Sobrevivendo no inferno

Postado em: 15th junho 2001 por Vanessa Barbara em Reportagens
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Revista Fraude/EmCrise
Junho de 2001

Nossa reportagem visita a filial paulista da Mont Blanc, nos Jardins

Por Vanessa Barbara

A tampa de âmbar foi cuidadosamente trabalhada. Sutis detalhes, folhados a ouro, reproduziam o estilo sóbrio do período de Weimar, na Alemanha. A pena era igualmente feita de ouro (18 quilates), com gravação de arco e flecha inspirada na história de Guilherme Tell. “Quem não desejaria uma caneta dessas?”, indaga Denise, uma das jovens atendentes. “Custa 3.420 reais”, acrescenta, como se fosse a coisa mais natural do mundo.

Para os clientes da loja Mont Blanc – localizada na esquina da Haddock Lobo com a Oscar Freire, nos Jardins, um dos locais mais requintados de São Paulo -, ter uma caneta cravejada de diamantes parece ser mesmo normal. Durante a reportagem, os olhares dos clientes e funcionários iam de um lado pro outro, acompanhando os movimentos da caneta Kilométrica azul (sem tampa), presa entre os dedos da repórter.

Aberto há 6 anos, o estabelecimento da Mont Blanc em São Paulo é um local asséptico e misterioso, com aspecto de museu – cadeiras acolchoadas, antigas escrivaninhas de madeira, luminárias potentes e um certo clima discreto. Há compartimentos para coleções especiais de canetas, envoltas em vidro transparente e iluminadas por pequenos holofotes. Tratam-se de celebridades esferográficas. Os clientes observam com indiferença tais relíquias reais, como se contemplassem a coroa de Dom Pedro sob uma almofadinha vermelha, no Museu do Ipiranga, ou enormes diamantes reais, de histórias do Tio Patinhas.

Diariamente, dezenas de médicos, executivos e damas pomposas adentram as portas envidraçadas da Mont Blanc, interessados em adquirir um instrumento sagrado que, originalmente, era usado para escrever. É macia? Gostosa de usar? A resposta da funcionária vem com um olhar de muxoxo: “Olha, querida, é uma Mont Blanc”.

Minuciosamente testada com uma série de rabiscos indecifráveis – feitos por mim e por uma cliente, que não aparentava muita familiaridade com a coisa -, a caneta de 482 reais parece escrever como outra qualquer. E não tem tampa esburacada, como a nossa Bic moderna. Ou seja, os grã-finos podem morrer asfixiados, caso engulam as tampas de âmbar – concluo, sob a atenção suspeita dos seguranças.

Ana Maria, donzela de meia idade, percorre o mostruário à procura de uma “lembrancinha” para suas amigas, e pergunta qual o item mais barato. É uma esferográfica redonda, roxa e de ponta fina, de 290 reais. Mais barato, só um chaveiro de couro, de 180 reais. “Preço é relativo”, acredita Ana, elegantemente trajada, antes de sair de mãos vazias e cumprimentar os seguranças, com um aceno breve de cumplicidade distraída.

O Guiness Book (Livro dos Recordes) reconhece uma Mont Blanc como a caneta mais cara do mundo: 300 mil reais, cravejada de brilhantes. Na filial paulista, a mais cara é banhada em ouro, custa 20 mil e ocupa um lugar de destaque na loja e no coração das funcionárias. Daniela, 28 anos e 2 semanas de loja, tem uma Mont Blanc modesta e almeja adquirir a “caneta do Allan Poe”. O item custa 6 mil reais e integra uma das edições que homenageiam escritores, de tiragem limitada. Uma ingênua pergunta ficou no ar, sem resposta: “Então gosta de ler o Poe?”.

Os freqüentadores do estabelecimento são os mesmos que transitam pela Haddock Lobo e ruas adjacentes, comprando relógios na Rolex, suéteres na Ufficio di Moda, quadros no Espaço Objetos de Arte, blusas na Alexandre Hercovitch – lojas modernas, geométricas e chiques, que nunca exibem preços na vitrine. Conforme a rua termina, entretanto, este planeta vai se desintegrando.

A apenas 200 metros da mimosa Mont Blanc, uma banca de jornais vende dezenas de canetas Bic – nas cores vermelho ou azul, com arrojadas pontas finas e tampas esburacadas, para não obstruir as vias respiratórias caso alguém as engula. Custam 70 centavos cada, e localizam-se soberbamente ao lado das paçoquinhas Amor e de cromos autocolantes do Pikachu. Comparadas à esferográfica de 5 mil reais (inspirada no conto de fadas “A Princesa e a Ervilha”), as tradicionais Bic servem para algo além de assinar cheques. Prestam-se, inclusive, a redigir boas matérias.


P.s. (triste): os preços estão desatualizados, já que a matéria foi feita em junho de 2001. Apenas acrescente 2 ou 3 zeros ao final da quantia.

  1. Fernando disse:

    Uau, gostei. Vou conhecer a loja com minha mulher que se chama Daniela, é escritora, também, e respeita o Poe como todos nós. Em comércio o seu maior voo foi como hostess de restaurante creole.
    Tenho um amigo daltônico que exibe uma mecha branca de nascença na cabeleira. O apelido dele é Mont Blanc. Vou ligar pra ele ir conosco porque estou com saudades.