livros estão lá.
https://annas-archive.org/


:: ACOMPANHAMENTO ::
Barbara Ehrenreich, Nickel and Dimed

Eu fico amiga de Timmy, o garoto branco de quatorze anos que ajuda os garçons à noite, dizendo que não gosto que as pessoas coloquem seus assentos de bebê em cima das mesas: isso faz com que o bebê pareça um acompanhamento do prato principal.

[I bond with Timmy, the fourteen-year-old white kid who buses at night, by telling him I don’t like people putting their baby seats right on the tables: it makes the baby look too much like a side dish.]


:: ÓBVIO ::
Sidarta Ribeiro, O oráculo da noite

“Que parte de p menor do que 0,05 corrigido para Bonferroni você não entendeu?” 


:: PENTEADOS ::

W. David Marx, Status and Culture

O filósofo Montesquieu observou, no século XVIII: “Os penteados das mulheres estão subindo cada vez mais, até que uma revolução os derrube novamente. Houve um tempo em que, devido à enorme altura de seu penteado, o rosto de uma mulher ficava no meio do corpo. Em outra época, seus pés ocupavam a mesma posição.”

[The philosopher Montesquieu observed in the eighteenth century, “Women’s hairstyles gradually go up and up, until a revolution brings them down again. There was a time when because of their enormous height a woman’s face was in the middle of her body. At another time her feet occupied the same position.”]


:: TÃO DISTRAÍDO ::
Ruth Franklin, Shirley Jackson: A Rather Haunted Life

Sobre o livreiro Louis Scher:

Tão distraído que dizem que, certa vez, ele teria embrulhado a própria mão em um pacote de livros.

[So absentminded that he was said to have once wrapped up his own hand in a package of books.]


:: TÃO CANSADA ::
Sarah Manguso, Ongoingness

Esperando o bebê mamar ou parar de mamar ou arrotar ou soltar gases ou cocô líquido amarelo, eu adiei banhos, telefonemas, evacuações. Ignorei correspondências porque não tinha energia nem para dizer que estava tão cansada, e ninguém se importava que eu estivesse cansada — quem não está cansado? Antes de ter o bebê, lembro-me de me sentir cansada o tempo todo. Mas depois que ele veio, eu podia passar quatro dias em dois quartos, de pijamas, tão cansada que ficava quase cega.

[Waiting for the baby to feed or stop feeding or burp or pass wind or yellow liquid shit I postponed showers, phone calls, bowel movements. I ignored correspondence because I had no energy even to say I am so tired, and no one cared that I was tired—who isn’t tired? Before I had the baby I remember feeling tired all the time. But after he joined me I could spend four days in two rooms, pajama-clad, so tired I was almost blind.]


:: SITUAÇÃO ::
Barbara Ehrenreich, Nickel and Dimed

Mas o lar, neste caso, não é um lugar tranquilo; é mais parecido com o que se chama no Exército de “situação”.

[But home in this instance is not a restful place; it’s more like what is known in the military as a “situation.”]


:: FUNCHO ::
Sarah Manguso, Ongoingness

Num dia pós-parto, levei uma eternidade para lembrar a palavra “obsoleto”. No outro dia, “sugestionável”. No outro, “funcho”. A mãe de um bebê precisa de um léxico menor? Ela precisa de um léxico especificamente limitado? Então eu não precisava pensar em funcho? Em abstrações?

[One postpartum day it took me forever to remember the word obsolete. Another day, suggestible. Another, fennel. Does the mother of an infant need a smaller lexicon? Does she need a specifically limited lexicon? Did I not need to think about fennel then? About abstractions?]


:: UMA FILEIRA DE FORMIGAS ::
W. David Marx, Status and Culture

A cultura pop aplaude o cantor de heavy metal Ozzy Osbourne por cheirar grandes quantidades de substâncias prejudiciais à saúde, incluindo uma fileira de formigas vivas — um comportamento hedonista que certamente destruiria a carreira de um gerente médio em uma seguradora.

[Pop culture celebrates the heavy metal singer Ozzy Osbourne for snorting copious amounts of unhealthy substances, including a line of live ants—hedonistic behavior that would surely stifle the career of a middle manager at an insurance company.]


:: PIKACHU LIBRE ::
Ben Taub, Russia’s Espionage War in the Arctic

“Dois anos atrás, recebemos muitas dicas sobre pessoas fotografando um aparelho secreto”, disse ele. “Descobrimos que havia um Pokémon raro lá”, explicou, referindo-se ao jogo de realidade aumentada Pokémon Go.

[“Two years ago, we got a lot of tips about people photographing a covert safe house,” he said. “We found out that a rare Pokémon was there,” in the augmented-reality game Pokémon Go.]


:: A INTERFACE MANTEIGA-MANTEIGA ::
Barbara Ehrenreich, Had I Known

Nós passávamos manteiga em tudo, de brócolis a brownies, e teríamos passado manteiga na própria manteiga se não fossem os problemas de tração apresentados pela interface manteiga-manteiga.]

[We buttered everything from broccoli to brownies and would have buttered butter itself if it were not for the problems of traction presented by the butter-butter interface.]


:: THE WIRE ::
Revista Sino Azul, Jan-Fev 1952

>>>>

Agradecimentos: Google Translator, Dolce Café e Gigio.

“Para ser lido na maldita hora da noite em que tudo é engraçado – logo após a hora em que nada faz sentido e antes daquela em que tudo faz sentido” (Stephanie A., a moradora mais ilustre da rua Paulo da Silva Gordo) 

::: www.hortifruti.org :::

Pequeno aviso legal: A Hortaliça será distribuída gratuitamente através desta plataforma. Não iremos produzir conteúdo fechado para assinantes por acreditar no livre acesso à informação, arte e cultura. A tarifa zero será bancada pelos leitores e leitoras e leitões que tiverem condições financeiras (e vontade) de colaborar. A estes, pedimos que nos apoiem escolhendo um plano de assinatura ou depositando moedas de ouro aleatórias para a chave pix: vmbarbara@yahoo.com. Vamos apoiar o jornalismo independente, a literatura de guerrilha e a bobice semiprofissional.

