Site EmCrise
abril de 2003
Por Jorge Luis Borges e Adolfo Bioy Casares
In: Nuevos Cuentos de Bustos Domecq
Trad. Vanessa Barbara
Sobrepondo-me ao sentimento que o coração me dita, escrevo com a Remington este perfil de Ernesto Gomensoro, para fazer as vezes de prólogo à sua Antologia. Por um lado, perturba-me o desgosto de não poder executar de modo completo o desejo de um defunto; por outro, tenho a satisfação nostálgica de descrever esse homem de prestígio que os pacíficos vizinhos de Maschwitz ainda hoje recordam sob o nome de Ernesto Gomensoro. Não esquecerei facilmente daquela tarde em que me acolhera, com mate e biscoitinhos, sob a varanda de sua quinta, não longe do caminho do trem. A causa que me levou a esse fim-de-mundo foi a natural comoção de ter sido objeto de um cartão, dirigido à minha casa, convidando-me para figurar na Antologia que estava então por nascer. O fino olfato de tão notável mecenas despertou meu sempre aguçado interesse. Além do mais, quis pegar sua palavra no pulo, sem que se pudesse se arrepender, e decidi levar em mãos a colaboração, para evitar as clássicas demoras que são geralmente imputadas aos nossos Correios.
A cabeça calva, o olhar perdido no horizonte rural, as largas bochechas de pelugem cinza, a boca em geral provida de bombilla e mate, um estreito lenço de mão embaixo do queixo, o peito de touro e um leve traje de fibra amassado pela metade, constituíram meu primeiro instantâneo. Desde a cadeira de vime, o conjunto atrativo de nosso anfitrião complementou-se rapidamente com a voz afável que me indicou o banquinho da cozinha para que me sentasse. A fim de pisar em terreno firme, agitei à sua vista, vaidoso e firme, o cartão-convite.
– Sim – disse com displicência -. Mandei a circular por toda a parte.
Semelhante sinceridade me envaideceu.
Em tais casos, a melhor política é congraçar-se com o homem que tem nosso destino nas mãos. Declarei, com extrema franqueza, que eu era repórter de artes e letras da Última Hora e que meu verdadeiro propósito era o de dedicar-lhe uma reportagem. Não se fez de rogado. Cuspiu algo verde para limpar a garganta e disse, com a naturalidade que adorna as figuras eminentes:
– Avalio seu propósito de coração. Previno-lhe que não vou falar da censura, porque já mais de uma pessoa anda repetindo que sou temático e que a guerra contra a censura tornou-se minha única idéia fixa. Você me rebaterá com a objeção de que atualmente são poucos os temas apaixonantes como este. Não é pra menos.
– E como sei – suspirei -. O pornógrafo mais despreocupado observa, a cada dia, um novo impedimento em seu campo de batalha.
Sua resposta me deixou sem outro recurso senão o de abrir a boca.
– Já suspeitava que você se agarraria para esse lado. Reconheço prontamente que impôr restrições ao pornógrafo não tem muito de simpático. Mas esse caso tão repetido não é mais que, como açúcar e canela, uma faceta do assunto. Tanta saliva gastamos contra a censura moral e contra a censura política, que passamos por alto a outras variedades que são, de longe, mais ultrajantes. Minha vida, se você me permite chamá-la assim, é um exemplo instrutivo. Filho e neto de progenitores que foram invariavelmente deslocados na mesa de exames, vi-me levado desde pequeno às mais diversas tarefas. Foi assim que me arrastou o vórtice da escola primária, da corretagem de valises de couro e, em instantes roubados durante o trabalho, da composição de um ou outro verso. Este último fato, em si carente de interesse, alvoroçou a curiosidade dos espíritos inquietos de Maschwitz e não tardou em correr por aí e aumentar-se de boca em boca. Senti, como quem vê subir a maré, que o consenso do povo, sem distinção de sexo nem idade, receberia com alívio que eu começasse a publicar em jornais. Apoio semelhante impeliu-me a mandar pelo correio, a revistas especializadas, a ode “A caminho!”. Uma conspiração de silêncio foi a resposta, com a honrosa exceção de um suplemento que devolveu-me o texto sem nada dizer.
