Site EmCrise
26 de janeiro de 2003
Cobertura do Fórum Social Mundial/Porto Alegre
Por Vanessa Barbara
“A tolerância não é o oposto da intolerância, a sua contrafação. São ambos despotismos. Um se arroga o direito de impedir a liberdade de consciência, a outra se arroga o direito de concedê-la” (Thomas Paine).
Simplificações são ótimas, principalmente para jornalistas com pressa. Ajudam a entender o mundo, mesmo que de maneira equivocada; acalmam os que têm preguiça de tentar conhecê-lo.
Tratar o Fórum Social Mundial como uma coisa só (uma horda homogênea de gente maluca) ou julgá-lo um amontoado de acontecimentos exóticos é o mais fácil de fazer, ao se chegar por aqui e ficar perdido, procurando uma caixa cheia de compartimentos para ordenar as coisas.
Existem vários e vários Fóruns acontecendo simultaneamente, uns dentro dos outros e diferentes entre si (mesmo com tanto em comum). Há o Fórum da grande imprensa, dos confeiteiros sem fronteiras, das ONGs assistencialistas, das autoridades políticas, das velhinhas agricultoras de SC, dos estudantes de comunicação. Há o Fórum da Via Campesina: mil pessoas acomodadas nas arquibancadas do ginásio, descascando batatas em minúsculas cozinhas feitas de bambu e sacos de lixo. É o Fórum da disciplina, onde o portão fecha à uma e meia da madrugada; onde o chão da quadra está coberto de placas de papelão; onde os horários são rígidos e os olhares, impressionantes. Um dos porteiros da Via Campesina tem um rosto triste e usa um boné da BMW – como gostam de bonés! -, o outro ainda ri mas depois volta a ficar quieto. Por mais que haja agitação e alegria, paira sempre um silêncio estranho no viver de cada campesino, algo difícil de entender. É possível passar semanas em cada um desses Fóruns, a fim de conhecê-los. Mesmo assim sairíamos confusos.
São tantos os Fóruns que o francês Philippe Merlant, no painel sobre do dia 25/1, chegou a “mudar” o lema oficial do evento: buscamos não um “outro” mundo, mas um mundo onde caibam todos os mundos possíveis.
Apenas olhando o Fórum por essa perspectiva é que podemos entender a francesa Geneviève Jacques, do Conselho Mundial de Igrejas, a dizer, no mesmo painel, que o contrário da intolerância não é a tolerância. É a convivência. Tolerar a existência do outro e permitir que ele seja diferente é uma posição arrogante – como disse José Saramago, “quando se tolera, apenas se concede, e essa não é uma relação de igualdade, mas de superioridade de um sobre o outro”. Seria preciso, segundo ele, eliminar das relações humanas tanto a tolerância quanto a intolerância, para dar espaço à relação igualitária entre as pessoas.
E é por isso, também, que devemos tentar estabelecer diálogos – embora difíceis – com o lado de lá, aquele ser estranho de uniforme militar que passa o dia afagando um cachorro, o palhaço da perna-de-pau que distribui alfaces, o velhinho do MST que mastiga sacos e mais sacos de pipoca doce, e assim senti-los mais próximos de nós. Afinal de contas, somos nada além de criaturas esquisitas que usam xampus “para cabelos secos que ficam oleosos ao longo do dia”.