A Hortaliça – #099

Posted: 8th outubro 2024 by Vanessa Barbara in Hortaliças

O micróbio oficial da cidade de São Paulo

#099 – São Paulo, 8 de outubro de 2024
Os segredos da cena underground do oboé
Na Rua do Hospício, 16-A
www.hortifruti.org

“Fora fora coleante tentáculo”
(Sylvia Plath)

Viver na Alemanha Oriental era uma eterna Eiertanz – como dançar em um chão coberto de ovos”
(Burkhard Bilger)

:: EDITORIAL ::

Nesta edição, brindamos o leitor com uma vasta coleção de sementes de hortaliça, as quais se afiançam serem novas, e de muito boa qualidade, por serem mandadas pela própria cultivadora.

Aproveitem.


:: POLTERGEISTS E CRIANÇAS ::

Shirley Jackson, “The Ghosts of Loiret

Nunca gostei da teoria de que os poltergeists só entram em casas onde há crianças, porque acho que é simplesmente demais para uma mesma casa ter poltergeists e crianças.

[I have never liked the theory that poltergeists only come into houses where there are children, because I think it is simply too much for any one house to have poltergeists and children.]


:: PROGRAMAÇÃO EXPLOSIVA ::
Gary Shteyngart, “Out of My Mouth Comes Unimpeachable Manly Truth

“Além disso, as televisões na União Soviética costumavam explodir”, eu digo. “A certa altura, sessenta por cento dos incêndios domésticos em Moscou eram causados ​​por televisões explodindo.”

[“Also, the televisions in the Soviet Union used to explode,” I say. “Sixty percent of the house fires in Moscow used to be caused by exploding televisions at one point.”]


:: NENHUM CONFORTO ::

Oliver Sacks, On the Move: A Life

Quando meu amigo Ren Weschler o visitou uma vez e perguntou como ele estava, Michael respondeu: “Estou em Nenhum Conforto”. Ren pareceu perplexo, e Michael teve que explicar que Nenhum Conforto (Little Ease) era uma cela na Torre de Londres tão pequena que um homem não conseguia ficar de pé nem deitar nela, ou seja, nunca encontraria conforto.

[When my friend Ren Weschler visited him once and asked how he was, Michael replied, “I am in Little Ease.” Ren looked baffled, and Michael had to explain that Little Ease was a cell in the Tower of London so small that a man could neither stand up nor lie down in it, could never find any ease.]


:: ESTAR NO MESMO PLANETA ::
Bill Hayes, Insomniac City

16 out 2013: Eu, mergulhado na banheira, O. [Oliver Sacks] no vaso sanitário, falando, falando sobre o que ele tem pensado e escrito — pequenos textos pessoais, talvez para um livro de memórias. Ele trouxe consigo dois travesseiros para sentar e uma maçã vermelha muito grande. Ele abre bem a boca e dá uma mordida enorme. Eu o observo mastigando por um bom tempo. Depois que ele termina, eu peço: “Morda um pedaço para mim”. Ele faz isso, tira a maçã da boca e põe o pedaço na minha boca. Continuamos conversando. Eu adiciono mais água quente. A cada duas mordidas, ele me dá uma. Há um momento de silêncio e então, aparentemente do nada, O. diz: “Fico feliz de estar no planeta Terra com você. Seria muito mais solitário de outra forma.”

[10-16-13: I, soaking in the bath, O on the toilet, talking, talking about what he’s been thinking and writing—short personal pieces, for a memoir perhaps. He had brought with him two pillows to sit on and a very large red apple. He opens his mouth wide and takes a gigantic bite. I watch him chewing for quite a while. After he finishes, “Bite me off a piece,” I say. He does so, dislodges the apple from his mouth, and puts the piece in my mouth. We keep talking. I add more hot water. Every other bite, he gives to me. There is a quiet moment and then, seemingly apropos of nothing, O says: “I am glad to be on planet Earth with you. It would be much lonelier otherwise.”]


:: ERA FOME ::
Alba de Céspedes, Caderno proibido

Parecia-me que até o sonho de ir a Veneza, acarinhado por tanto tempo, na realidade era simplesmente fome. 


:: ENTRE OS SELVAGENS ::
Shirley Jackson, Life Among the Savages

Nessa época, Sally abandonou qualquer noção de ser um membro cooperativo de uma família, se autodenominou “Tigre” e empreendeu uma guerra incessante e aparentemente infinita contra as roupas, as escovas de dente, todos os vegetais verdes e a cama. Sua principal arma era o chiclete, que ela roubava dos bolsos de Laurie e com o qual ela podia fazer milagres de construção em seu próprio cabelo, livros e, uma vez, na máquina de escrever do pai.

[Sally at this time gave up any notion of being a co-operative member of a family, named herself “Tiger” and settled down to an unceasing, and seemingly endless, war against clothes, toothbrushes, all green vegetables, and bed. Her main weapon was chewing gum, which she stole out of Laurie’s pockets and with which she could perform miracles of construction on her own hair, books, and, once, her father’s typewriter.]


:: MICRÓBIO OFICIAL DO ESTADO DE NJ ::
Dhruv Khullar, “How Machines Learned to Discover Drugs

Na mesma época, pesquisadores constataram que uma bactéria presente no solo “fortemente adubado” de Nova Jersey produzia estreptomicina, um antibiótico que se tornou o primeiro tratamento eficaz para tuberculose. (A bactéria é agora o micróbio oficial do estado de Nova Jersey.)

