De olho neles | Vanessa Barbara & Emilio Fraia
Portal Literal
16/05/05
por Marcelino Freire
Isso mesmo. Hoje, dois escritores de uma vez. Faz tempo estou de olho neles. Aqui, de uma teclada só: os dois. Overdose dupla, pois.
Vou explicar: queria escrever sobre o Emilio Fraia. E escrever sobre a Vanessa Barbara. Separadamente. Mas eis que de repente fiquei sabendo que a dupla paulistana está escrevendo um livro só. Obra a quatro mãos. Sozinhos não. Estrearão em dueto, eta danado!
Uma versão brasileira – creio que pioneira – da experiência feita pelos argentinos Jorge Luís Borges e Bioy Casares – que juntos dividiram “Seis Problemas para Don Isidro Parodi”, entre outros parágrafos.
Quis saber mais desse projeto e fui tomar uma cerveja, num boteco, com a Vanessa e o Emílio. Esperavam-me, uníssonos.
– Éramos vizinhos e não sabíamos.
Eles se falavam via Internet até que descobriram estarem ali, pertinho, morando no mesmo bairro de Santana. E tantas afinidades tantas. Nasceram no mesmo dia 14, ela de junho, ele de abril do mesmo ano, 1982.
E também que gostavam de alguns escritores semelhantes. E da mesma diversão. Dizem: “escrever é uma curtição”. Eu digo que é um jogo. Os dois concordam. Estão montando um quebra-cabeça. Era uma vez uma partida de xadrez.
A coisa funciona assim: um manda uma linha, uma frase. O outro lê e enfia ali novas frases, costura, corta e reescreve. Até acontece de um inventar um personagem e o outro o matar, sem pestanejar.
– É o jogo ou não é, Vanessa?
– Pô, Emilio, nada de espernear!
Hoje é até difícil saber quem escreveu o quê. Tão misturados que estão. Feito amigos siameses, pode ser. Colados por uma mesma linguagem. O resultado é lírico, bem bonito. Um romance passado numa plantação de milho. Ainda sem editora e sem título.
– Já estão perto do ponto final? Ou dos dois pontos?, pergunto.
Quase. De quando em quando, mostram para alguém um trecho e voltam para consertar, no texto, algumas “incongruências metereólogicas”, por exemplo.
– Foi a mãe de Vanessa quem nos disse que não pode haver poeira onde acabou de chover.
Ou que lagartixa não escorre quando morre. Cai da parede e pronto.
E antes que você, caro leitor, proteste: o que tanto esses dois estão falando? Resolvi eu entrar no jogo e aumentar a confusão. Pedi que um apresentasse o outro. E que, depois, Vanessa e Emílio respondessem, juntos, às perguntas que vão adiante. Você nunca viu nada igual. Pelo menos aqui no Portal.
Vejamos:
ELE POR ELA
[Aqui, Vanessa Barbara apresenta Emilio Fraia]
Emilio Fraia nasceu em 1982 numa folha de papel. Como todos sabem, ele não passa de um cartum pintado a guache num cenário de casinhas tortas. Foi meu vizinho no bairro do Mandaqui até 2002 [se abrisse demais os braços, corria o risco de me acertar a testa], mas rumou para o exílio e hoje mora na Vila Mariana. Desde os 17 anos, Emilio edita um zine chamado Givago, que no começo era de papel e circulava nos corredores da escola. O apelo das massas fez com que o zine fosse para a internet [www.givago.com], onde teve 91 edições e mais de mil assinantes. Ele escreve mensalmente na revista Trip, costuma assistir futebol de palhaços, tem um fígado assaz argentino e é obsessivo com as questões sintáticas. Tivemos uma professora de português que se chamava Nanami; ela ensinou o Emilio a buscar [mesmo aos domingos e nas listas de supermercado] a mais perfeita disposição dos elementos frasais. Hoje ele revisa tudo o que escreve até o olho cair e é parcimonioso na utilização de advérbios de modo. Vez ou outra, o Emilio é soterrado por abóboras.
