O Livro Amarelo do Terminal
Lançado em: junho/2008
Entrevista: Vanessa Barbara
Por Lívia Deorsola
No dia em que se tornar Deus, a mais idosa das escritoras, Vanessa Barbara, 25 anos, quer transformar o Atlântico em uma sopa de letrinhas (foi o que ela disse ao amigo Antonio Prata). Enquanto isso não acontece, ela mesma escreve o que lhe dá “na telha”, como nos conta na entrevista a seguir. Os leitores agradecem: em O livro amarelo do Terminal, lançado pela Cosac Naify – estréia da autora no universo editorial -, Vanessa desvendou a rodoviária do Tietê de um jeito há muito conhecido e pouco praticado – ousou ouvir e escrever as histórias mais simples, e por isso as mais surpreendentes. Com pinçadas precisas numa massa aparentemente amorfa, o livro resulta em uma rica engenhosidade polifônica, composta por vozes que em geral ninguém ouve – nem mesmo a de Marcos, “a voz mais bonita do terminal”, que costumava pilotar a mesa de controle e anunciar criancinhas perdidas.
Habilmente costurada por meio de pesquisa histórica, saudades, humor, literatura, sonhos, manchetes de jornal, desilusões e letras de música, esta narrativa inclassificável flui de forma que podemos vê-la passar diante de nós. E ouvi-la. Este efeito cinematográfico é pontuado pela autora – às vezes uma repórter invisível; outras, a protagonista de quem os funcionários “mais graduados” da Socicam (empresa administradora do terminal) têm medo. Por causa da “imagem”, claro.
Quais os motivos que a fizeram se interessar pelo terminal rodoviário do Tietê?
A rodoviária foi escolhida por representar São Paulo quase tão bem quanto a própria rua, por trazer histórias singulares que ilustram algumas contradições da metrópole: a modernização, o movimento repetitivo das pessoas que vão-e-vêm mecanicamente, a inconstância, a idéia de massas; e, por outro lado, a sensação de não-pertencimento, a vontade de retornar ao lugar de partida, o anacronismo dos personagens, a permanência – aquilo que nunca muda. “Tietê” vem do tupi: “té é té”, um rio que se mostra “muito fundo e corrente” e corta a cidade.
Você optou por um tipo de abordagem jornalística que dá voz aos que tradicionalmente não a têm: motoristas de ônibus, faxineiras, migrantes, atendentes, vendedores, camelôs. Quando pensou em escrever sobre o Tietê, estava especialmente preocupada em ressaltar isso?
O livro amarelo foi um projeto experimental de conclusão do curso de jornalismo. De início, era pra ser um livro de crônicas – classificado como livro-reportagem por causa da ausência do campo “Outros” no formulário de inscrição. Aos poucos, foi virando outra coisa e eu fui falando com quem conversava comigo, sem distinção.
Poderia nos contar um pouco sobre as abordagens às pessoas? Como eram feitas? Você imediatamente esclarecia a que viera, ou procurava puxar conversa, e então surgia um fio a ser puxado?
Sempre me apresentava e contava o que estava fazendo – embora algumas pessoas puxassem conversa do nada, sem se importar. Em geral eu me apresentava, puxava uma cadeira e era isso: pergunta daqui, pergunta dali, e no fim elas iam falando o que queriam (sobre frango com quiabo, carrapatinhos, miçangas). No segundo ano da faculdade, fiz uma monografia sobre inclusão digital (!) e aprendi um método de sociologia chamado “história oral”, que busca entrevistas abertas sem questionários prévios e sem tempo de duração, deixando o entrevistado o mais confortável possível. O legal é que as pessoas começam a falar das coisas que lhes são realmente importantes, ou pelo menos do que eles querem, e não do que eu acho que deveriam responder.
No livro estão histórias de vida, pura fruição literária, árdua pesquisa jornalística, dados institucionais e até mesmo letras de música da época em que o terminal foi construído. Como foi orquestrar tantos recortes para que fosse montado um panorama da rodoviária do Tietê?
O mais difícil foi encontrar o material – levei semanas para ter acesso às matérias antigas dos jornais em bibliotecas municipais, arquivo do Estado, arquivos pagos, centros de documentação etc. Parece mais simples do que é. De qualquer forma, a pesquisa é a minha parte preferida, e eu adorei ler as matérias antigas. Deu pra sentir o que acontecia na época, e era uma coisa tão absurda que exigia letras de músicas à altura.
