Quando enfim revelamos nossos propósitos
#100 – São Paulo, 10 de novembro de 2024
É muita folha para pouco legume
Edição de luxo com encadernação em couve
www.hortifruti.org
“Na falta de um outro mérito, haverá o da paciência.”
(Gustave Flaubert)
“A plateia comendo amendoins
Se aglomera para ver”
(Sylvia Plath)
:: EDITORIAL :
E finalmente chegamos à edição número 100. Quando criamos este periódico, mal podíamos imaginar que vinte e dois anos depois estaríamos exatamente no mesmo lugar: balançando os pés num banquinho realmente alto, empurrando as cutículas com uma chave de fenda e esperando algo coerente cair do teto, com as patas bem abertas, para devolver o bom senso que se perdeu algum dia.
Escolhemos um clickbait como subtítulo só para atrair mais leitores, mas a verdade é que nossos propósitos continuam os mesmos. Não mudaram em nada nessas últimas duas décadas: de longe, dá para ver que continuam iguais. São muitos, e bastante variados. Contam-se às dezenas. Difícil lembrar quais são.
Agradecemos a todos os assinantes e doadores que colaboram financeiramente para manter o viço deste periódico, a despeito de nosso comportamento errático e citações cada vez mais fora de contexto. Agradecemos também a quem colabora enviando trechos absurdos das fontes mais questionáveis. Continuem com o ótimo trabalho. O reino dos céus será dos generosos (e daqueles que gostam de sapoti).
O e-mail de contato e a chave pix continua igual: vmbarbara@yahoo.com.
Esta edição é dedicada a Barbara Ehrenreich, por quem estamos absolutamente obcecados.
:: EXCESSO DE TEMPO LIVRE ::
Barbara Ehrenreich, Nickel and Dimed: Undercover in Low-Wage USA
Os e-mails e mensagens telefônicas destinados ao meu eu antigo vêm de uma raça distante de pessoas com preocupações exóticas e um excesso de tempo livre.
[The e-mails and phone messages addressed to my former self come from a distant race of people with exotic concerns and far too much time on their hands.]
:: ESCÂNDALO ::
W. David Marx, Status and Culture
Em uma certa época, no Reino Unido, os homens que ousavam usar guarda-chuvas “eram tão malvistos que chegavam a ser perseguidos nas ruas”.
[at a certain time in the United Kingdom, men who dared use umbrellas “were so ill thought of that they were persecuted in the streets.”]
:: IMPORTUNAÇÃO INSUPORTÁVEL ::
Kim Brooks, A Portrait of the Artist As a Young Mom
Byron teria dormido com 200 mulheres no decorrer de um ano, declarando, depois que sua esposa deu à luz o primeiro filho, que ele estava no inferno, e então engravidou a meia-irmã dela. Baudelaire ansiava por escapar da “importunação insuportável das mulheres com quem vivo”. Verlaine tentou atear fogo em sua esposa. Hemingway se casou com quatro mulheres e, após uma das cerimônias, teria pedido a um barman um copo de cicuta. A filha de 12 anos de Faulkner certa vez pediu para ele não beber no aniversário dela, e ele se recusou, dizendo: “Ninguém se lembra dos filhos de Shakespeare”.
[Byron is reported to have slept with 200 women in the course of one year, declaring after his wife gave birth to his first child that he was in hell, then impregnating his half-sister. Baudelaire longed for escape from “the unendurable pestering of the women I live with.” Verlaine tried to light his wife on fire. Hemingway married four women and after one ceremony reportedly asked a bartender for a glass of hemlock. Faulkner’s 12-year-old daughter once asked him to not drink on her birthday, and he refused, telling her, “No one remembers Shakespeare’s children.”]
:: INDIGNIDADES ::
Barbara Ehrenreich, Nickel and Dimed
Se [os chefes] o fizerem sentir indigno o suficiente, você poderá chegar a pensar que o que lhe pagam é o que você realmente vale.
[If you’re made to feel unworthy enough, you may come to think that what you’re paid is what you are actually worth.]
:: O PATRONO DA HORTALIÇA ::
Gustave Flaubert, Cartas exemplares
A Louise Colet
Novembro 1851
É bonito ser um grande escritor, ter os homens na frigideira de sua frase e fazê-los saltitar como castanhas.
:: LADRÕES DE TEMPO ::
Barbara Ehrenreich, Nickel and Dimed
Sobre seu emprego no Wal-Mart
Nada de piercings no nariz ou outras joias faciais, aprendemos; brincos devem ser pequenos e discretos, não pendurados; nada de jeans azul, exceto às sextas-feiras, e aí você precisa pagar um dólar pelo privilégio de usá-los. Nada de “pastar”, isto é, comer de embalagens de alimentos que de alguma forma se abriram; nada de “roubo de tempo”. Este último me faz divagar no rumo da ficção científica: “E enquanto os ladrões de tempo retornavam ao ano 3420, carregados de fins de semana e dias de folga saqueados do século XXI”…
[No nose or other facial jewelry, we learn; earrings must be small and discreet, not dangling; no blue jeans except on Friday, and then you have to pay $1 for the privilege of wearing them. No “grazing,” that is, eating from food packages that somehow become open; no “time theft.” This last sends me drifting off in a sci-fi direction: And as the time thieves headed back to the year 3420, loaded with weekends and days off looted from the twenty-first century…]
:: CIPRESTE PIRAMIDAL ::
Gustave Flaubert, Cartas exemplares
A Jules Duplan
10-11 maio 1857
Estou prestes a ler uma memória de 400 páginas sobre o cipreste piramidal, porque há ciprestes no pátio do templo de Astarté; isto basta para lhe dar uma ideia do resto.