ELA POR ELE
[Aqui, Emílio Fraia apresenta Vanessa Barbara]
Vanessa Barbara compra paçocas no bar do Seu Firmo. Se não tivesse nascido no ano da graça de 1982, ela estaria hoje com 80 anos pregando para os pássaros e peixes, conversando com os gravetos e culpando o avanço comunista. É dona de um canteiro de almeirão: o zine A Hortaliça [www.damnzine.hpg.ig.com.br] que existe há três outonos e 58 edições. Em abril, a Vanessa me deu um disco de tango de presente de aniversário. Jornalista e preparadora de originais para a Companhia das Letras, ela trabalha quando não está ocupada e cultiva filmes do Billy Wilder, Hitchcock, Truffaut, além de coisas velhas, mudas e com figurantes que abrem os braços para sapatear. Tem medo de palhaços, é exímia jogadora de vôlei, conhece todas as linhas de ônibus de São Paulo e gosta quando a Anna Karina canta que tem uma “p’tit ligne de chance”. Quando éramos vizinhos, chegamos a construir uma ponte de madeira para ligar as nossas cozinhas. A Vanessa tinha uma gata chamada Gata. Nas idas e vindas perdemos um vibrafone, que procuramos até hoje.
EU & ELES
[Leia aqui uma conversa entre mim e os dois]
EU – Contem um pouco como surgiu a idéia do projeto, então. Que projeto de livro é esse? Por que a quatro mãos?
ELES – Escrevemos juntos, a Vanessa e o Emilio, há dois anos. Eles têm uma porção de contos a dois, alguns projetos, uma vasta correspondência não-autorizada e rascunham jogos a troco de nada – criamos personagens, teorizam enredos, inventamos lugares. O livro é resultado de uma dessas piadas internas [“além do mais, somos cinco e não queremos ser seis”], uma história ambientada em um campo de milho, cruel, colorida, noturna. Funciona assim: não discutimos o texto, é proibido falar. Escrevem, apenas. Aos domingos, na hora da missa, um de nós rabisca uma frase, um parágrafo e manda para o outro, que muda, sapateia, acrescenta e devolve – com o cuidado de apagar sempre os limites entre o que é do Emilio e o que é da Vanessa. Agora o ritmo aumentou: trocamos trechos a cada três dias. É, ao mesmo tempo, um jogo e um convite para dançar. Às vezes a Vanessa pisa no meu pé, outras vezes o Emilio inventa um passo esquisito. Mudam as regras também e, a todo instante, trocamos os móveis de lugar. Quando chego na sala que deixei em ordem, o Emilio arrastou o sofá, a Vanessa colocou o armário na frente da porta.
EU – Há uma inspiração nos livros em dupla que fizeram Jorge Luis Borges e Adolfo Bioy Casares? O que vocês acham dos dois, me digam.
ELES – Quando começamos a escrever a quatro mãos, e a perceber que se tratava de um quebra-cabeças divertido, o Emilio e a Vanessa, que já gostávamos de Borges, lembraram do Bustos Domecq. Em 1942, o Borges e o Bioy publicaram, juntos, “Seis Problemas Para Don Isidro Parodi”. O livro era assinado por um personagem criado pelos dois, Bustos Domecq [Bustos era um bisavô de Borges; Domecq, um bisavô de Casares]. Borges o descrevia assim: “É um personagem que nos impõe sua estética e nos faz escrever contos e crônicas de que não gostamos, mas cujo ditado devemos obedecer”. Para Bioy, “Domecq era a celebração da ausência de vaidade. Com ele, a literatura era o que deve ser: um prazer gratuito”. Sem tradução no Brasil [a editora Dantes foi a única a publicar algo da dupla, parece], o Emilio trouxe de Buenos Aires todos os livros “escritos” pelo Bustos Domecq [quatro ao todo]. Mas o importante mesmo é lembrar que a parceria entre o Borges e o Bioy começou com um iogurte. Foi em 1935, quando eles trabalharam em folhetos publicitários para um iogurte búlgaro que estava sendo lançado na Argentina. Para valorizar as qualidades longevas do produto, inventaram uma família búlgara cuja filha mais jovem tinha 90 anos. Do Borges, a Vanessa gosta do “História Universal da Infâmia”, o Emílio mantém o “Livro de Areia” por perto, mas nosso preferido é mesmo o “Ficções”. Bioy puro a gente leu muito pouco: além de “A Invenção de Morel”, a Vanessa traduziu um conto sobre velhinhos que voam. Foi o Bioy quem nos ensinou que todos os planos, por mais bem elaborados, são inúteis na hora de escrever: “Esboço toda a trama. Só assim, com a estrutura pronta, posso me sentar para escrever com a certeza de que não serei enganado pela história. O problema é que quando começo a rabiscar, todas as minhas soluções falham. Esse preparo mental só serve para que eu me engane e assim fique menos tenso para escrever. Na hora, minhas soluções maravilhosas não funcionarão e então serei obrigado a partir do zero”, disse o Adolfito.
