Lembremos de nossa cenouridade comum
#104 – São Paulo, 7 de março de 2025
Contém: pânico moral e caça às borboletas
Não acenando, mas se afogando
www.hortifruti.org
“Meus prazeres são os mais intensos conhecidos pelo homem: escrever e caçar borboletas”
(Vladimir Nabokov)
“Quem, se eu gritasse, me ouviria?”
(Rainer Maria Rilke)
:: EDITORIAL :
Esta edição é o mais puro suco de aleatoriedade. Desta vez, nem tentamos procurar uma temática ou um fio condutor que nos sustentasse: apenas nos atiramos de cabeça neste oceano de desvario, engolindo as águas salobras do despropósito e nos afogando em um omnivorismo literário sem norte.
Gostaríamos de pedir as mais sinceras desculpas a todos vocês que assinaram esta publicação nos últimos meses, depositaram uns dinheiros no Pix, pagaram um creminho de cupuaçu na comedoria do Sesc & enviaram sorvetes e livros à redação. A todos vocês, muito obrigada. Vocês são cenouras. Somos todos cenouras. Enquanto nos lembrarmos de nossa cenouridade comum, estaremos bem.
Aproveitamos para avisar que, além de sorvetes, também aceitamos contribuições em forma de citações retiradas de suas leituras mais recônditas. Basta enviar para o endereço: vmbarbara@yahoo.com.
:: SILÊNCIO ::
Alia Trabucco Zerán, Limpa
Meu silêncio começou depois da morte da minha mãe. Não foi deliberado. Também não foi uma punição. Se eu tivesse que defini-lo, diria que era mais como um labirinto: depois de um tempo dentro dele, eu não conseguia mais encontrar a saída.
[My silence began after my mama’s death. It wasn’t deliberate. It wasn’t a punishment either. If I had to define it, I’d say it was more like a maze: after a while spent inside it, I could no longer find the way out.]
:: DESVENTURADAS MULHERES ::
Cynthia Ozick, Metáfora y memória
No fundo, sou uma daquelas mulheres desventuradas pré-modernas que acreditam que a lâmpada é a cabeça de um demônio invocado pelo interruptor de luz e que Freud quer dizer “prazer” em alemão; por isso, não estou habilitada para falar sobre os princípios da eletricidade nem sobre psicanálise.
[En el fondo, soy una de esas desventuradas mujeres premodernas que creen que la lámpara es la cabeza de un demonio invocado por el interruptor de la luz y que Freud significa placer en alemán; por lo tanto, no estoy capacitada para hablar sobre los principios de la electricidad ni sobre el psicoanálisis.]
:: NÃO ACENANDO ::
Stevie Smith, “Not waving, but drowning”
Eu estava muito mais longe do que você pensava
E não acenando, mas me afogando.
[I was much further out than you thought
And not waving but drowning.]
:: DISCURSO DE ELITE ::
Adrian Daub, The Cancel Culture Panic
O pânico da cultura do cancelamento prospera na suposição de que aqueles que detêm o poder — de autoridades eleitas a editores, professores e escritores do mainstream — merecem esse poder de alguma forma. E oferece uma explicação abrangente para deslegitimar aqueles que questionam os privilégios e a influência dos poderosos. Afinal, eles são “turbas do Twitter” que praticam a cultura “wokeness” como uma “pseudoreligião”. São acusados de aderir ao “culto de gênero”, de serem responsáveis por um “novo macartismo”, e carecem de humor, graça e, em última instância, de identidade própria. […] A queixa sobre a cultura do cancelamento é um discurso de elite.
[The cancel culture panic thrives on the assumption that those who hold power— from elected officials to editors to professors to mainstream writers—deserve that power to some extent. And it provides an all-encompassing explanation as to why those who question the privilege and power of those with privilege and power are not actually worth listening to. They are, after all, “Twitter mobs” who practice “wokeness” as an “ersatz religion.” They subscribe to the “cult of gender,” are responsible for a “new McCarthyism,” and are humorless, graceless, and ultimately faceless. […] The complaint about cancel culture is an elite discourse.]
:: GRANDES BIOGRAFIAS ::
Sam Knight, “Hive Mind”
Em 2008, [o zoólogo alemão Lars Chittka] foi coautor de um artigo sugerindo que os zangões poderiam sofrer de ansiedade.