Há diversos trechos em que você apenas descreve o que vê; ou seja, a observação foi um método importante. Tem o costume de olhar muito as pessoas a sua volta? Qual é o truque para que ninguém se incomode com isso? (Durante suas visitas ao terminal, alguém teve medo de você?)
Era para ser um livro de crônicas, ou seja, só as minhas observações. Mas não seria o suficiente… Ninguém teve medo de mim porque eu tenho uma inofensiva cara de 15 anos, mas às vezes as pessoas ficavam desconfiadas e demoravam mais para falar.
Num dos episódios, você chega a acompanhar o socorro a um funcionário do terminal. Foi um dia de sorte (para você, claro)?
Não! Foi um atendimento comum, nada grave, e foi bem tranqüilo. Talvez um dos méritos do livro seja justamente o de não ter presenciado nenhum acontecimento suntuoso, embora todas as histórias ali sejam impressionantes.
Ao buscar incansavelmente informações sobre a administração do terminal, você se deparou com respostas que contrariam a lógica da “informação pública e transparente”. Esperava por tanta dificuldade em obter dados?
Pensei que seria tão fácil quanto fazer uma reportagem na rua. O engraçado é que os seguranças e os funcionários do terminal (FTs) não davam a menor bola, mas os funcionários mais graduados ficavam apavorados com essa coisa da “imagem” da empresa. Parecia que, se eu fosse de algum veículo imaginário de imprensa, eles me tratariam com um pouco mais de respeito. Aí criei A Hortaliça, que hoje é um dos periódicos mais respeitados da mídia nacional e interplanetária.
O projeto gráfico de O livro amarelo do Terminal é dos mais originais e capta exatamente o espírito polifônico presente na narrativa.
Chegou a dar algum palpite no desenho do livro? Qual foi a sensação de ver seus relatos neste formato?
É tudo mérito dos editores, especialmente da Elaine Ramos e da Maria Carolina Sampaio. Ficou lindo e perfeito para o texto, é exatamente do jeito que eu queria – o mais incrível é que eu não dei nenhum pitaco. E você pode colar seus comprovantes de bagagem na capa! [Conheça detalhes do projeto gráfico]
Se aqui cabem classificações, sua escrita está identificada com o jornalismo literário. Aqui temos Joseph Mitchell [O segredo de Joe Gould], Gay Talese [Honrados Mafiosos], chegando até o escracho do gonzo journalism, com Hunter S. Thompson. Enxerga algo destas experiências literárias no que você escreve?
Gosto muito desses autores e li todos na época de estudante (para o trabalho também li Hemingway, Orwell, Dickens, Capote, John dos Passos, João do Rio, Rubem Braga, Veríssimo e Will Eisner), mas seria muita pretensão me comparar a eles… só achei que era a oportunidade de fazer alguma coisa diferente e escrever como me desse na telha.
Ao saber de sua idade, todos se admiram: “25 anos e já autora de livros de qualidade”. A constatação te ocupa alguma reflexão?
É que eu tenho cara de 15, RG de 25 e espírito de 80. Sou a mais idosa das escritoras.
Livro editado, histórias contadas. Como se sente hoje ao passar pelo terminal rodoviário do Tietê?
Eu lembro de cada linha. Em “O narrador”, Walter Benjamin disse que todo dia recebemos as novidades do universo, mas somos pobres em histórias notáveis. O mais surpreendente de viajar dentro da rodoviária é descobrir que existem pessoas por lá – e não só estatísticas, notícias sobre a movimentação dos passageiros no feriado ou declarações de telejornal. Durante o trabalho, lembrei de um livro do Rubem Braga sobre a Segunda Guerra em que ele diz: “Encontramos no meio do caminho o general Cordeiro de Farias, que está deixando crescer um bigode, e vamos a uma central de tiro”. Ele fala de um soldado que veio de Monte Aprazível e estava terminando o liceu, de outro que é filho do proprietário das Perfumarias Carneiro, do sargento Domingos Leite que é da Rua Goitacases, 1726 e vai se casar no inverno e daquele que mandou uma carta pra casa “fazendo um enorme lero-lero sentimental do começo ao fim, disse que está morrendo de saudades, viver sem ti é uma desgraça, eu não sei como agüento esta separação, é uma agonia medonha, choro pensando em ti, e no fim de tudo isso meteu um P.S. – ‘manda me contar o resultado do jogo do Bangu'”.
Enfim, a rodoviária é feita de pessoas, todas com uma história triste, uma fala solene, uma observação absurda.