[Around the same time, researchers reported that a bacterium in “heavily manured” New Jersey soil produced streptomycin, an antibiotic that became the first effective treatment for tuberculosis. (The bacterium is now New Jersey’s official state microbe.)]


:: CENA UNDERGROUND DO OBOÉ ::
Alex Ross, “Secrets of the East German Oboe Underground

Os oboístas têm a reputação de serem estranhos. Segundo um mito persistente, soprar ar através de uma palheta dupla em um tubo estreito coloca uma pressão excessiva no cérebro.

[Oboists have a reputation for being odd. A durable myth holds that blowing air through a double reed into a narrow tube puts undue pressure on the brain.]


:: GÊNIAS DA MATERNIDADE ::
Jenny Offill, Dept. of Speculation

Algumas noites depois, eu espero secretamente ser uma gênia. Por que outra razão nenhuma quantidade de pílulas para dormir consegue derrubar o meu cérebro? Mas, de manhã, minha filha me pergunta o que é uma nuvem e eu não consigo responder.

[A few nights later, I secretly hope that I might be a genius. Why else can no amount of sleeping pills fell my brain? But in the morning my daughter asks me what a cloud is and I cannot say.]


:: GOTA A GOTA ::
Rachel Cusk, A Life’s Work

Cada vez mais, a maternidade vai me parecendo não uma condição, e sim um trabalho, o trabalho de certos períodos que começam e terminam, e fora deles eu sou livre. Cada vez mais, minha filha faz parte dessa liberdade, algo novo que está sendo adicionado, gota a gota, diariamente, à soma do que sou.

[Increasingly, motherhood comes to seem to me not a condition but a job, the work of certain periods, which begin and end and outside of which I am free. My daughter is more and more a part of this freedom, something new that is being added, drop by daily drop, to the sum of what I am.]


:: É OURO ::
Judson Brewer, Unwinding Anxiety

Penso nos meus pacientes com TAG (Transtorno de Ansiedade Generalizada) como atletas olímpicos no “esporte” da ansiedade de resistência — eles são capazes de se preocupar por mais tempo e de forma mais intensa do que qualquer outra pessoa no planeta.

[I think of my patients with GAD as Olympians in the endurance “sport” of anxiety—they can worry longer and harder than anyone else on the planet.]


:: MEU CURSO DE ESCRITA CRIATIVA ::

Alice Weaver Flaherty, The Midnight Disease

Um poeta disse que não existe isso de bloqueio criativo se os seus padrões forem baixos o suficiente.

[One poet has said that there is no such thing as writer’s block if your standards are low enough.]


:: PIPOQUEIRO ::
Victor Heringer, Vida desinteressante

Se um faltasse, outro tomaria seu lugar, por isso jamais houve escassez de pipoca na minha infância. Descobri cedo que, onde há mais de trinta pessoas reunidas, lá estará o vendedor ambulante. 


:: ESPERA ::
Lucia Berlin, A Manual for Cleaning Women

As pessoas pobres esperam muito. Assistência social, filas de desemprego, lavanderias, cabines telefônicas, prontos-socorros, prisões etc.

[Poor people wait a lot. Welfare, unemployment lines, laundromats, phone booths, emergency rooms, jails, etc.]


:: CONFISSÃO ::

Ouvida no ponto de ônibus

“As minhas amizades nem gostam de sair comigo porque eu sou muito chata.”

Correio Mercantil, ano X, nº 352. Rio de Janeiro, 19 de dezembro de 1853

>>>>

Agradecimentos: Renato Sedano Onofri, Google Translator.

“Para ser lido na maldita hora da noite em que tudo é engraçado – logo após a hora em que nada faz sentido e antes daquela em que tudo faz sentido” (Stephanie A., a moradora mais ilustre da rua Paulo da Silva Gordo) 

::: www.hortifruti.org :::

Pequeno aviso legal: A Hortaliça será distribuída gratuitamente através desta plataforma. Não iremos produzir conteúdos fechados para assinantes por acreditar no livre acesso à informação, arte e cultura. A tarifa zero será bancada pelos leitores e leitoras e leitões que tiverem condições financeiras (e vontade) de colaborar. A estes, pedimos que nos apoiem escolhendo um plano de assinatura ou depositando moedas de ouro aleatórias para a chave pix: vmbarbara@yahoo.com. Vamos apoiar o jornalismo independente, a literatura de guerrilha e a bobice semiprofissional.

A Hortaliça – #098

Posted: 6th setembro 2024 by Vanessa Barbara in Hortaliças
Capa: “Desenho de observação”, Batata, 2023

Poodles agressivos e pombos tocando piano

#098 – São Paulo, 6 de setembro de 2024
O que uma pessoa normal faria?
Discite, o miseri, et causas cognoscite rerum*
www.hortifruti.org

Não estou outra vez muito mal. É a mesma vez.”
(autor desconhecido)

:: EDITORIAL ::

Passamos os últimos dias tentando identificar o autor dessa pérola acima, sem sucesso. Primeiro pensamos em Flaubert, mas relemos todo o conteúdo de Cartas exemplares e nada. Parecia mesmo algo dito em carta. Depois pensamos em Kafka. Mas de tanto pensar em Kafka ficamos imensamente deprimidos e desistimos de procurar.

Se algum leitor tiver uma pista de quem emitiu essa frase, com a qual nos identificamos muitíssimo, faça o favor de escrever: vmbarbara@yahoo.com.

Ah, esta edição contém os originais dos trechos citados, a pedidos dos leitores anglófonos. Ficou feio? Ficou. Mas é o que tem pra hoje.