Lá ele pode ser visto, em um quadro.
Não me deixei desanimar. Minha segunda carga assumiu uma natureza massiva; remeti a não menos de quarenta órgãos simultâneos o soneto “Em Belém” e depois, continuando o bombardeio, as décimas “Eu ensino”. A “O tapete de esmeralda” e “Pão de centeio” coube, você não vai acreditar, idêntica sorte. Tão estranha aventura foi acompanhada, em suspense simpático, pelas autoridades e pelo pessoal de nosso correio, que se apressaram em divulgá-la. O resultado foi previsível; o doutor Palau nomeou-me diretor do diretor do suplemento literário das quintas-feiras do diário La Opinión.
Desempenhei essa magistratura civil durante quase um ano, quando me botaram no olho da rua. Fui, sobretudo, imparcial. Nada, admirável Bustos, vem incomodar minha consciência pela madrugada. Se uma só vez dei entrada a um filho de minha musa – o poema “Pão de Centeio”, que deu origem a uma persistente campanha de solicitadas e anônimas – o fiz sob o seguro pseudônimo de Alferes Nemo, com alusão, que nem todos captaram, a Julio Verne. Não foi só por isso que me ensinaram o caminho da rua; não havia animal vivente que não me creditasse a culpa de que a folha das quintas era antes o cesto de lixo ou, se você preferir, a pior sujeira. Aludiam, quando muito, à ínfima qualidade das colaborações expostas. A acusação, sem dúvida, era justa; não era assim que se compreendia o critério que me ministrara de bússola. Mais náusea que aos piores aristarcos me segue dando a retrospectiva leitura daqueles papéis sem ritmo nem razão, que eu, sem mesmo folheá-los, confiava ao senhor que manipulava a gráfica. Conto-lhe, como você vê, com o coração na mão: passar direto ao linotipo era tudo e eu não me dava ao trabalho de averiguar se eram em prosa ou verso. Peço-lhe que acredite em mim: meu arquivo guarda um exemplar em que se repete duas ou três vezes a mesma fábula, copiada de Iriartre e assinada de maneira contraditória. Propagandas de Chá Sol e de Erva Gato alternavam-se gratuitamente com o resto das colaborações, sem que faltasse algum desses versinhos que os desocupados deixam no banheiro. Figuravam também nomes femininos da maior popularidade, com o número de telefone.
Como já tinha farejado minha senhora, o doutor Palau acabou por montar o cavalo e disse-me na cara que a folha literária acabou-se e que não podia dizer que me agradecia os serviços prestados, porque não estava pra brincadeiras e que eu fosse embora no trote.
Sou sincero com você: para mim a demissão deve atribuir-se, por incrível que pareça, à publicação fortuita do notável poema “El malón”, que revive um episódio muito querido na região, a devastadora incursão dos índios pampas, que não deixaram nem boneco com cabeça. A veracidade do flagelo foi posta em dúvida por mais de um iconoclasta de Zárate; o indiscutível é que insuflou os elegantes versos de Lucas Palau, leiloeiro e sobrinho do nosso diretor. Quando você, jovem, estiver para tomar o trem, que faltar pouco, mostrarei o poema aludido, que tenho em um quadro. Publicara-o, segundo a minha norma, sem prestar atenção na assinatura nem no texto. O bardo, disseram-me, arremeteu com outros versos que esperaram sua vez e que não saíram, porque nunca deixei de respeitar a ordem de chegada. Despropósito por despropósito, ia postergando a publicação; o nepotismo e a impaciência transbordaram no copo e foi então que tive que encontrar a porta da saída. Retirei-me.
No decorrer deste discurso, Gomensoro falou-me sem amargura e com evidente sinceridade. No meu rosto pintava-se a concentração de quem contempla um porco voando e fui rápido em dizer:
– Serei burro, mas não capto completamente. Quero entender, quero entender.
