E então os ingleses foram os primeiros. Redigiram um documento que instituía, a partir da ocasião, um jornalismo sem regras, sem quaisquer normas de proteção, imparcialidade ou seleção de assuntos. “Qualquer coisa vale”, disse um redator, bastante satisfeito, sorrindo para as câmeras.
Site EmCrise
15 de maio de 2002
Por Vanessa Barbara
Foi um acontecimento sem precedentes. Um repórter australiano, que preferiu permanecer anônimo mas não escondeu suas ligações com a comunidade dos furões, atacou publicamente a atitude das fuinhas pardas de garganta branca, que, segundo ele, estariam desdenhando e ferindo a auto-estima dos demais animais. Isso porque, apurou o jornalista, ao passarem saracoteando, as fuinhas não cumprimentavam seus colegas e ainda empinavam os focinhos, e isso estaria causando uma depressão generalizada e suicídios em massa entre os demais animais.
A reação da imprensa diante da acusação, publicada em jornal local, foi de deboche. Mas, em questão de dias, os ecologistas membros do Comitê de Defesa Aos Mamíferos Magrinhos, o M.A.M.A., entraram com um processo na justiça para exigir a restauração da honra das fuinhas. Começava a virar notícia.
O juiz, munido de manuais de conduta jornalística e ética da marcenaria, interrogou o repórter sobre o procedimento adotado para chegar a tais conclusões. O jornalista provou que sua matéria fora baseada nas declarações de biólogos especializados em psicologia animal – que citavam pesquisas científicas sobre o sentimento de superioridade dos mamíferos pardos com relação a outras espécies. Foi constatado, também, que o repórter usara aspas ao falar sobre “os obviamente superiores furões”, seguido de um “conforme fontes do meio”, o que isentaria o jornalista da responsabilidade de tais afirmações.
A manchete da reportagem, “Biólogos declaram: ‘fuinhas são arrogantes'”, seguida pelo subtítulo “animaizinhos pardos estão com popularidade em baixa, além de terem uma tremenda cara de fuinha”, ambos partindo de afirmações científicas, delegaria a responsabilidade aos especialistas, além de provar que o repórter, por não ter a informação, procurou noticiá-la da maneira que a recebeu. A matéria ainda apresentava dados auxiliares que, visivelmente, endossavam a opinião dos biólogos, como índices altos de reprodução das fuinhas em comparação aos demais mamíferos, mortes aparentemente acidentais dos animais próximos a elas, brigas em cativeiro, depressão, fraqueza e outros. Havia também algumas linhas para a defesa das fuinhas, mas os ecologistas que as redigiram não haviam se pronunciado com tanta convicção.
Enfim, o repórter venceu. O juiz decidiu que o profissional agira corretamente, não existindo nada que pudesse desaboná-lo, e encerrou o caso. A imprensa mundial espantou-se e examinou a reportagem minuciosamente, à procura de um erro que pudesse descartar a credibilidade da notícia. E não foi encontrada uma só vírgula passível de contestação. Por incrível que pareça, uma notícia sobre desavenças zoológicas, claramente tendenciosa para um dos lados e totalmente insana aos olhos do mundo, estava perfeitamente enquadrada nos chamados rituais de objetividade jornalísticos.
E então os ingleses foram os primeiros. Redigiram um documento que instituía, a partir da ocasião, um jornalismo sem regras, sem quaisquer normas de proteção, imparcialidade ou seleção de assuntos. Afinal, o que antes só poderia estar em publicações consideradas inferiores hoje era cultuado como exemplo de jornalismo competente. “Qualquer coisa vale”, disse um redator, bastante satisfeito, sorrindo para as câmeras.
E a imprensa mundial seguiu os britânicos. Em uma semana houve uma revolução nos jornais, e as vendas foram às alturas com manchetes do tipo “Vacas voam devagarinho pois desejam observar a paisagem”, “Família de argentinos vive numa caixa de sapatos por 17 anos”, “Ratos ambiciosos tomam conta de uma padaria”, “Eu acho que o meu jornal é bom e você é feio” e mais algumas frases ambígüas, tendenciosas, sem explicação coerente e cheias de toda sorte de irregularidades – um repórter tradicional morreria de enfarte. O enfarte, aliás, era tema de um dos tablóides recém-lançados, que distribuía versões do jornal concorrente em cores berrantes e holografias esquisitas, com a finalidade de provocar colapso cardíaco ou epilepsia em seus leitores. E não havia nada que pudesse ser feito para deter a onda de insanidade da imprensa.
Ao vivo, o correspondente de guerra da CNN contava uma piada de papagaios enquanto sua colega cortava as unhas do pé e ria sem parar, pois já sabia o final. O caderno de cultura do New York Times, hoje New York Nicks (por causa das preferências do dono), continha uma explicação passo-a-passo de como limpar um umbigo sem dor usando pasta de Amendocrem e quiabos. A revista Veja decidiu, enfim, assumir a condição de semanário de variedades e prometeu apresentar toda semana uma seção intitulada: “Pombas, ser pobre é muito feio”, com 20 dicas para que o brasileiro médio possa investir na bolsa e levar os pimpolhos à escola sem quebrar a primeira camada de esmalte das unhas. Um jornal de circulação nacional elegeu o Presidente da República como “colírio do mês” e uma revista de economia alterou todos os índices da bolsa para que os acionistas investissem no dentifrício Tandy sabor gelatina e os jornalistas pudessem, enfim, ficar ricos.
Em meio à balbúrdia, alguém pediu a palavra. Pronunciava-se da Casa Branca, já que o presidente norte-americano estava sendo acusado de ter o nariz muito brilhante, e isso ofendia muito os fabricantes de pancake, patrocinadores do jornal que o acusou. No palanque, posicionava-se uma tímida fuinha, um tanto quanto desapontada com os acontecimentos. “Perdoem-me os jornalistas”, dizia ela, alisando freneticamente as alças de sua bolsinha cor-de-rosa. “Devo dizer que forjei aquelas estatísticas e comportei-me como tola, empinando mesmo meu focinho e magoando meus companheiros furões. Eu só queria ser popular, desculpem-me”, e se retira, apressada.
A verdade, então, fora encontrada. Tudo não passava de invenção, a objetividade e neutralidade do jornalista continuava totalmente válida. No dia seguinte, infelizmente, tudo havia voltado ao normal.
Talvez o primeiro furão ! Cabe em inglês “Big Hole” ?! é uma pena que a linha editorial geral tenha sido mascarada de verniz para conservar. Salvam-se os obituários e atualmente há beleza na pobreza em preto e branco, mas na colorida é mais difícil, só se for com gramatura maior, mais pastel. Muito pastel …