Revista Fraude
27 de novembro de 2002
Julio Cortázar, in La vuelta al día en ochenta mundos
trad. Vanessa Barbara
Quem nos resgatará da seriedade? – pergunto, parafraseando um verso de Ricardo Molinari. A maturidade nacional, suponho, que nos levará a entender, por fim, que o humor não tem por que continuar sendo privilégio dos anglo-saxões e de Adolfo Bioy Casares. Cito especificamente Bioy, primeiro porque seu humor é dos que começam por admitir honestamente os limites de sua literatura, enquanto a seriedade se crê absoluta desde o soneto até o romance; segundo, porque alcança essa volúvel eficácia que pode ir muito além (quando é usada por um Leopoldo Marechal, por exemplo) de tanto tremendismo dostoievskiano mal feito que prolifera em nossas bandas.
Além disso, essas bandas vão mais além de Mar del Plata: ocorreu também a Jean Cocteau, à sua maneira um Bioy Casares francês, que os “comprometidos” de qualquer grupo e os sérios de solenidade como François Mauriac pretenderam relegá-lo a esses lugares do estabelecimento feudal da literatura onde há o rincão dos bufões e os trovadores. Sem falar em Jarry, Desnos, Duchamp… Em seu espasmódico Quem Tem Medo de Virgínia Woolf?, Edward Albee diz a alguém: “O mais profundo sinal da maldade social é a falta de senso de humor. Nenhum dos monolitos jamais foi capaz de aceitar uma brincadeira. Leia a história. Conheço bastante bem a história”. Também nós conhecemos bastante bem a história literária para prever que Dargelos e Elizabeth (personagens de Cocteau) viveram mais que Thérese Desqueyroux (personagem de Mauriac), e que o pai Ubu (de Jarry) jogará ao poço, com seu crochet à nobles, todos os heróis de Jean Anouilh e de Tennessee Williams.
Essa pulga prodigiosa chamada Man Ray escreveu uma vez: “Se pudéssemos exilar a palavra sério de nosso vocabulário, muitas coisas se arregalariam”. Mas os monolitos velam com seu ar de tartarugões pálidos, como tão bem os retrata José Lezama Lima. Oh, quem nos resgatará da seriedade para que, por fim, possamos ser sérios de verdade no plano de um Shakespeare, de um Robert Burns, de um Julio Verne, de um Charles Chaplin. E Buster Keaton? Este deveria ser nosso exemplo, muito mais que os Flaubert, os Dostoievski e os Faulkner dos quais só reverenciamos a carga de profundidade, enquanto esquecemos Bouvard e Pécuchet (Flaubert), esquecemos Foma Fomich (Dostoievski), esquecemos o sorriso com que o cavalheiro sulino Faulkner respondeu a um convite da Casa Branca: “Um almoço a quinhentas milhas de distância é longe demais pra mim”. Em cada escola latinoamericana deveria haver uma grande foto de Buster Keaton, e nas festas pátrias o diretor passaria filmes de Chaplin e de Keaton para estimular os futuros cronópios, enquanto as professoras recitariam “A Morsa e o Carpinteiro” ou pelo menos algo de Guido y Spano; por exemplo, a versão em alemão da Nenia, que começa:
Klage, klage, Urutaú,
In den Zweigen des Yatay.
War einmal ein Paraguay
Wo geboren Ich und du:
Klage, klage, Urutaú!(*)
Mas sejamos sérios e observemos que o humor, desterrado de nossas letras contemporâneas (Macedonio, os primeiros trabalhos de Borges, os primeiros de Nalé, César Bruto, Marechal às vezes, são outsiders escandalosos no nosso prado literário), representa uma constante do espírito argentino – apesar do que pensam os tartarugões – em todos os registros culturais ou temperamentais que vão da afiada tradição de Mansilla, Wilde, Cambaceres e Payró até o humor sublime do réu portenho que, na plataforma do trem 85, tendo sido obrigado a calar a boca pelo guarda massificado, contesta: “E o que você quer? Que eu morra em silêncio?”. Sem falar que às vezes são os guardas os humoristas, como aquele do ônibus 168 gritando a um senhor de ar importante que fazia tilintar interminavelmente a campainha para descer: “Pare com isso, camarada, que aqui estamos no ônibus, não na igreja!”.