– Todavia não lhe soou a hora – foi a resposta -. Pelo que vejo, você não é desta região penetrável de todos os meus amores, mas burro – para repetir sua opinião, não menos objetiva que severa – bem poderia sê-lo, por não haver entendido nem um “jota” do que estou reforçando. Um testemunho mais dessa incompreensão difundida foi que a Comissão de Honra dos Jogos Florais, que tanto brilho deram à nossa pujante localidade, ofereceu-me a honra de ser jurado dos mesmos. Não haviam entendido nem um “jota”! Como era meu dever, declinei. A ameaça e o suborno estilhaçaram-se contra minha decisão de homem livre.
Neste ponto, como se tivesse fornecido a chave do enigma, sugou de novo a bombilla e encastelou-se em seu foro interior.
Quando esgotou-se o conteúdo da chaleira, atrevi-me a sussurrar com voz de flauta:
– Meu senhor, ainda não consigo compreendê-lo.
– Bom, explicarei em palavras do seu nível. Aqueles que socavam com a pena as bases dos bons costumes ou do Estado não desconhecem, quero acreditar, que expõem-se a depenar o rosto ao rigor da censura. O feito é inqualificável, mas comporta certas regras de jogo e aquele que as infringe sabe o que faz. Entretanto, vejamos o que acontece quando você aparece na redação com um original que é, por onde quer que se olhe, um caos. Lêem o texto, devolvem-no e dizem para que o coloque onde quiser. Aposto que você sai com a certeza de que foi vítima da censura mais impiedosa. Suponhamos agora o inverossímil. O texto por você submetido não é uma cretinice e o editor o toma em consideração e manda-o à gráfica. Bancas e livrarias o colocarão ao alcance dos incautos. Para você, é um êxito, mas a verdade inescapável, meu estimado jovem, é que o seu original, confuso ou não, passou pelas humilhações da censura. Alguém o analisou, ao menos por cima, alguém o julgou, alguém o descartou ao cesto ou mandou-o à gráfica. Por mais infame que pareça, o acontecimento repete-se continuamente, em todo o jornal, em toda a revista. Sempre nos deparamos com um censor que elege ou descarta. Isso é o que não agüento nem agüentarei. Começa a entender meu critério quando dirigia a folha das quintas-feiras? Nada revisei nem julguei; tudo encontrou lugar no Suplemento. Nestes dias o acaso, na forma de uma súbita herança, permitiram-me finalmente a confecção da Primeira Antologia Aberta da Literatura Nacional. Assessorado pela lista telefônica e outras, dirigi-me a todo animal vivente, inclusive a você, solicitando-lhe que me mande o que der vontade. Observarei, com a maior eqüidade, a ordem alfabética. Fique tranqüilo: tudo sairá em letras de forma, por mais imundo que seja. Não quero retê-lo. Já estou ouvindo, me parece, os apitos do trem que o reintegrará à labuta diária.
Saí talvez pensando que quem diria que essa primeira visita a Gomensoro seria a última. O diálogo cordial com o amigo e mestre não se repetiria noutra ocasião, pelo menos nesta margem do lago Estige. Meses depois o arrebatou a Morte em sua quinta de Maschwitz.
Incompatível com todo ato que envolve um mínimo de escolha, Gomensoro, dizem, embaralhou num tonel os nomes dos colaboradores e nessa rifa saí-me como o agraciado. Pertenceu-me uma fortuna cujo montante superava meus mais brilhantes sonhos de cobiça, sob a única obrigação de publicar com rapidez a antologia completa. Aceitei com a aflição que era de se esperar, e transferi-me para a quinta, que outrora me acolhera, onde cansei de contar espaços cheios de manuscritos que já concluíam a letra C.
Foi como se tivesse sido atingido por um raio, quando conversei com o tipógrafo. A fortuna não bastava para ir, nem em papel de serpentina e letra de lupa, mais além de Añañ!
Já está publicado em brochura todo esse monte de volumes. Os excluídos, de Añañ em diante, têm me enlouquecido com reclamações e protestos. Meu advgoado, o doutor González Baralt, alega em vão, como prova de retidão, que eu também, que começo com B, fiquei de fora, para não dizer nada da impossibilidade material de incluir outras letras. Aconselha-me, neste ínterim, que eu busque refúgio no hotel O Novo Imparcial, com um nome falso.