EU – Quais escritores vocês lêem? O que pensam da nova literatura brasileira? E do mercado editorial etc. e tal. Eta!
ELES – Em jogral, alternando canto e recitativo, ária e coral. Emilio e Vanessa: Cortázar, Borges, Carroll. Emilio: Perec. Vanessa: Sterne. Emilio e Vanessa: Fitzgerald, Kafka, Drummond. Emilio: Piglia. Vanessa: aquele livro com fotos de macacos. Emilio: Valêncio Xavier, Clarice, Chico Alvim, Pirandello. Vanessa: Campos de Carvalho, Poe, Voltaire, Flaubert, Beckett. Da literatura feita hoje, eles leram bem pouco, mas gostamos do Joca Reiners Terron, do Mirisola, do Pellizzari, do Antonio Prata. Do mercado editorial não sabemos muito também, parece que foi comprar cigarros e não voltou.
EU – E dá, agora, para vocês se desgrudarem e responderem individualmente quais projetos solos vocês têm?
ELES – A Vanessa tem um livro-reportagem sobre a rodoviária Tietê, recusado por setecentas e quinze editoras e duas máquinas de mimeógrafo. Ela também acumulou 400 páginas de Hortaliças [zine que edita], colocou-as em uma cestinha de vime e despachou-as, com fome, para o Paulo Werneck, que tem experiência no ramo [ele faz compras no supermercado Alto do Mandaqui e edita a revista Ácaro, entre outras coisas]. O Emilio está terminando um livro só de orações subordinadas adjetivas e substantivas em que os protagonistas são patos – uma editora do condado de Uruguaiana já está de olho. E tem muitos contos e inícios de livros escritos à espera de um mecenas. Além disso, a “Obra Reunida” da Vanessa e do Emilio foi publicada recentemente pelo Google.
EU – O que esperam da literatura que vocês fazem? Do livro em dueto? Posso perguntar sobre o futudo da dupla? É cedo?
ELES – Escrever tem que divertir quem escreve, ponto e vírgula. Parafraseando o Quiroga, a gente tenta escrever como se a história não interessasse a mais ninguém senão ao mundo do Bruno, do Cabelo, do narrador e do Chibo. O futuro da dupla é o pior possível: daqui a um tempo estaremos na sarjeta, andando em círculos com uma bolsa vazia, depois de tomar uma surra dos nossos personagens.
ELES E O TEXTO DELES
[Leia um trecho do romance, ainda sem título e sem editora, escrito por Vanessa Barbara & Emilio Fraia]
Lá estão os meninos no corredor de milho onde o tiroteio começa; o Bruno escapa na dianteira com a barriga mole de tanto dar risada, atrás vem o Cabelo que cai sempre nos mesmos buracos e abre fogo com munição colorida — posso jurar, mesmo de longe, que o tiroteio de balas de goma tomou o campinho e o ar encheu-se de iguarias em forma de verme, legume e vibrafone. Meu irmão, o Chibo, ia no banco de trás. Eu estava no do passageiro, de joelhos e com a cabeça pra fora.