[In 2008, he co-authored a paper suggesting that bumblebees could suffer from anxiety.]
:: CUMPRIMENTE-OS DE MANHÃ ::
Barbara Ehrenreich, Fear of Falling
Para atingir esse ideal, os pais deveriam se proteger contra qualquer demonstração imprudente de emoção de sua parte. “Nunca abrace e beije [seus filhos]”, John B. Watson alertou. “Nunca os deixem sentar no seu colo. Se for necessário, dêem-lhes um beijo na testa quando disserem boa noite. Cumprimente-os de manhã.”
[To achieve this ideal, parents were to guard against any reckless display of emotion on their own part. “Never hug and kiss [your children],” Watson warned. “Never let them sit on your lap. If you must, kiss them once on the forehead when they say goodnight. Shake hands with them in the morning.”]
:: TWO TIRED ::
John McFee, “Tabula Rasa”
Em Three Rivers, Mich., Thomas Kline, 11, colidiu sua bicicleta com um automóvel em movimento, e depois confessou à polícia: “Adormeci no guidão”.
[TWO TIRED. In Three Rivers, Mich., Thomas Kline, 11, smashed into a moving automobile with his bicycle, later confessed to police: “I fell asleep at the handlebars.”]
:: NÃO FOTOGRAFAR ::
Cory Doctorow, Content
De fato, parece que cada centímetro quadrado da Portrait Gallery está sob algum tipo de copyright. Não me foi permitido nem fotografar a placa de NÃO FOTOGRAFAR. Uma funcionária do museu explicou que lhe disseram que a tipografia e o layout da legenda NÃO FOTOGRAFAR eram, eles próprios, protegidos por direitos autorais.
[Indeed, it seems that every square centimeter of the Portrait Gallery is under some form of copyright. I wasn’t even allowed to photograph the NO PHOTOGRAPHS sign. A museum staffer explained that she’d been told that the typography and layout of the NO PHOTOGRAPHS legend was, itself, copyrighted.]
:: LIBERTAÇÃO ::
Rebecca Solnit, A mãe de todas as perguntas
Nós somos as nossas histórias, que podem ser a prisão e o pé de cabra que vai arrombar a porta; criamos histórias que nos salvam ou que nos prendem, a nós ou a outros, histórias que nos elevam ou nos esmagam contra o muro de pedra dos nossos medos e limitações. A libertação sempre é, em parte, um processo de contar uma história: romper histórias, romper silêncios, criar novas histórias. Uma pessoa livre conta a sua história própria.
:: LEITURA DE POESIA CAUSA DIVÓRCIO ::
The Daily News Leader, 18/12/1936

Cambridge, Mass., Dez 17 — Uma esposa socialmente proeminente, que depôs que o marido costumava acordá-la no meio da noite para ouvir poemas escritos por ele, conseguiu um divórcio incontestado sob o argumento de crueldade.
:: ABSENCE MINDED ::
John McFee, “Tabula Rasa”
Em Miranda de Ebro, na Espanha, o diretor da escola ordenou que as portas da instituição fossem fechadas às 9h como uma lição disciplinar aos alunos atrasados, e desistiu do projeto quando 50% dos professores ficaram trancados do lado de fora.
[ABSENCE MINDED. In Miranda de Ebro, Spain, the school principal ordered the school doors closed at 9 a.m. as a disciplinary lesson to late students, gave up the project when 50% of the teachers were locked out.]
:: CABRA IDOSA ::
Hermione Lee, Virginia Woolf
Há a história de Virginia enviando um telegrama ao saber da notícia do noivado de George [Stephen] com Flora Russell. A mensagem deveria dizer “ELA É UM ANJO” e foi assinada com o apelido de Virginia, mas chegou como “ELA É UMA CABRA IDOSA.” (Dizem que esse foi um dos motivos para o noivado ter sido desfeito.)
[There was the story of Virginia sending a telegram on hearing the news of George’s engagement to Flora Russell, which was meant to read ‘SHE IS AN ANGEL’ and was signed with Virginia’s nickname, and which came through as ‘SHE IS AN AGED GOAT.’ (This is supposed to have been one of the reasons the engagement was broken off.)]