:: MENOS ADIANTADO ::
Gustave Flaubert, Cartas exemplares

A Louise Colet
2h, 20 abril 1853

Quanto a mim, acabo ficando tão aborrecido comigo quanto com os outros. Há três semanas que estou a escrever dez páginas! Passo dias inteiros a mudar palavras repetidas, a evitar assonâncias! E quando trabalho bem, estou menos adiantado no fim do dia do que no começo. 


:: ANEDOTA SOBRE JAMES JOYCE ::
Stephen King, On Writing

De acordo com a história, um amigo veio visitá-lo um dia e encontrou o grande homem esparramado em sua escrivaninha em uma postura de desespero total. “James, o que há de errado?”, perguntou o amigo. “É o trabalho?” Joyce indicou assentimento sem nem levantar a cabeça para olhar o amigo. Claro que era o trabalho; não é sempre? “Quantas palavras você conseguiu hoje?”, o amigo continuou. Joyce (ainda em desespero, ainda esparramado de bruços em sua mesa): “Sete.” “Sete? Mas James… isso é bom, pelo menos para você!” “Sim”, disse Joyce, finalmente erguendo o olhar. “Suponho que sim… mas não sei em que ordem elas vão!”

[According to the story, a friend came to visit him one day and found the great man sprawled across his writing desk in a posture of utter despair. ‘James, what’s wrong?’ the friend asked. ‘Is it the work?’ Joyce indicated assent without even raising his head to look at the friend. Of course it was the work; isn’t it always? ‘How many words did you get today?’ the friend pursued. Joyce (still in despair, still sprawled facedown on his desk): ‘Seven.’ ‘Seven? But James . . . that’s good, at least for you!’ ‘Yes,’ Joyce said, finally looking up. ‘I suppose it is . . . but I don’t know what order they go in!’]


:: SER TORRADEIRA ::
Mihaly Csikszentmihalyi, Flow

É como se, quando a torradeira da minha mãe pifou, eu me perguntasse: “Se eu fosse essa torradeira e não funcionasse, o que poderia estar errado comigo?”

[“Like when my mother’s toaster went on the fritz, I asked myself: ‘If I were that toaster and I didn’t work, what would be wrong with me?’”]


:: SER SALMÃO ::

David Adam, The Man Who Couldn’t Stop

Em 2005, neurocientistas na Califórnia colocaram um salmão do Atlântico comprado de um peixeiro local em uma máquina de ressonância magnética. Eles mostraram ao peixe morto uma série de fotografias enquanto escaneavam sua reação. “Ao salmão”, os cientistas relataram mais tarde, “foi pedido que identificasse qual emoção o indivíduo na foto estava sentindo”. Parece tolo, mas é um passo comum e necessário para calibrar máquinas de ressonância magnética e ver se está tudo bem antes que voluntários humanos sejam introduzidos.

Os cientistas da Califórnia também tentaram com uma abóbora, que tem aproximadamente o mesmo tamanho e peso de uma cabeça humana. As amostras de controle — animal ou vegetal — obviamente não devem produzir resultados.

No entanto, quando os neurocientistas analisaram a respostas dos exames do salmão, encontraram uma coisa curiosa. Os resultados pareciam mostrar o salmão pensando. Diante das fotografias, partes de seu cérebro de peixe se iluminaram. O sinal anômalo deveu-se a uma falha técnica e estatística, um ruído aleatório na forma com que o software da máquina processava os sinais.

[In 2005, neuroscientists in California put an Atlantic salmon bought from a local fishmonger into their MRI machine. They showed the dead fish a series of photographs and scanned for its response. ‘The salmon’, the scientists later reported, ‘was asked to determine what emotion the individual in the photo must have been experiencing.’ It sounds silly, but it’s a common and necessary step to calibrate MRI machines and check all is good before human volunteers are introduced. The California scientists tried it with a pumpkin too, because one is about the same size and weight as a human head. The test samples – animal or vegetable – of course are not supposed to yield results. Yet, when the neuroscientists looked at the output of the scans of the salmon, they found a curious thing. The results appeared to show the salmon thinking. Shown the photographs, parts of its fishy brain had lit up. The rogue signal was down to a technical and statistical glitch, random noise in the way the scanner’s computer software processed the signals.]


:: DIFÍCIL PLANEJAR O DIA ::
E. B. White, em perfil no New York Times

Eu acordo de manhã dividido entre o desejo de melhorar (ou salvar) o mundo e o desejo de aproveitar (ou saborear) o mundo. Isso torna difícil planejar o dia.

[I arise in the morning torn between a desire to improve (or save) the world and a desire to enjoy (or savor) the world. This makes it hard to plan the day.]


:: VEM, PRIMAVERA ::

Charles Darwin, The Voyage of the Beagle

Que diferença faz o clima no aproveitamento da vida!

[What a difference does climate make in the enjoyment of life!]


:: LEVANTA-TE E ANDA ::
Michael Lewis, The Undoing Project

A regra de Amos [Tversky], sempre que ele queria sair de qualquer reunião, era simplesmente se levantar e ir embora. Basta começar a andar e você ficará surpreso com o quão criativo você se tornará e quão rapidamente encontrará as palavras para sua desculpa, ele dizia. A atitude de Amos em relação à desordem da vida diária era uma parte de sua estratégia para lidar com as demandas sociais.

[Amos’s rule, whenever he wanted to leave any gathering, was to just get up and leave. Just start walking and you’ll be surprised how creative you will become and how fast you’ll find the words for your excuse, he said. His attitude to the clutter of daily life was of a piece with his strategy for dealing with social demands.]


:: BOLETOS MENSAIS ::
Alba de Céspedes, Caderno proibido

Giacinta garantia persuadir o marido a pagar todo mês o boleto da luz, cujo vencimento é bimestral; Luisa sustentava que é preferível aumentar a conta das despesas com as crianças: “É o único método seguro”, afirmava, rindo, e nesse riso fazia estremecer o ramalhetezinho de violetas pregado no cetim branco do chapéu. “Nas férias, sempre que perco no jogo, as crianças têm uma amigdalite ou um resfriado.”