:: A MÃE DE TODAS AS BIBLIOTECAS ::
Sci-Hub, LibGen e ZLib entraram num bar
Me disseram que cinco dos meus onze livros estão lá.
https://annas-archive.org/
:: ACOMPANHAMENTO ::
Barbara Ehrenreich, Nickel and Dimed
Eu fico amiga de Timmy, o garoto branco de quatorze anos que ajuda os garçons à noite, dizendo que não gosto que as pessoas coloquem seus assentos de bebê em cima das mesas: isso faz com que o bebê pareça um acompanhamento do prato principal.
[I bond with Timmy, the fourteen-year-old white kid who buses at night, by telling him I don’t like people putting their baby seats right on the tables: it makes the baby look too much like a side dish.]
:: ÓBVIO ::
Sidarta Ribeiro, O oráculo da noite
“Que parte de p menor do que 0,05 corrigido para Bonferroni você não entendeu?”
:: PENTEADOS ::
W. David Marx, Status and Culture
O filósofo Montesquieu observou, no século XVIII: “Os penteados das mulheres estão subindo cada vez mais, até que uma revolução os derrube novamente. Houve um tempo em que, devido à enorme altura de seu penteado, o rosto de uma mulher ficava no meio do corpo. Em outra época, seus pés ocupavam a mesma posição.”
[The philosopher Montesquieu observed in the eighteenth century, “Women’s hairstyles gradually go up and up, until a revolution brings them down again. There was a time when because of their enormous height a woman’s face was in the middle of her body. At another time her feet occupied the same position.”]
:: TÃO DISTRAÍDO ::
Ruth Franklin, Shirley Jackson: A Rather Haunted Life
Sobre o livreiro Louis Scher:
Tão distraído que dizem que, certa vez, ele teria embrulhado a própria mão em um pacote de livros.
[So absentminded that he was said to have once wrapped up his own hand in a package of books.]
:: TÃO CANSADA ::
Sarah Manguso, Ongoingness
Esperando o bebê mamar ou parar de mamar ou arrotar ou soltar gases ou cocô líquido amarelo, eu adiei banhos, telefonemas, evacuações. Ignorei correspondências porque não tinha energia nem para dizer que estava tão cansada, e ninguém se importava que eu estivesse cansada — quem não está cansado? Antes de ter o bebê, lembro-me de me sentir cansada o tempo todo. Mas depois que ele veio, eu podia passar quatro dias em dois quartos, de pijamas, tão cansada que ficava quase cega.
[Waiting for the baby to feed or stop feeding or burp or pass wind or yellow liquid shit I postponed showers, phone calls, bowel movements. I ignored correspondence because I had no energy even to say I am so tired, and no one cared that I was tired—who isn’t tired? Before I had the baby I remember feeling tired all the time. But after he joined me I could spend four days in two rooms, pajama-clad, so tired I was almost blind.]
:: SITUAÇÃO ::
Barbara Ehrenreich, Nickel and Dimed
Mas o lar, neste caso, não é um lugar tranquilo; é mais parecido com o que se chama no Exército de “situação”.
[But home in this instance is not a restful place; it’s more like what is known in the military as a “situation.”]
:: FUNCHO ::
Sarah Manguso, Ongoingness
Num dia pós-parto, levei uma eternidade para lembrar a palavra “obsoleto”. No outro dia, “sugestionável”. No outro, “funcho”. A mãe de um bebê precisa de um léxico menor? Ela precisa de um léxico especificamente limitado? Então eu não precisava pensar em funcho? Em abstrações?
[One postpartum day it took me forever to remember the word obsolete. Another day, suggestible. Another, fennel. Does the mother of an infant need a smaller lexicon? Does she need a specifically limited lexicon? Did I not need to think about fennel then? About abstractions?]
:: UMA FILEIRA DE FORMIGAS ::
W. David Marx, Status and Culture
A cultura pop aplaude o cantor de heavy metal Ozzy Osbourne por cheirar grandes quantidades de substâncias prejudiciais à saúde, incluindo uma fileira de formigas vivas — um comportamento hedonista que certamente destruiria a carreira de um gerente médio em uma seguradora.
[Pop culture celebrates the heavy metal singer Ozzy Osbourne for snorting copious amounts of unhealthy substances, including a line of live ants—hedonistic behavior that would surely stifle the career of a middle manager at an insurance company.]
:: PIKACHU LIBRE ::
Ben Taub, “Russia’s Espionage War in the Arctic”
“Dois anos atrás, recebemos muitas dicas sobre pessoas fotografando um aparelho secreto”, disse ele. “Descobrimos que havia um Pokémon raro lá”, explicou, referindo-se ao jogo de realidade aumentada Pokémon Go.
[“Two years ago, we got a lot of tips about people photographing a covert safe house,” he said. “We found out that a rare Pokémon was there,” in the augmented-reality game Pokémon Go.]
:: A INTERFACE MANTEIGA-MANTEIGA ::
Barbara Ehrenreich, Had I Known
Nós passávamos manteiga em tudo, de brócolis a brownies, e teríamos passado manteiga na própria manteiga se não fossem os problemas de tração apresentados pela interface manteiga-manteiga.]
[We buttered everything from broccoli to brownies and would have buttered butter itself if it were not for the problems of traction presented by the butter-butter interface.]
:: THE WIRE ::
Revista Sino Azul, Jan-Fev 1952
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Agradecimentos: Google Translator, Dolce Café e Gigio.
“Para ser lido na maldita hora da noite em que tudo é engraçado – logo após a hora em que nada faz sentido e antes daquela em que tudo faz sentido” (Stephanie A., a moradora mais ilustre da rua Paulo da Silva Gordo)
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