:: IRRITADAMENTE ::
Richard Gordon, A assustadora história da medicina
Florence Nightingale tinha muitas outras peculiaridades, como bater irritadamente as tampas abertas das privadas.
:: DE CORES DIFERENTES ::
Eric Kandel, Em busca da memória
Chip Quinn, um dos primeiros cientistas a realizar estudos genéticos de aprendizagem nas moscas-das-frutas, afirmou que o animal experimental ideal para os estudos biológicos da aprendizagem deveria ter “não mais que três genes, ser capaz de tocar violoncelo ou pelo menos recitar em grego clássico e aprender a realizar essas tarefas com um sistema nervoso contendo somente dez neurônios, grandes, de cores diferentes e, portanto, facilmente reconhecíveis”.
:: CANIBALISMO NARRATIVO ::
Rebecca Solnit, A mãe de todas as perguntas
O silêncio foi o que permitiu que os predadores atacassem ao longo das décadas, sem impedimentos. É como se as vozes desses homens públicos importantes devorassem e aniquilassem as vozes dos outros, num canibalismo narrativo.
:: RETRATOS DE CACHORROS ::
Roger Grenier, Da dificuldade de ser cão
O pessimista Schopenhauer escreveu sobre a bondade dos cachorros: “Eu não teria nenhum prazer em viver em um mundo onde os cães não existissem”. Deprimido, vítima de fobias, ele mandou alternar, nas paredes da sala do seu pequeno apartamento de Frankfurt, retratos de cachorros e de grandes filósofos.
:: POLE APART ::
John McFee, “Tabula Rasa”
Em Grand Junction, Colorado, uma viatura de polícia nova em folha entrou em um estacionamento municipal para fazer uma ronda rotineira, circulou lentamente pela área enquanto o motorista verificava o lado esquerdo e seu companheiro verificava o direito, e bateu de frente em um poste telefônico.
[POLE APART. In Grand Junction, Colo., a shiny new police car drove into a municipal parking lot on a routine assignment, slowly cruised around as the driver checked the left side and his companion checked the right, smacked head-on into a telephone pole.]
:: PÂNICO MORAL ::
Adrian Daub, The Cancel Culture Panic
Por trás do pânico fundamentalmente inútil em torno da cultura do cancelamento, existe, no fim das contas, um medo genuíno — sobre mudanças na sociedade e quem pode falar; sobre quem é ouvido e quem pode se tornar um especialista, incluindo um especialista em sua própria experiência.
[… behind the fundamentally nugatory freak-out about cancel culture there is, in the end, a genuine fear —about change in society and who gets to talk; about who gets listened to and who gets to be an expert, including an expert on their own experience.]
:: PARA O GIGIO ::
Will Ferguson, De carona com Buda
Como muitos ocidentais, confundo “humano” (ningen) com “cenoura” (ninjin), o que certa vez me causou muitos olhares atônitos durante uma palestra que fiz em Tóquio sobre os benefícios da internacionalização, quando apaixonadamente declarei: “Eu sou uma cenoura. Você é uma cenoura. Somos todos cenouras. Enquanto nos lembrarmos sempre de nossa cenouridade comum, estaremos bem.”
:: DESCULPA FORMAL ::
Um modelo para preencher

>>>>
Agradecimentos: Paulo Naves, Bruna Luisa dos Santos, Google Translate.
Os links dos livros são afiliados da Amazon e me ajudam a recarregar o Bilhete Único.
“Para ser lido na maldita hora da noite em que tudo é engraçado – logo após a hora em que nada faz sentido e antes daquela em que tudo faz sentido” (Stephanie A.)
::: www.hortifruti.org :::
Pequeno aviso legal: A Hortaliça será distribuída gratuitamente através desta plataforma. Não iremos produzir conteúdo fechado para assinantes por acreditar no livre acesso à informação, arte e cultura. A tarifa zero será bancada pelos leitores e leitoras e leitões que tiverem condições financeiras (e vontade) de colaborar. A estes, pedimos que nos apoiem escolhendo um plano de assinatura ou depositando moedas de ouro aleatórias para a chave pix: vmbarbara@yahoo.com. Vamos apoiar o jornalismo independente, a literatura de guerrilha e a bobice semiprofissional.