Pela janela, avistei o Cabelo que nunca conseguia alcançar ninguém, ainda mais entre os pés de milho, e novamente o espião búlgaro chegaria à fronteira do país neutro sob um tiroteio de masca-masca sabor banana, talvez ferido nas costas por um asquelminto, um rabanete ou um dó maior, subiria a escada de sisal da casa da árvore e gritaria mulherzinha mulherzinha. O Cabelo diria que não valeu porquessim, porque a brincadeira já perdeu a graça e os planos de Sua Majestade estavam criptografados ou a Bulgária não existia de todo (no que decerto teria razão). Seria acometido da mais gorda e suntuosa birra desde os tempos do prezinho e iria bater nos meninos mais novos. No Chibo não, claro. De todos, o meu irmão era o mais velho, tinha acabado de fazer doze anos (pelo retrovisor as palavras dele escapavam como uma estação fora do ar), e ele era forte e sempre me defendia e… Quando o carro parou, eu saltei com um pé só mas o Chibo, cheio de relâmpagos, nem se mexeu. Ele olhava para um ponto que eu não sabia onde era. Na plantação, o Cabelo veio para cima do Bruno, de banda, como desgovernado. O Bruno continuou correndo, disparou uns tocos de planta por cima do ombro — a essa altura eu também corria sem saber direito por quê — e nos cruzamos no ponto médio entre a casa da árvore e a estrada.
Ainda virei o rosto (cada vez menor, o carro sumia), mas o Bruno era rápido demais. Levou poeira e um vento sul de mormaço. O chão estava quente, a plantação começava a queimar e ficaria ainda pior, mas naquele primeiro dia choveu. Sem parar, o Bruno olhava pra cima com a boca aberta, tentando engolir o temporal, e não percebeu que a terra já escorregava: patinou durante uns bons metros e perdeu um sapato. “Maldição.” O Cabelo apanhou o artefato e classificou-o como prova A da Promotoria — mas nem chegou a pedir autorização do juiz para girar o tênis pelo cadarço e arremessá-lo à distância. Plof: uma artilharia de palmilha e cano alto bem na mira do espião búlgaro.
Apesar do ferimento de calibre 35/36 nas costas, o Bruno continuou correndo. Arrastava-se aos tropeços, imaginando sua consagração como herói nacional. A perseguição passaria na tevê em câmera lenta, depois o povo o aclamaria em carro aberto. Ele mostraria aos tataranetos a marca da sola durante um churrasco da família e contaria longas histórias de guerra, talvez até participasse de encontros de veteranos e coisa e tal.
O Bruno chegaria à casa na árvore, de fato, não fosse a intervenção divina da Grande Poça, a mãe de todas as lamas, que aconteceu de repente bem quando ele olhava para trás. O menino pisou em cheio no piscinão e caiu de cara. Emergiu daquela massa de chuva um Bruno caramelado e viu que era inútil continuar fugindo. A dois passos, a silhueta do Cabelo já lembrava seu direito de permanecer calado, citava a primeira emenda de cabeça e mostrava as algemas (que sequer existiam). A dois centímetros, um aro de metal sujo o encarava, talvez um anel. Bruno deu um jeito de guardar o objeto sem que o Cabelo percebesse, em seguida foi detido pelas autoridades e preso na casa da árvore.
2.
O Chibo também não estava quando, no dia seguinte, o Cabelo falou do homem morto — um corpo junto ao laguinho, em um lugar da plantação que, contado daquele jeito, parecia muito distante. Não demorou: no meio do milharal, um furacão vivo de círculos secretos, entradas e saídas, o Bruno propôs um jogo. Ajoelhou-se e distribuiu as folhas do caderno espiral, toda sua cartografia, pelo chão de terra. Calculou distâncias e provisões, pediu pra todo mundo girar em torno do próprio eixo a fim de despistar o inimigo e, finalmente, baseado em estudos preliminares sobre a geografia local e o posicionamento das nuvens, apontou o caminho mais estreito onde as folhas pareciam manchadas de ferrugem. Por ali, disse. Suas orientações vagas e intensas (o oeste correspondia invariavelmente ao norte e o centro estava junto à fronteira leste) passavam ao lado de uma árvore sozinha e muito vermelha, por trás de alguns velhos pés de caqui, entre uma pequena elevação, onde o caminho se bifurcava em um, dois, três outros. O Cabelo apressou-se em ir na frente sem maiores perguntas, abrindo caminho com o braço direito, “vira à direita aqui ou segue em frente porque dá na mesma”, e protegendo o rosto com a outra mão.