:: NO HARM DONE ::
Mary Norris, Between You & Me

“Primeiro nós tiramos as pedras, Alice. Depois tiramos os seixos. Depois tiramos a areia, e a voz do escritor vem à tona. Nenhum dano causado.”

[“First we get the rocks out, Alice. Then we get the pebbles out. Then we get the sand out, and the writer’s voice rises. No harm done.”]


:: FANTASIAS MATERNAS ::

Lucy Jones, Matrescence

Brincávamos indiretamente sobre o estresse que estávamos sofrendo, sobre a “fantasia materna do hospital” — a ideia de que quebrar um membro menor seria uma boa maneira de descansar e de ser cuidado por uma noite.

[We joked obliquely about the stress we were under, about the ‘maternal hospital fantasy’ – the idea that breaking a minor limb would be a good way to get a rest and be looked after for a night.]


:: POODLES AGRESSIVOS ::
Tara Haelle e Emily Willingham, The Informed Parent

Também não há como rastrear com precisão vários incidentes de um único cão, a fim de que um poodle particularmente agressivo não seja contabilizado como cinco cães diferentes.

[There is also no way to accurately track multiple incidents from a single dog so that one particularly aggressive poodle isn’t counted as five different dogs.]


:: OFENSAS LITERÁRIAS ::
Kathryn Schulz, “The Secrets of Suspense”

Não posso, em sã consciência, recomendar Um par de olhos azuis, que traz à mente a observação de T. S. Eliot sobre [Thomas] Hardy — que “às vezes seu estilo toca o sublime sem nunca ter passado pelo estágio de ser bom”.

[I cannot in good conscience recommend “A Pair of Blue Eyes,” which brings to mind T. S. Eliot’s observation about Hardy—that “at times his style touches sublimity without ever having passed through the stage of being good.”]


:: SEMPRE UM HOMEM ::
Rebecca Solnit, Os homens explicam tudo para mim

Alguns homens explicaram por que explicar coisas para mulheres não era realmente um fenômeno de gênero.

[Some men explained why men explaining things to women wasn’t really a gendered phenomenon.] 


:: PENSANDO BEM ::
Oliver Sacks, On the move

Jerry tem sido um bom amigo e, de uma forma ou de outra, uma espécie de guia e mentor implícito. Parece não haver limites para sua curiosidade e conhecimento. Ele tem uma das mentes mais amplas e racionais que já conheci, com uma vasta base de conhecimento de todos os tipos, mas é uma base que se encontra continuamente sob questionamento e escrutínio. (Já o vi parar de repente no meio de uma frase e dizer: “Não acredito mais no que eu estava prestes a dizer.”)

[Jerry has been a good friend and, at one level and another, a sort of guide and implicit mentor. There seem no limits to his curiosity and knowledge. He has one of the most spacious, thoughtful minds I have ever encountered, with a vast base of knowledge of every sort, but it is a base under continual questioning and scrutiny. (I have seen him suddenly stop in mid-sentence and say, “I no longer believe what I was about to say.”)]


:: O MÁXIMO QUE PODEMOS FAZER ::
Bill Hayes, Insomniac City

22 de abril de 2015. O[liver Sacks]: “O máximo que podemos fazer é escrever — de forma inteligente, criativa, crítica e evocativa — sobre como é viver no mundo neste momento.”

[4-22-15: O: “The most we can do is to write—intelligently, creatively, critically, evocatively—about what it is like living in the world at this time.”]


:: POMBOS TOCANDO PIANO ::

Michael Lewis, The Undoing Project

[Skinner] ensinou pombos a dançar, a jogar pingue-pongue e a martelar “Take Me Out to the Ball Game” no piano.

[He taught pigeons to dance and play Ping-Pong and bang out “Take Me Out to the Ball Game” on a piano]. 


:: ESCRITORES FALANDO ::

Escrevemos e narramos a segunda história neste episódio recente do podcast Rádio Novelo Apresenta. É como um pombo tocando piano.

>>>>

*Do latim: “Aprendei, ó infelizes, e conhecei as causas das coisas”, Pérsio, Satirae, 3.66. Em Das terras bárbaras, de Ricardo da Costa Aguiar.

“Para ser lido na maldita hora da noite em que tudo é engraçado – logo após a hora em que nada faz sentido e antes daquela em que tudo faz sentido” (Stephanie A., a moradora mais ilustre da rua Paulo da Silva Gordo) 

::: www.hortifruti.org :::

Pequeno aviso legal: A Hortaliça será distribuída gratuitamente através desta plataforma. Não iremos produzir conteúdos fechados para assinantes por acreditar no livre acesso à informação, arte e cultura. A tarifa zero será bancada pelos leitores e leitoras e leitões que tiverem condições financeiras (e vontade) de colaborar. A estes, pedimos que nos apoiem escolhendo um plano de assinatura ou depositando moedas de ouro aleatórias para a chave pix: vmbarbara@yahoo.com. Vamos apoiar o jornalismo independente, a literatura de guerrilha e a bobice semiprofissional.

A Hortaliça – #097

Posted: 7th agosto 2024 by Vanessa Barbara in Hortaliças

É ouro rosé para o Brasil

#097 – São Paulo, 7 de agosto de 2024
Consulte-nos sobre seus problemas avícolas
Manduca, jam coctum est*
www.hortifruti.org

“Sabe, Haroldo, tem dias em que nem a minha cueca da sorte com estampa de foguete dá conta.”
(Calvin)

“Agorafobia! Fiquei pensando: Taí uma coisa que eu poderia tentar agora.”
(Joyce Carol Oates)

:: EDITORIAL ::

Nesta edição, a delegação olímpica de A Hortaliça resolve praticar um de seus esportes favoritos – ler os relatórios da PF na íntegra – e compartilha com a torcida os melhores momentos de nosso mais recente thriller policial. Com vocês, o divertidíssimo relatório de 2.528 páginas que indiciou Jair Bolsonaro e seus comparsas por um esquema de venda de joias recebidas de autoridades estrangeiras.

