Correio da Cidadania – Ed. 330
25/01 a 01/02/2003
por Vanessa Barbara
“A nossa indignação é uma mosca sem asas,
não ultrapassa a janela de nossas casas” – Skank
Era 7 de setembro de 2002. Dia de desfiles cívicos: militares marchando, crianças chacoalhando as bandeiras, toda aquela cidadania saudável que a gente aprende na pré-escola. Era também aniversário de 68 anos da minha avó, que, de repente, começou a contar uma história do curso de informática que fazia gratuitamente, patrocinado por um parlamentar (candidato à reeleição). Mostrou as apostilas – a capa indicava o nome do sujeito, repetido à exaustão em todas as folhas, onde também havia seu retrato, o número eleitoral e textos sobre seus feitos políticos. Na contracapa, uma foto ampliada do parlamentar sorrindo. Minha avó repetia o número dele, que já sabia de cor, pois fazia as lições de casa. Finalmente, contou que teve que apresentar o título de eleitor no ato da inscrição.
“Isso é ilegal, não é?” – mas eu não sabia, e nem meus amigos da faculdade de Jornalismo, que ficaram todos chocados: “é um absurdo, isso é compra de votos, onde é que o país vai parar?”, e assim por diante. Sentia-me como a minha avó, pessoalmente ofendida, com a sensação de que sofria uma lavagem cerebral, como se nosso voto fosse comerciável. A formatura dos alunos, após 2 meses de aulas, aconteceria naquela quinta-feira.
Tentei convencer alguns amigos repórteres a me acompanharem na reportagem, mas, embora estivessem horrorizados com a situação, todos tinham compromissos importantes e inadiáveis. Resolvi ir à formatura sozinha, munida de câmera fotográfica, gravador e bloco de notas. Faltei à aula de Política – irônico! – e fui à associação onde o curso era ministrado.
Os alunos com quem conversei confirmaram a necessidade de apresentar o título para se inscrever, e uns ainda declararam, resignados: “é voto que ele quer!”. Quando começou o discurso, a professora pediu a todos que votassem no deputado, “pra ele continuar fazendo esse trabalho bonito que ele faz”. O assessor de imprensa, por sua vez, aconselhou que os alunos “fizessem o que deve ser feito” e contou que uma das maneiras de valorizar o curso era “através do voto”. Cheguei a entrevistá-lo, e perguntei por que o título de eleitor era solicitado para a inscrição. Ele respondeu: “porque o voto é obrigatório”, e porque o documento servia como confirmação dos dados e do endereço da pessoa. E se ela não possuir título – se, por exemplo, tiver 17 anos?, cheguei a indagar. Disse que era só fazer a requisição no cartório e apresentar o comprovante. E se fosse menor de 16? “Então, dificilmente vai entrar no mercado de trabalho”, ele retrucou; portanto, não precisava do curso.
Quando a formatura acabou, levei pra casa a apostila, o certificado e umas fotos da camiseta que minha avó ganhara (com o número e o nome do candidato impressos de maneira nada discreta). Estava desnorteada: não achava que era meu papel escrever uma reportagem sobre o caso, julgando pessoas a quem mal dei oportunidade de defesa; não poderia fazer uma daquelas típicas matérias-denúncia. Escrevi para o Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral, para que encaminhassem o caso à Justiça; entreguei o material, e logo fui chamada para depor como testemunha no Tribunal Regional Eleitoral.
Minha avó também recebeu a intimação. Logo em seguida, alguns parentes telefonaram, reprovando a atitude (abominável!) de me meter onde não fui chamada, de envolvê-la na história; já meu pai dizia que tudo bem, levaria tabletes de chocolate enquanto eu estivesse na cadeia; todos contavam lendas de réus que se vingaram com assassinato, que levaram famílias à falência, que fatiaram criancinhas inocentes com um ralador de beterrabas. Achavam uma estupidez arriscar-se por algo que não me dizia respeito. Nem um pouco.
Minha mãe conversou com a minha avó todos os dias, para acalmá-la e convencê-la a comparecer no dia. O medo era grande: resquício da ditadura militar; das vezes em que, se a Justiça batia à sua porta trazendo uma intimação no meio da noite, o que você deveria fazer era sair pela janela e correr.
Pois ela teve coragem e foi comigo ao Tribunal. Diz-se que ela deu uma declaração exemplar e detalhada, que não tremeu nem ficou nervosa. Quando chegou a minha vez, fui conduzida a uma sala grande, onde me senti parte de um romance de Kafka. Numa mesa comprida, vários homens de terno e gravata se enfileiravam; as paredes estavam repletas de retratos enormes, de velhos juízes carrancudos que me davam medo.
Na ponta da mesa, reconheci o candidato em pessoa, a me encarar. Respondi às questões da melhor maneira possível, embora entrasse em pânico sempre que o advogado perguntava: “quantas pessoas estavam presentes?”, “depois de quanto tempo você soube?”, como se eu fosse abrir uma planilha e responder “trezentos e quinze, senhor; oito dias, nove horas e dezessete minutos. Horário de Brasília”.
Saímos do tribunal satisfeitas, eu e minha avó. Alguns meses depois, recebemos um jornal do deputado, com uma manchete que dizia: “A derrota da mentira e da infâmia. A vitória de todos nós”. O editorial contava que o parlamentar fora inocentado (por unanimidade) da acusação. Que tudo tinha por trás muitos “interesses escusos”. Dizia, também, que não adiantou a trama, a infâmia, os boatos, a jogada política dos inimigos: a Justiça acabara vencendo.
Poderia reconhecer, no final das contas, que não adiantou nada e que perdi meu tempo. Entretanto, fiz o melhor que pude e o faria de novo. Nada além da minha obrigação, de como deveria agir freqüentemente: é preciso continuar tentando, sempre. Embora haja ainda os que insistam em dizer que “isso não é da sua conta” (e é da conta de quem?), que nunca adianta, ou, então, que você está de parabéns pela intrépida e patriótica demonstração de cidadania (nada além do normal).
Enquanto a noção de política, cidadania e participação não estiverem entrelaçadas, sob a forma de ativismo e indignação permanente, de real consciência política, o país vai ser “assim mesmo”, “corrupto e subdesenvolvido”, sem saída, como dizem. Apáticos e resignados, preocupados com nossos próprios narizes, assistiremos aos desfiles e aos golpes de Estado pela TV, com a mesma indiferença, a cada 7 de setembro.
Vanessa Bárbara é estudante de sociologia na USP e de jornalismo na Fundação Cásper Líbero.