[…]
O Bruno estava de cócoras, tragado por um sol imenso, remexendo a palha que cobria o chão. Ele me viu, levantou rápido, despistando. “Cabelo!”, chamou. Com as mãos cheias de pedras, o Cabelo apareceu. A gente brincava de acertar pedras nas lagartixas da árvore. Por medo, nojo ou piedade, o Cabelo só ajudava e assistia ensaiando caretas a cada tiro. Não demorou para que um golpe (o Cabelo apertou os olhos, virou o rosto) dividisse ao meio uma das lagartixas.
As duas partes do bichinho despencaram tronco abaixo. Fiquei observando o vazio que separava a cabeça — os olhos estavam muito vivos ainda — e o rabo. “Será que um homem demora assim pra morrer?”, disse o Bruno.
Pensei no Chibo e que sim, alguém pode começar a morrer muito cedo. E levar dias, horas ou anos para não existir mais. Um vento atravessou o Bruno e rangeu, puxando o corpo dele para baixo. Sentou-se. “Deve ser difícil ver um pedaço nosso fora da gente”, ele cutucou fascinado as patas dianteiras da lagartixa com um pauzinho.
[…]
Não adiantava insistir como o Cabelo fez, gritando que a rainha da Bulgária tinha acabado de chegar e trazia um informe ultrasecreto porque, com porta ou sem porta, o Bruno passou a tarde trancado na casa da árvore e não receberia visitas. Cansado, o Cabelo morreu também, mas na sombra, porque ele era daqueles que ficam cor-de-rosa no verão. Psiu! Abri um pouquinho o olho direito: era impressionante como o Bruno parecia ter todas as coordenadas na cabeça, os próximos passos na forma de gráficos, tintin por tintin, e nada é pior do que quando já está tudo pronto e só falta atacar (a ansiedade). Psiu! O Cabelo, ele gesticulava para mim. Onde o Cabelo estava, bem debaixo da casa da árvore, o Bruno não podia vê-lo. Desenhou um telefone num pedaço de papel e mostrou pra mim. Precisava falar comigo, era isso. Rabiscou uma fruta vermelha, dois bonecos de pauzinho e um relógio marcando quinze para as quatro. Levantou em silêncio, picou os desenhos em pedaços muito pequenos (não queria deixar provas, explicaria depois) e sumiu.
[…]
O Cabelo, mão suada e cara vermelha, tinha colocado a camiseta ao contrário. As roupas dele viviam cheias de bolinhas, o Cabelo cortava a gola porque se sentia sufocado e ninguém nunca reclamou; com o tempo, ele começou a rasgar também a manga. O Cabelo, eu acho, queria mesmo era ganhar uma regata de time de basquete, daquelas furadas tipo coador de café. O sonho dele era dar olé no Bruno, driblar todo mundo no garrafão e autografar a testa dos meninos mais novos, mas de pensar ele se atrapalhava todo, enfiava a cabeça na manga, errava o lado direito da roupa — então eu olhei bem pra ele: “tua camisa tá do avesso”. Atrás de mim, o Chibo respirava forte.
Meu irmão não conseguia falar (as palavras desistiam), suas rodas giravam no vazio, os cabos interrompidos, as asas se soltariam da fuselagem e cairíamos os dois. Disse a ele que havíamos perdido o contato com a base, mas não avisei o Cabelo, queria poupá-lo. Àquela altura, mais de quatro mil pés, o Cabelo enfiou as três cápsulas dentro do bolso, no pacote das balas de goma. Fez aquilo para se salvar, acho. Eu escutava, com interferências, o Bruno repetir: “ninguém fala com ninguém. Quem for capturado deve”, e foi cortado por um ruído, um chiado, uma respiração forte. Então caminhamos eu e o Cabelo, e era um dia ímpar, até nos separar. Ele acenou de volta, seguiu. Cantarolava baixinho: “O braço não é o braço, o braço é a cabeça”, eu continuei na direção oposta, a da árvore toda vermelha, “a boca não é a boca, a boca é o umbigo”, e ouvia cada vez menos.