É ouro rosé para o Brasil.


:: EQUILÍBRIO MENTAL ::
Relatório da PF sobre o roubo das joias, p. 118

Essas duas mensagens, assim como as fotos enviadas anteriormente das joias e dos certificados, também foram encaminhadas da conversa que MAURO CID possuía consigo mesmo.


:: PROFISSIONAIS ::
Relatório da PF sobre o roubo das joias, p. 2022-23

Desta forma, essa equipe policial, durante a análise do material apreendido e com as informações coletadas durante a investigação, acredita que MAURO CID, diante dos contatos salvos com o mesmo nome “Nicholas”, tenha enviado as fotos das esculturas para Nicholas Luna acreditando estar enviando as mensagens para Nicholas Fortuna.


:: ARE YOU INTERESTING? ::
Relatório da PF sobre o roubo das joias, p. 2075


:: PROFISSIONAIS 2 ::
Relatório da PF sobre o roubo das joias, p. 1981

Nas trocas de e-mail acima, a empresa Crown and Caliber informa que recebeu a solicitação de venda do relógio GIRARD-PERREGAUX Earth to Sky Edition Watch 49555-1-433-BH6A e que havia enviado outro e-mail contendo a oferta sobre o conjunto.

A troca de e-mails prossegue. Nela fica claro que MAURO CID teria enviado a proposta de vendas para outras lojas, e que havia recusado a proposta da Crown and Caliber de forma equivocada. No e-mail ele pede para a proposta ser reenviada.


:: ADVOGADOS MALUCOS ::
Relatório da PF sobre o roubo das joias, p. 1928-30


:: SELVA ::
Relatório da PF sobre o roubo das joias, p. 1872

:: CHEGA! CHEGA! ::
Colm Tóibín, “Ten rules for writing fiction

Se você precisa ler, então, para se alegrar, leia a biografia de escritores que ficaram loucos.


:: TRÊS CRISTOS ::
Leonard Mlodinow, Subliminar

Em 1959, o psicólogo social Milton Rokeach reuniu três pacientes de psiquiatria para habitar o mesmo quarto no hospital Ypsilanti State, em Michigan. Os três pacientes achavam que eram Jesus Cristo. Já que pelo menos dois tinham de estar enganados, Rokeach imaginou como eles processariam em conjunto essa ideia. 


:: TRISTE DEMAIS ::
Jeffrey Eugenides, As virgens suicidas

Um sanduíche comido pela metade jazia esquecido no patamar, onde alguém tinha se sentido triste demais para terminar de comê-lo. 


:: E CORUJAS ::
Julian Barnes, O sentido de um fim

As coisas que eram tratadas pela Literatura: amor, sexo, moralidade, amizade, felicidade, sofrimento, traição, adultério, bondade e maldade, heróis e vilões, culpa e inocência, ambição, poder, justiça, revolução, guerra, pais e filhos, mães e filhas, o indivíduo contra a sociedade, sucesso e fracasso, assassinato, suicídio, morte, Deus. E corujas. 


:: ESQUILOS DE ESQUI ::

David McRaney, You Are Not So Smart

Por exemplo, se você deseja ensinar um esquilo a praticar esqui aquático, você só precisa começar aos poucos e ir aumentando os esforços.


:: PENSE POSITIVO ::
Oliver Burkeman, The Antidote

Se você estiver sendo torturado lentamente até a morte, você sempre pode ser torturado ainda mais lentamente até a morte.

Reflexo do general Mauro Lourena Cid


:: É ESTRANHO ::
Oscar Wilde, O retrato de Dorian Gray

É estranho, mas dizem que todo mundo que desaparece é visto em San Francisco.


:: INSCRIÇÃO EM UM TRAVESSEIRO ::

Não passar a ferro.


:: HOMENS BRANCOS ::

Harrison Salisbury, ex-editor do NYT
Citado por Gay Talese, O reino e o poder

Quando deixo cair um pedaço de papel no chão, é porque quero que ele fique lá.


:: DISTRAÇÕES ::

Gustave Flaubert, Madame Bovary

Seu companheiro, porém, lhe parecia muito esquisito, pois muitas vezes Léon se estirava na cadeira, distendendo os braços, e se queixava da vida.
– É porque não procurava distrações – dizia o preceptor.
– Quais?
– Eu, no seu lugar, teria um torno.


:: HOJE ::

Emily Dickinson em uma carta

A Existência desbancou os Livros. Hoje eu matei um Cogumelo.


:: SOBRE CHECADORES E REVISORES ::
Mary Norris, Between You & Me

Você quer ter certeza de que, ao sair de casa, a etiqueta na parte de trás do seu colarinho não está aparecendo – a menos, é claro, que esteja deliberadamente vestindo suas roupas do avesso.


:: DIÁLOGOS ALEATÓRIOS ::

Dead Man (Jim Jarmusch, 1995)

– Conhece Cole Wilson?
– Claro! Todos o conhecem, é uma lenda!
– Ele matou os pais.
– Ele o quê?
– Ele matou os pais.
[pausa demorada]
– Os dois?

>>>>

*“Coma, já está cozido”. Palavras que teriam sido pronunciadas por São Lourenço, mártir da igreja católica, enquanto queimava na fogueira.

