Do sentimento de não estar de todo

Postado em: 1st março 2003 por Vanessa Barbara em Traduções
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Site EmCrise
Março de 2003

por Julio Cortázar
Trad. Vanessa Barbara 

Ele não está se divertindo. Definitivamente.

Jamais réel et toujours vrai 
(“Nunca real e sempre verdadeiro”, 
num desenho de Antonin Artaud)

Sempre serei como um menino para tantas coisas, mas um desses guris que desde o começo carregam consigo o adulto, de maneira que quando o monstrinho chega verdadeiramente à idade do adulto ocorre que, por sua vez, carrega consigo o menino, e no meio do caminho se dá uma coexistência poucas vezes pacífica de pelo menos duas aberturas para o mundo.

Isto pode ser entendido metaforicamente, mas indica, em todo caso, um temperamento que não renuncia à visão pueril como preço da visão adulta, e essa justaposição que convém ao poeta e talvez ao criminoso, e também ao cronópio e ao humorista (questão de doses diferentes, de acentuação aguda ou esdrúxula, de escolhas: agora jogo, agora mato), manifesta-se no sentimento de não estar de todo em qualquer das estruturas, em quaisquer das teias que a vida arma e onde somos ao mesmo tempo aranha e mosca.

Muito do que escrevo ordena-se sob o signo da excentricidade, já que entre viver e escrever nunca admiti uma clara diferença; se vivendo consigo dissimular uma participação parcial em minha circunstância, em troca não posso negá-la no que escrevo, já que escrevo precisamente por não estar ou por estar de maneira parcial. Escrevo por falência, por “descolocação”; e como escrevo de uma fenda, estou sempre pedindo para que outros busquem as suas e espiem por dentro delas o jardim onde as árvores têm frutos que são, certamente, pedras preciosas. O monstrinho segue firme.

Esta espécie de constante lúdica explica, se não justifica, muito do que escrevo ou vivo. Reportam-se aos meus romances – este jogo na borda da sacada, este fósforo ao lado da garrafa de gasolina, este revólver carregado na mesa de luz – uma busca intelectual do próprio romance, que seria assim como um contínuo comentário da ação e, muitas vezes, a ação de um comentário.

Aborrece-me argumentar, a posteriori, que ao largo dessa dialética mágica um homem-menino está lutando para concluir o jogo de sua vida: que sim, que não, que onde está está. Porque um jogo, bem observado, não seria um processo que parte de uma descolocação para chegar a uma colocação, a um arranjo – gol, xeque-mate, pedra livre? Não é o cumprimento de um ritual que leva à fixação final que o coroa?

Realismo ingênuo

O homem do nosso tempo acredita francamente que sua informação filosófica e histórica o salva do realismo ingênuo. Em conferências universitárias e em conversas nos cafés, chega a admitir que a realidade não é o que parece, e está sempre disposto a reconhecer que seus sentidos o enganam e que sua inteligência constrói uma visão tolerável porém incompleta do mundo. Cada vez que pensa metafisicamente, sente-se “mais triste e mais sábio”, mas sua confissão é momentânea e excepcional, enquanto o contínuo da vida o instala de cheio na aparência, concretiza-a em torno dele, veste-a de definições, funções e valores.

Esse homem é um ingênuo realista, mais que um realista ingênuo. Basta observar seu comportamento frente ao excepcional, o insólito: ou o reduz a fenômeno estético ou poético (“era algo realmente surrealista, te juro”) ou desiste, em seguida, de buscar na entrevisão um sonho, um ato frustrado, uma associação verbal ou causal fora do comum, uma coincidência perturbadora, qualquer das fraturas instantâneas do contínuo.

Se o interrogam, diz que não crê plenamente na realidade cotidiana e que somente a aceita de maneira pragmática. Mas lógico que crê, é só nisso que crê. O sentido de sua vida assemelha-se ao mecanismo de seu olhar.

Às vezes tem uma efêmera consciência de que a cada tantos segundos as pálpebras interrompem a visão que sua consciência preferiu entender como permanente e contínua; mas quase de imediato o pestanejar volta a ser inconsciente, o livro ou a maçã firmam-se em sua obstinada aparência.

Há como um acordo de cavalheiros entre a circunstância e os circunstantes: você não me tira dos meus costumes e eu não fico cutucando o senhor com um palito. Mas o problema agora é que o homem-menino não é um cavalheiro, mas um cronópio que não entende bem o sistema de linhas de fuga graças às quais cria-se uma perspectiva satisfatória dessa circunstância, ou, como sucede nos collages mal feitos, sente-se em uma escala diferente com relação à da circunstância, uma formiga que não cabe num palácio ou um número quatro em que não cabem mais que três ou cinco unidades.

A mim isto ocorre claramente, às vezes sou maior que o cavalo que monto, e outros dias caio dentro de um dos meus sapatos e sofro um golpe terrível, sem contar o trabalho pra sair, as escadas fabricadas nó a nó com os cordões e a terrível descoberta, já na ponta, de que alguém guardou o sapato dentro de um armário e que estou pior que Edmundo Dantés em um castelo de If, porque nem sequer há um padre à mão nos armários da minha casa.

E eu gosto, e sou terrivelmente feliz em meu inferno, e escrevo. Vivo e escrevo ameaçado por essa lateralidade, por esse paralaxe verdadeiro, por esse estar sempre um pouco mais à esquerda ou mais ao fundo do lugar onde se deveria estar para que tudo se materializasse satisfatoriamente num dia a mais de vida sem conflitos.

