O caso dos velhinhos voadores

Postado em: 5th fevereiro 2003 por Vanessa Barbara em Traduções
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Revista Fraude
5 de fevereiro de 2003

por Adolfo Bioy Casares
trad. Vanessa Barbara 

Um deputado, que nos últimos anos tem viajado com freqüência ao estrangeiro, pediu à Câmara que convocasse uma comissão investigadora.

O legislador havia advertido, primeiro sem alegria, depois com apreensão, que em aviões de diversas companhias atravessava o céu em todas as direções, de modo quase contínuo, um punhado de homens muito velhos, pouco menos que moribundos. Um deles, visto num vôo de maio, novamente foi encontrado em um de junho. Segundo o deputado, reconheceu-o “porque o destino assim o quis”.

Com efeito, o ancião encontrava-se tão terrível que parecia outro, mais pálido, mais débil, mais decrépito. Esta circunstância levou o deputado a entrever uma hipótese que respondia às suas perguntas.

Por trás de tão misterioso tráfego aéreo, não haveria uma organização para o roubo e a venda de órgãos de velhos? Parece incrível, mas também é incrível que ela exista para o roubo e venda de órgãos de jovens. Os órgãos dos jovens são mais atrativos, mais convenientes? De acordo: mas as dificuldades para consegui-los são maiores. No caso dos velhos poderá contar-se, em alguma medida, com a cumplicidade da família. Com efeito, hoje todo velho cultiva duas alternativas: a doença ou o asilo. Um convite para viajar resulta, em regras gerais, na aceitação imediata, sem averiguações prévias. A cavalo dado não se olha os dentes.

A comissão bicameral, por azar, mostrou-se numerosa demais para agir com a urgência e eficácia sugeridas. O deputado, que não dava o braço a torcer, conseguiu que a comissão delegasse sua incumbência a um investigador profissional. Foi assim que O Caso dos Velhos Voadores chegou a este escritório.

A primeira coisa que fiz foi perguntar ao deputado em que companhias aéreas viajou em maio e em junho.

“Na Aerolíneas e nas Linhas Aéreas Portuguesas”, respondeu. Apresentei-me em ambas as companhias, requeri as listas de passageiros e não tardei em identificar o velho em questão. Tinha que ser uma das duas pessoas que figuravam em ambas as listas; a outra era o deputado.

Prossegui nas investigações, com resultados pouco estimulantes a princípio [a resposta oscilava entre “Nem faço idéia” e “Não me parece estranho”], mas finalmente um adolescente me disse: “É uma das glórias de nossa literatura”. Não sei como alguém se mete a investigador: tudo é tão estranho. Bastou que eu recebesse a resposta do pequeno para que todos os interrogados, como se tivessem ouvido São Bento, me diziam: “Não sabe? É uma das glórias de nossa literatura”.

Fui à União dos Escritores, onde um sócio jovem confirmou a informação, em linhas gerais. Na verdade, perguntou-me: “Você é arqueólogo?”.

– Não, por quê?
- Não me diga que é escritor?

– Tampouco.

– Então não entendo. Para os mortais comuns, o senhor de que me fala tem um interesse puramente arqueológico. Para os escritores, ele e alguns outros como ele são algo muito real, e sobretudo incômodo.

– Parece que você não tem por ele qualquer simpatia.

– Como ter simpatia por um obstáculo? O senhor em questão não é mais que um obstáculo. Um obstáculo intransponível para todo escritor jovem. Se levamos um conto, um poema, um ensaio a qualquer revista, adiam-nos indefinidamente, porque todos os espaços estão ocupados por colaborações desse indivíduo ou de indivíduos como ele. A nenhum jovem são concedidos prêmios ou são feitas reportagens, porque todos os prêmios e todas as reportagens são para esse senhor ou pessoas similares.

Resolvi visitar o velho. Não foi fácil. Em sua casa, invariavelmente, diziam-me que não estava. Um dia me perguntaram para que desejava falar com ele. “Queria perguntar-lhe algo”, respondi. “Chega”, disseram, e me colocaram em contato com o velho. Este perguntou de novo se eu era jornalista. Disse-lhe que não. “Tem certeza?”, indagou.

“Absoluta”, disse. Encontrou-me este mesmo dia em sua casa.

– Queria perguntar-lhe, se o senhor me permite, por que viaja tanto?

– Você é médico? – perguntou-me. – Sim, viajo demais e sei que me faz mal, doutor.

– Por que viaja? Acaso lhe prometeram operações que lhe devolveriam a saúde?

– De que operações está falando?

– Cirurgias.

– De onde veio essa idéia? Viajaria para salvar-me do que elas me fizeram.

– Então, por que viaja?

– Porque me dão prêmios.

– Um escritor jovem disse-me que você monopoliza todos os prêmios.

– Sim. Uma prova da falta de originalidade das pessoas. Alguém te dá um prêmio e todos sentem que também têm que te dar um prêmio.

– Não acha que é uma injustiça com os jovens?

– Se os prêmios são entregues aos que escrevem bem, seria injusto premiar os jovens, porque não sabem escrever. Embora não me premiem porque escrevo bem, mas sim porque outros me premiaram.

– A situação deve ser muito dolorosa para os jovens.

– Dolorosa por quê? Quando nos premiam, passamos uns dias zonzeando vaidosamente. Cansamos. Por um tempo considerável não escrevemos. Se os jovens tivessem um pouco de senso de oportunidade, levariam em nossa ausência suas colaborações às revistas e, por piores que fossem, teriam uma remota possibilidade de serem aceitas. Isso não é tudo. Com esses prêmios o trabalho atrasa e não entregamos o livro ao editor dentro do prazo. Outra chance para o jovem esperto aproveitar e mandar seus rascunhos. Entretanto guardo na manga outra dádiva aos jovens, mas melhor não falar, para que a impaciência não nos destrua.

– A mim pode dizer qualquer coisa.

– Bom, então eu digo: já me deram cinco ou seis prêmios. Se continuam com esse ritmo, você acredita que vou sobreviver? Desde já adianto-lhe que não. Você sabe como envaidecem o premiado? Creio que não me restam forças para agüentar outro prêmio.



Nota da tradutora:
“El caso de los viejitos voladores”, publicado no La Nación de 7 de janeiro de 1997. Em espanhol, “volar” pode ter a mesma conotação do termo em português, “voar = viajar de avião”. Não sei se “volador” também pode ser “aquele que viaja de avião” [o que não acontece em português], ou se o título é bacana assim mesmo. Acho que não fui a única a imaginar centenas de velhinhos planando no ar, contentes, com os braços abertos e a pança pra cima.

O texto original pode ser lido aqui.