Agradecimentos: Fausto Salvadori, Érico Assis, Alexandre Morgado, Toninho Gonçalves, Fernando Gherardini, Lucas Pessoa, Roberto Bencz, Taynara Borges, Luis Maian, Xiko Lopes, José Ricardo Alves, André Meneguel.

“Para ser lido na maldita hora da noite em que tudo é engraçado – logo após a hora em que nada faz sentido e antes daquela em que tudo faz sentido” (Stephanie A., a moradora mais ilustre da rua Paulo da Silva Gordo) 

::: www.hortifruti.org :::

Pequeno aviso legal: A Hortaliça será distribuída gratuitamente através desta plataforma. Não iremos produzir conteúdos fechados para assinantes por acreditar no livre acesso à informação, arte e cultura. A tarifa zero será bancada pelos leitores e leitoras e leitões que tiverem condições financeiras (e vontade) de colaborar. A estes, pedimos que nos apoiem escolhendo um plano de assinatura ou depositando moedas de ouro aleatórias para a chave pix: vmbarbara@yahoo.com. Vamos apoiar o jornalismo independente, a literatura de guerrilha e a bobice semiprofissional.

A Hortaliça – #096

Posted: 15th julho 2024 by Vanessa Barbara in Hortaliças, Sem categoria

Sorrindo para as batatas

#096 – São Paulo, 15 de julho de 2024
Para aqueles que só pensam na equação de Boltzmann
www.hortifruti.org

Um verdadeiro fracasso não precisa de justificativa. É um fim em si mesmo.
(Gertrude Stein)

“Destinados, como Aristodemos, o Trêmulo, e Roberto Durán, à vergonha e à humilhação?”
(Scott Stossel)

:: EDITORIAL ::

Certo dia, Henry James entendeu que não conseguiria bancar sua vida luxuosa na Europa trabalhando com esmero, então decidiu escrever mais rápido. Na época, morava em um quarto com varanda no Hôtel de Rome; o sol batia na janela aberta e ele se sentava em uma escrivaninha de frente para a Via del Corso. Fico imaginando o jovem aristocrata abusando nos advérbios, empregando todo tipo de chavão, redigindo capítulos muito curtos e inventando o clickbait. Ele mal conseguiria olhar para o que escreveu enquanto estava no processo — talvez prendesse a respiração enquanto trabalhava. Imagino também que ele tivesse de tomar vários banhos demorados depois. Essa intenção de escrever mais rápido não parece ter durado muito.

Em todo caso, este editorial é dedicado a ele.


:: OS PROVENTOS DE HENRY JAMES ::

Percy LubbockPortrait of Edith Wharton

Certa vez, [Edith] Wharton mencionou que o automóvel onde eles estavam havia sido adquirido com os proventos de seu romance mais recente. “Com os proventos do meu romance mais recente”, disse Henry James de forma reflexiva, “eu comprei um pequeno carrinho de mão, no qual a bagagem dos meus convidados é transportada da estação de trem até a minha casa. Ele está precisando de uma demão de tinta. Com os proventos do meu próximo romance eu devo mandar pintá-lo.”


:: DIÁRIOS ::
Franz Kafka, Diaries

13 V (1922) 
Nada

17 (Maio 1922)
Triste


:: A EQUAÇÃO DE BOLTZMANN ::
Scott DodelsonModern Cosmology

Nos anos 1960, uma revista de circulação nacional publicou um cartum que mostrava dezenas de executivos caminhando pelas ruas de Manhattan com um ar muito importante e sério. Sobre cada uma daquelas cabeças, balões de pensamento revelavam seu verdadeiro foco: todos estavam imaginando cenas de sexo selvagem. Pelo menos em alguns aspectos, a equação de Boltzmann desempenha um papel semelhante para físicos e astrônomos: ninguém nunca fala sobre isso, mas todos estão sempre pensando no assunto.


:: MEMÓRIA POR MEMÓRIA ::
Olga RavnMy Work

Devo resgatar como de um incêndio as partes que ainda são importantes para mim, as partes que escrevi enquanto ainda estava lá, como se o tempo fosse uma fogueira que devorasse, memória por memória, a pessoa que fui para que eu não me lembre mais, muito menos entenda, o que aconteceu.


:: SE A GENTE NÃO GRITA NA HORA ::

Tatiana Salem Levy, Melhor não contar

Há coisas que, se a gente não grita na hora, num ataque de raiva, virando o mundo pelo avesso, elas se encrustam na gente, se agarram aos nossos órgãos, com unhas afiadas, e vão ganhando solidez e imobilidade com o passar do tempo — fazendo com que se torne cada vez mais difícil a sua transformação em palavras.


:: HOMENS TOLOS EM CONVERSÍVEIS ::

Miranda July, All Fours

Ainda que as crises de meia-idade possam ser apenas mal vistas, é possível que cada uma delas tenha sido profunda e única, e foram só alguns poucos homens tolos em conversíveis vermelhos que lhes deram má fama. Imaginei cumprimentar um homem desses de forma solene: “Vejo que você chegou a um momento de grandes questionamentos. Deus esteja com você, buscador”.


:: EU CHUTARIA UNS 30% ::

Abigail Tucker, Mom Genes

Ainda mais impressionante é que os cérebros das novas mães pareciam muito diferentes dos seus antigos cérebros, conforme tomografias tiradas antes de engravidarem. Essas perdas de massa cinzenta podem totalizar até 7% em algumas mães, descobriu outro estudo. Mudanças dessa magnitude são praticamente inéditas em humanos adultos, com a possível exceção de sobreviventes de traumatismos cranianos.


:: NA MÉDIA ::

Matt Parker, Humble Pi

Após o censo de 2011, o Instituto Australiano de Estatísticas revelou quem era o australiano médio: uma mulher de 37 anos que, entre outras coisas, “mora com o marido e os dois filhos (um menino de 9 e uma menina de 6 anos) numa casa com três quartos e dois carros no subúrbio de uma das capitais da Austrália”. E então descobriram que essa mulher não existe. Eles vasculharam os registros e nenhuma pessoa atendeu a todos os critérios para ser considerada verdadeiramente mediana.


