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Piauí n. 15
Dezembro de 2007

por Vanessa Barbara

Missa em latim provoca protestos de fiéis de 3 anos

In nomine Patris et Filii et Spiritus Sancti, diz o padre de costas, voltado para o altar. As palavras chegam miúdas na assembléia. Os fiéis têm os olhos fixos na estola verde sobre o dorso do sacerdote e no seu barrete litúrgico. Ele segue adiante: Introibo ad altare Dei, e sobe um degrau. Alguns fiéis respondem: Ad Deum qui lætificat juventutem meam [Ao Deus que alegra minha juventude], e viram a página do missal. A maioria se mantém calada, de joelhos e olhando para baixo. Outros rezam o terço ou tentam controlar suas crianças. Do altar, o padre prossegue com a oração inicial: Gloria Patri et Filio et Spiritui Sancto. Os fiéis replicam: Sicut erat in principio et nunc et semper et in sæcula sæculorum. Amen. É o começo da missa.

Desde o dia 16 de setembro, pode-se assistir, aos domingos, a uma missa em latim no Mosteiro de São Bento, em São Paulo. O ofício acontece às 18 horas e segue o rito tridentino, com o padre de costas para os fiéis, guardando distância. No dia do retorno à missa de são Pio V (1504-1572), ou “missa de sempre”, como é chamada pelos tradicionalistas, mais de 400 pessoas compareceram ao mosteiro.

Num domingo de outono, o número de fiéis continua grande. Até que toda a congregação possa comungar, recebendo a hóstia das mãos de dois sacerdotes, passam-se mais de dez minutos. “Voltou de suas catacumbas modernas a missa de são Gregório Magno, de são Bento, de são Pio V e de são Pio X”, rejubila-se o presidente da Associação Cultural Montfort, Orlando Fedeli, num artigo para o jornal da instituição. “Graças ao papa Bento XVI, a nau da Igreja, de novo, foi atada à coluna da hóstia”, comemora. Entre vitrais alemães e paredes de madeira entalhada, o coral gregoriano da Montfort solta o latim no cântico “Gloria in excelsis Deo”, com acompanhamento do portentoso órgão Walcker de 6 mil tubos. Lá fora faz calor, mas os homens vieram de terno. As mulheres usam véus rendados, pretos ou brancos. Laudamus te, benedicimus te, adoramus te, segue o coro, liderado por um insólito japonês.

A essa altura, as crianças já estão cansadas – a missa não chegou nem à metade – e perambulam pela nave da igreja, com seus sapatinhos lustrosos e roupas de domingo. Há uma quantidade incrível de crianças. A terceira fila é ocupada por uma constelação de menininhas: Maria Lúcia, Maria Helena, Maria Cecília, Maria Tereza e Maria Clara, todas nascidas neste século. Cada uma traz uma bolsinha para carregar o véu e o terço, como se estivessem num filme italiano da década de 50. Maria Helena, de 3 anos, muito compenetrada, lê o missal de ponta-cabeça.

Meia hora depois de iniciado o ritual, chega o momento da liturgia da palavra. O mistério se adensa, dado que as passagens bíblicas não constam do missal ordinário. Lidas em latim pelo padre, são incompreensíveis para a maioria dos fiéis. Um garotinho protesta em voz alta, mas também não é compreendido. Ao “Deo gratias” do público, e a mais um cântico do coro, segue-se a leitura do Evangelho. Maria Helena vira a página. Atenta, ouve minutos e mais minutos da vida de Cristo desfiada na língua de Sêneca, até a conclusão: Per evangelica dicta deleantur nostra delicta [Que pelas palavras do Evangelho nos sejam perdoados os pecados], quando todos se sentam. Depois da homilia – pregada em português e, o que é melhor, ao som de um microfone -, o padre convoca a congregação a dizer o creio-em-deus-pai: Credo in unum Deum, Patrem omnipotentem, factorem coeli et terræ. A pequena Maria Helena embarca: “Djubidjubi dju”.

***

Foi no dia 7 de julho de 2007, às nove da manhã, fuso horário do Vaticano, que Bento XVI publicou um motu proprio [por iniciativa própria] que liberou a celebração das missas em latim. O ritual tridentino segue o missal promulgado em 1570 por Pio V, em cumprimento ao mandato que recebera do Concílio de Trento; ficou em vigência exclusiva até a reforma litúrgica do Concílio Vaticano II, nos anos 1960. O Mosteiro de São Bento adotou o motu proprio dois meses depois da sua publicação. Sob o crucifixo barroco de 1777 e o ícone da Virgem de Kasperovo, trazido por russos foragidos da revolução comunista de 1917, os monges passaram a promover a sua própria missa tridentina, com duração de uma hora e quarenta minutos. Nela, o sacerdote não fica “de costas”, como se costuma dizer, mas na posição ad Orientem [para o leste], em direção à Terra Santa. Sacerdote e congregação assumem a mesma posição, de frente para o altar, lugar simbólico de Cristo, versus Deum.

“Vão acabar, sim, as missas-rock, as missas com moçoilas dançantes com vestes diminutas ou transparentes, exibindo-se sensualmente ante o calvário”, prevê Fedeli, o presidente da Montfort, feliz com a resolução papal. “Essas missas com sambas e rocks, cuícas e baterias, essas missas de sacerdotes com rosto pintado como palhaços de circo. Acabou a missa de Oxum do padre Pinto. Acabou a missa com baldes de água jogados sobre os fiéis! Acabou a missa da cristoteca!”, festeja, num artigo intitulado “Christus vincit”. Adeus, padre Marcelo Rossi.

Mas nem todos estão satisfeitos. Na terceira fila, a pequena Maria Lúcia decide que é hora de ir ao banheiro. É retirada às pressas. As irmãzinhas ficam excitadíssimas: “Ih, a Lúcia fez cocô”, repetem. A novidade é tão graúda que, de uma hora para outra, elas não querem mais saber do ritual eucarístico nem das preces finais pela conversão da Rússia (introduzidas na missa tridentina por Pio XI, horrorizado que estava com os bolcheviques). A balbúrdia das menininhas chama a atenção do coral, que vacila. Como forma de manifestar impaciência, as cinco comportadas Marias arrancam os véus e deixam cair as chupetas.

Dando voz à insatisfação dessa parcela da cristandade que não aprova o motu proprio do Santo Papa, um menino de 3 anos aproveita uma pausa e grita: “Cabô?”

(Para os que sonham em celebrar o advento do Senhor na língua de Cícero, frei Guilherme Pinto, O.B.S., informa que “na Vigília de Natal não haverá missa no ritual tridentino”. Ou seja: Missa do Galo, só no vérnaculo mesmo.)