Site EmCrise
23 de janeiro de 2003
Cobertura do Fórum Social Mundial/Porto Alegre
Por André Deak, Vanessa Barbara e Solange Cavalcante
A 1109 quilômetros de distância de seus destinos, peregrinos aguardam sob a chuva o início de uma jornada. A provação é difícil. Longas horas de viagem os esperam, mas a recompensa é tentadora. Ou assim pensam as milhares de pessoas que rumam para Porto Alegre neste janeiro de 2003, em busca do Fórum Social Mundial que novamente levanta suas tendas na cidade.
Como já disse o poeta, “no hay camino, hay caminar”. Assim como o terceiro Fórum é parte de um processo de transformação maior, sua própria jornada de ida também transforma. Ou, no mínimo, transtorna.
O atraso para a saída do ônibus, entre tantos outros percalços, foi de quase quatro horas. Organização e planejamento não parecem ser as especialidades da esquerda, ainda mais quando festiva: inicialmente, o ônibus faria apenas três paradas. Ao final da viagem, ninguém mais sabia quantas vezes teve que descer do ônibus, devido a motivos dos mais insólitos. Mas não se pode generalizar; até agora, o Fórum está funcionando razoavelmente bem.
Assim como os peregrinos do Caminho de Santiago de Compostela, quem pega a estrada BR-116 (que já foi sombriamente conhecida como “rodovia da morte”) também sofre mudanças. Sobretudo quando o meio de transporte é um ônibus verde e apertado da Lerotur, típico para levar crianças ao Playcenter em trajetos curtos – e não para atravessar três estados com lotação máxima. E banheiro entupido.
A primeira madrugada de viagem correu sinuosa, entre buzinadas e curvas da estrada medonha. Ficou evidente, pelos solavancos e volteios, que o ônibus estava sendo guiado por Homer Simpson em pessoa. Quanto aos passageiros, entre os menos prosaicos estavam os vocalistas das bandas Sua mãe também e No Graal. Houve os festivos, que ocuparam o tempo jogando truco e bebendo catuaba, a tal bebida de rótulo sugestivo. Ainda no início da viagem (aquele bom-humor, a esperança de que tudo ia correr bem), descobrimos que a fórmula da catuaba deve ser a mesma do Biotônico Fontoura. “Isso se o princípio ativo não for soja geneticamente modificada”, alertava um dos nossos, preocupado com a questão dos transgênicos. “Daí vai que a gente toma isso e desenvolve tentáculos nas costas”. Todos riem, por enquanto.
Como era de se esperar, durante a travessia do Paraná, um dos pneus fura. Os fiéis descem do ônibus, satisfeitos, para respirar o ar puro da manhã e cumprimentar as ovelhas. Finalmente, descobrem onde estão: Mandirituba, Capital Nacional da Camomila. Nada mais coerente, nada mais apropriado. Alguns se ajoelham e o mecânico sentencia: o estado dos pneus não é nada aprazível. Um dos peregrinos lança as mãos aos céus e pergunta: “O que é que vem depois de ‘santificado seja o vosso nome’?”.
Vinte e quatro horas de viagem em um ônibus Lerotur é a oportunidade perfeita para pobres alunos de comunicação e jornalistas recém-deformados soltarem o verbo. O que é difícil, dada a qualidade – não dos ônibus – das escolas de comunicação. Quando em condições ideais de temperatura, pressão atmosférica e liberdade, soltam-se trocadilhos, inferências, comentários engraçadinhos, citações em francês (de O pequeno Príncipe) e alusões a Habermas, et al. “Olhem! Uma ovelha”, e todos voltam suas atenções à janela. Então o garoto completa, sem qualquer coerência: “Vamos fazer um pedido”.
A todo instante, havia quem calculasse o tempo que restava. Só faltam doze horas, alguém afirmou, naquele clima de tolerância. “Podia ser pior”, foi o que retrucaram. “Não consigo imaginar como, mas podia ser pior”. Imediatamente, alguém chama a atenção para uma coluna de fumaça em um dos pneus, mas logo o detalhe é esquecido: naquele momento, sem qualquer cerimônia e para desespero geral, um moço resolve abrir a porta do banheiro. Houve quem vestisse uma máscara de rosto contra gases tóxicos. O aroma espalhou-se e o limite do suportável parecia ter sido finalmente atingido.
Mas ainda era cedo. Àquela altura, a Lerotur Atrações Cinematográficas já tinha proporcionado aos passageiros quatro ou cinco sessões do mesmo filme, “Pânico 2”. Dublado. A outra fita que vez ou outra passava na única televisão do ônibus era “The Night Flier”, do Stephen King. Também dublado. Nada como assistir filmes de horror durante os momentos mais felizes: o acaso estava rindo um bocado de tudo aquilo, em algum lugar.
Muitas serras se passaram, as dezoito horas iniciais já tinham partido há tempos (e chegado antes de nós). O motorista parecia não saber o caminho, ou então estava querendo chegar a Davos. Finalmente, em Canoas, já na Grande Porto Alegre, o relógio se aproxima das 9 da noite e Homer Simpson resolve parar um instantinho. Uma garota queria fazer xixi, pôxa. Outras aproveitaram para descer, comprar salgadinhos, trocar receitas, enfim, confraternizar. Temos todo o tempo do mundo, diriam. Começava a escurecer; parte dos fiéis jogava truco e achava tudo aquilo um barato. Outros deixavam-se levar pelo pânico puro e simples. Quando o motorista foi finalmente convencido de que aquilo não era uma excursão ao Hopi Hari, as pessoas voltaram ao ônibus e terminaram a jornada.
Vencida uma batalha, contam-se as baixas. O que aprendemos, afinal? Solidariedade é apenas mais uma palavra bonita do dicionário? Calma é algo que só se consegue com camomila? Planejamento e respeito são nomes bonitos, mas… “Acho que não vou usar, não estou acostumado”. No desembarque, ainda encaramos alguns vendedores ambulantes, que nos perguntavam: “Água? Refri? Cartão telefônico? “Não”, era a resposta. “Afago? Carinho?”, e quase que compramos. No final, terá valido a pena? Tudo indica que sim, mas prometemos não voltar no ônibus em que viemos.