:: TIPO ISSO ::

Stephen PileThe Ultimate Book of Heroic Failures

[Sobre o filme Offending Angels, de 2000]

Menos de vinte pessoas no Reino Unido pagaram para assisti-lo. Tirando os impostos e a comissão dos cinemas, o filme teve uma renda total de bilheteria de 17 libras.


:: MAIS UM BOM EXEMPLO ::

Stephen PileThe Ultimate Book of Heroic Failures

Depois da partida contra o Irã, metade do time das Maldivas foi até o técnico, Romulo Cortez, e disse que queria desistir do futebol.


:: SORRIA PARA AS BATATAS ::

T. Lobsang RampaLuz de vela

Uma porção de gente acredita que plantas evoluem e se tornam animais e os animais evoluem para se tornar seres humanos, mas isso não é verdade. Você nunca ouviu falar de um cavalo que virou vaca, não é, nem de uma alface que virou pássaro. (…) Portanto a evolução é essa: uma couve pode não ter muita consciência nesta Terra, mas assim mesmo as couves podem reconhecer as pessoas e as emoções. (…) A moral disso parece ser: sorria para as suas batatas e elas crescerão melhor para você!


:: CONFESSIONÁRIO DO AUTO-COMPLETE ::

Leslie JamisonSplinters

Toda vez que um amigo pesquisava alguma coisa no meu computador, meu sovaco pinicava de suor. O que poderia surgir do confessionário do meu preenchimento automático? Talvez aquelas madrugadas passadas assistindo a vídeos do Coro do Tabernáculo Mórmon no YouTube. Todos esses homens brancos de terno cantando “Amazing Grace”, como se fosse um escritório cheio de corretores de hipotecas convocados para o arrebatamento. Às vezes eu imaginava meu terapeuta dizendo: “Talvez você devesse começar a beber de novo?”.


:: MAIS DEPRESSÃO PÓS-PARTO ::
Olga RavnMy Work

Enquanto estiver escrevendo este livro, acho que permanecerei num estado de depressão pós-parto. Não escrever o livro é permanecer nessa ansiedade. Não escrever o livro é dar poder ao medo das palavras. Não escrever é não se tornar mãe, permanecer para sempre no limiar da maternidade. Escrever é entrar de cabeça nisso. Vamos ver o que há ali dentro. Ali está o meu destino. Ser mãe de alguém de hoje até eu morrer.


:: DIÁRIOS ::

Franz Kafka, Diaries

22 (Setembro 1917)
Nada

17 I (1922)
Pouco diferente


:: ESPIRITUALMENTE FALANDO ::

Heidi JulavitsThe Folded Clock

Talvez ela achou que engataria uma conversa mais interessante com um estranho que conheceu na universidade, em vez de alguém que conheceu, digamos, no Carnegie Deli. Qual é o lugar do homem no universo? O que determina o destino do indivíduo? Onde, espiritualmente falando, fica o metrô mais próximo?


:: OVOS PODRES ::

Mihaly CsikszentmihalyiFlow

Um amigo que gosta de cruzar oceanos sozinho em um veleiro me contou certa vez uma anedota que ilustra até onde os navegantes solitários às vezes têm de ir para manter a mente focada. Aproximando-se dos Açores numa travessia do Atlântico em direção ao leste, a cerca de 1,2 mil km da costa portuguesa, e depois de muitos dias sem ver um navio, ele avistou uma outra pequena embarcação seguindo na direção oposta.

Era uma oportunidade bem-vinda de visitar outro navegador, e os dois barcos recalcularam as rotas para se encontrar em mar aberto, lado a lado. O homem do outro barco esfregava o convés, que estava parcialmente coberto por uma substância amarela pegajosa e fétida. “Como você sujou tanto o seu barco?”, perguntou o meu amigo para quebrar o gelo. “Veja bem”, o outro respondeu, encolhendo os ombros, “é só um monte de ovos podres”. Meu amigo admitiu que não lhe parecia claro como tantos ovos podres acabaram espalhados pelo convés de um barco no meio do oceano.

“Bem”, disse o homem, “a geladeira quebrou e os ovos estragaram. Faz vários dias que não há vento e eu estava ficando muito entediado. Então pensei que, em vez de jogar os ovos ao mar, poderia quebrá-los no convés para poder limpá-los depois. Deixei-os estragar por um tempo para que ficasse mais difícil limpá-los, mas não imaginei que cheirassem tão mal”.


:: DEDICATÓRIA EM UM LIVRO ::

“Este livro é uma das coisas mais idiotas que eu já li na vida” (assinatura indecifrável)

>>>>

Agradecimentos: Adriano Pereira Bastos, Giovane Salimena, Paulo Henrique Martins.

“Para ser lido na maldita hora da noite em que tudo é engraçado – logo após a hora em que nada faz sentido e antes daquela em que tudo faz sentido” (Stephanie A., a moradora mais ilustre da rua Paulo da Silva Gordo) 

::: www.hortifruti.org :::

Pequeno aviso legal: A Hortaliça será distribuída gratuitamente através desta plataforma. Não iremos produzir conteúdos fechados para assinantes por acreditar no livre acesso à informação, arte e cultura. A tarifa zero será bancada pelos leitores e leitoras e leitões que tiverem condições financeiras (e vontade) de colaborar. A estes, pedimos que nos apoiem escolhendo um plano de assinatura ou depositando moedas de ouro aleatórias para a chave pix: vmbarbara@yahoo.com. Vamos apoiar o jornalismo independente, a literatura de guerrilha e a bobice semiprofissional.