Dedo no ventilador

Desde muito pequeno assumi, com os dentes cerrados, esta condição que me dividia de meus amigos e ao mesmo tempo os atraía em direção ao raro, ao diferente, ao que metia o dedo no ventilador.

Não estava privado de felicidade; a única condição era que coincidisse às vezes com a de outro (o camarada, o tio excêntrico, a velha louca) que tampouco calçava plenamente o seu número, o que naturalmente não era fácil; mas logo descobri os gatos, nos quais podia imaginar minha própria condição, e os livros, onde a encontrava de cheio. Nesses anos li os versos possivelmente apócrifos de Poe:

From childhood’s hour I have not been
As others were; I have not seen
As others saw; I could not bring
My passions from a common spring –

Mas o que para o virginiano era um estigma (luciferino, mas por isso mesmo monstruoso) que o ilhava e condenava,

And all I loved, I loved alone

isso não me apartou daqueles cujo redondo universo eu só tangencialmente partilhava. Hipócrita sutil, atitude para todos os mimetismos, ternura que ultrapassava os limites e os dissimulava; as surpresas e as aflições da primeira idade tinham para mim uma ironia amável.

Lembro-me bem: aos onze anos emprestei a um amigo O segredo de Wilhelm Storitz, no qual Julio Verne me propunha como sempre um comércio natural e íntimo com uma realidade nada diferente da cotidiana. Meu amigo devolveu-me o livro: “Não terminei de ler, é demasiadamente fantástico”. Jamais renunciarei à surpresa escandalizada desse minuto. Fantástica, a invisibilidade de um homem? Então só no futebol, no café com leite, nas primeiras confidências sexuais poderíamos nos encontrar?

Adolescente, acreditei como tantos que meu contínuo estranhamento era o símbolo anunciador do poeta, e escrevi os poemas que se escrevem então e que sempre são mais fáceis de se escrever do que a prosa, a essa altura de uma vida que repete no indivíduo as fases da literatura.

Com os anos, descobri que se todo poeta é um estranhado, nem todo estranhado é poeta, na acepção genérica do termo. Entro aqui em terreno polêmico, aceite o desafio quem quiser.

Se por poeta entendemos funcionalmente aquele que escreve poemas, a razão para que os escreva (não se discute a qualidade) deve-se ao fato de que seu estranhamento pessoal provoca um mecanismo de challenge (desafio) and response (resposta); assim, cada vez que o poeta é sensível à sua lateralidade, à sua situação extrínseca em uma realidade aparentemente intrínseca, reage poeticamente (quase diria profissionalmente, sobretudo a partir de sua maturidade técnica); dito de outra maneira, escreve poemas que são como petrificações desse estranhamento, o que o poeta vê ou sente em lugar de, ou ao lado de, ou por debaixo de, ou diante de, remetendo este “de” ao que os demais vêem tal como acreditam que é, sem deslocamento nem crítica interna.

Julio CortázarPoemas vêm da estranheza

Duvido que exista um só grande poema que não tenha nascido dessa estranheza ou que não a traduza; mais ainda, que não a ative ou a potencialize ao suspeitar que é precisamente a zona intersticial por onde cabe ascender.

Também o filósofo se estranha e se desloca deliberadamente para descobrir as fissuras do aparente, e sua busca nasce também de um challenge and response; em ambos os casos, ainda que os fins sejam diferentes, há uma resposta instrumental, uma atitude técnica frente a um objeto definido.

Mas já se sabe que nem todos os estranhados são poetas ou filósofos profissionais. Quase sempre começam por sê-lo ou por querer sê-lo, mas chega o dia em que se dão conta de que não podem ou não estão obrigados a essa response quase fatal que é o poema ou a filosofia frente ao challenge do estranhamento.

Sua atitude se torna defensiva, egoísta se preferir, posto que se trata de preservar sobretudo a lucidez, resistir à solapada deformação que o cotidiano codificado vai montando na consciência com a ativa participação da inteligência racional, os meios de informação, o hedonismo, a arterioesclerose e o matrimônio inter alia [entre outras coisas].

Os humoristas, alguns anarquistas, não poucos criminosos e uma certa quantidade de contistas e romancistas se situam neste setor pouco definido no qual a condição de estranhado não acarreta necessariamente uma resposta de ordem poética. Estes poetas não profissionais suportam seu deslocamento com maior naturalidade e menor brilho, e até seria possível afirmar que sua noção do estranhamento é lúdica, em comparação à resposta lírica ou trágica do poeta.

Enquanto este trava sempre um combate, os estranhados simplesmente se integram à excentricidade até um ponto em que o excepcional dessa condição, que suscita o challenge para o poeta ou o filósofo, tende a tornar-se condição natural do sujeito estranhado, que assim o preferiu e que portanto ajustou sua conduta a essa aceitação paulatina.

Penso em Jarry e num lento comércio à base do humor, da ironia, da familiaridade, que acaba por inclinar a balança para o lado das exceções, por anular a diferença escandalosa entre o sólito e o insólito, e permite o progresso cotidiano, sem response concreta porque já não há challenge, a um plano que (à falta de melhor nome) seguiremos chamando realidade, mas sem que seja um flatus vocis [vocábulo sem conteúdo] ou um pior é nada.


La vuelta al día en ochenta mundos, editora Siglo XXI.