Por que diabos há entre a nossa vida e nossa literatura uma espécie de “muro da vergonha”? No momento de pôr-se a trabalhar num conto ou romance, o escritor típico endurece o pescoço e sobe ao ponto mais alto do guarda-roupas. Quantos conheci que, se tivessem escrito como pensavam, inventavam ou falavam nas mesas dos cafés ou nas conversas após um concerto ou uma luta de boxe, conseguiriam essa admiração cuja ausência seguem atribuindo a razões lamentadas com lágrimas e panfletos pelas associações de escritores: esnobismo do público, que prefere os estrangeiros sem ligar para o que tem em casa, traidora perversidade dos editores, e não continuemos senão ele chora como uma criancinha.
Hiato egípcio entre uma escritura demótica e outra hierática: nosso escriba sentado assume a solenidade do que habita no Louvre tão logo saca sua Remington, de cara percebe-se a ruga nos lábios, a amarga experiência humana despontando na forma de ritos que, como é notório, não são computados entre os trejeitos que facilitam a melhor prosa.
Aqueles ñatos (n.t.: pessoa que tem o nariz chato) acreditam que a seriedade deva ser solene ou então não ser; como se Cervantes tivesse sido solene, diabos. Dizem que a seriedade deveria basear-se no negativo, no tremendo, no trágico, no terrível, no Stavrogin, e que só a partir daí nosso escritor concederá (e ascenderá) aos sinais positivos, a um possível happy end, a algo que se assemelhe um pouco mais a esta confusa vida onde não há maniqueísmo que chegue a lugar algum.
Despertar-se para o grande mistério com a atitude de um Macedonio ocorre a poucos; os humoristas são tachados de pronto para que sejam diferenciados higienicamente dos escritores sérios. Quando meus cronópios fizeram algumas das suas em Corrientes y Esmeralda, uma eminente intelectual exclamou: “Que lástima, pensar que era um escritor tão sério!”. Somente se aceita o humor em sua estrita jaulinha, e olhando-o a trinar, soando como uma sinfônica, porque o deixamos sem alpiste para que aprenda.
Enfim, senhora, o humor é all pervading ou não é, como sempre souberam Juan Filloy, Shakespeare e Max Ernst; reduzido a suas próprias forças, solitário na jaulinha, dará Three Man on a Boat mas jamais Sancho na ilha, jamais meu tio Toby, jamais o velório do pisador de barro. Fica claro então que o humor, cuja alarmante carência em nossas terras julgo deplorável, reside na situação física e metafísica do escritor que permite o que para outros seriam erros de paralaxe, por exemplo: ver os ponteiros do relógio da sala de jantar marcando uma e meia quando apenas é meia-noite e vinte e cinco, e jogar com tudo o que brinca com essa flutuante disponibilidade do mundo e de suas criaturas, entrar sem esforço na ironia, no understatement, na ruptura dos clichês idiomáticos que contaminam nossas melhores prosas tão seguras de que é meia-noite e vinte e cinco, como se à meia-noite e vinte e cinco elas possuíssem alguma realidade fora da convenção que as decidiu com grande aclamação de cosmógrafos e calígrafos de Maguncia e de Genebra.
E isto dos clichês idiomáticos não é bobagem; pode-se verificar o predomínio de uma linguagem hierática nas letras sul-americanas, uma linguagem que em seu mais alto nível dá, por exemplo, em O Século das Luzes, enquanto todo o resto empelota-se numa prosa que mais tem a ver com a farinha que com a vida que pretende encarnar.
Na Argentina há sinais de um divertido processo; em reação à prosa dos tartarugões pálidos, uns quantos escritores mais jovens se puseram a escrever “falado”, e ainda que os melhores o façam muito bem, a maioria errou o alvo e está afundando até mais que os purificados (palavra que eles colocam sempre em alguma parte). Parece-me que não é passando do calor do crisol ao do campo do Racing que faremos nossa literatura. Um Roberto Arlt escrevia idiomaticamente mal porque não possuía meios de fazê-lo de outra maneira; entretanto, possuir uma cultura de primeira como sonham os argentinos e cair numa literatura de pizzaria me parece, no fundo, uma reação de moleque que se decreta comunista porque o pai é sócio do Clube do Progresso.
Notas
– “De La Seriedad en Los Velorios” – Julio Cortázar, publicado em 1967
– Projeto Rayuel-o-matic
– Todos os “enlaces” sobre o Cortázar
– Leia o “Jabberwocky” (Lewis Carroll) em latim
* do fantástico original, de Guido y Spano:
¡Llora, llora urutaú
en las ramas del yatay,
ya no existe el Paraguay
donde nací como tú
¡llora, llora urutaú! (N.T.)