As vozes originais da Flip

Postado em: 21st junho 2008 por Vanessa Barbara em Clipping
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O Estado de S.Paulo
21/06/2008

por Ubiratan Brasil

Grandes nomes internacionais são habitualmente o grande atrativo da Festa Literária Internacional de Paraty, cuja sexta edição começa no dia 2. E, neste ano, o leque vai do dramaturgo inglês Tom Stoppard à historiadora da

psicanálise Elizabeth Roudinesco. Um olhar mais apurado, no entanto, é capaz de detectar autores ainda não tão conhecidos mas cuja obra, se fosse um time de futebol, certamente estaria na Série A da literatura nacional.

É o caso do gaúcho Vitor Ramil e dos paulistanos Vanessa Barbara e Emilio Fraia. O primeiro, também cantor e compositor, chamou atenção quando lançou Pequod, em 1995, um instigante livro de memórias não apenas sobre fatos realizados, mas também de momentos não experimentados ou então vividos mas não lembrados. Na Flip, Ramil vai discutir sobre sua nova obra, Satolep (Cosac Naify, 288 páginas, R$ 39), uma nova incursão ao passado, dessa vez, de sua cidade natal, Pelotas.

Já Vanessa e Fraia encontraram uma rara afinidade estilística para escrever O Verão de Chibo (Alfaguara, 120 páginas, R$ 23,90), uma pequena jóia que trata dos mistérios que cercam o amadurecimento. Juntos, eles vão participar da primeira mesa da Flip, no dia 2, que vai reunir ainda Adriana Lunardi e Michel Laub. Chamado de ‘Primeiro Tempo’, o encontro deve discutir o trabalho dos autores que já podem ser incluídos entre os mais originais da nova geração nacional.

Ramil, que vai dividir o debate com o americano Nathan Englander e o argentino Martín Kohan, no dia 3, trabalhou com músicos e arranjadores como Egberto Gismonti, Wagner Tiso, Luis Avellar, Zizi Possi e Tetê Espíndola, entre outros. Graças a um estilo apurado, era inevitável sua incursão pela literatura, instrumento pelo qual cria diários de viagem em que a sensibilidade conduz a ação, em vez de se limitar a um retrato fiel do passado.

A escrita da região do Rio da Prata também influenciou Vanessa Barbara e Emilio Fraia, que miram no feliz encontro dos argentinos Jorge Luis Borges e Adolfo Bioy Casares. Estes, unindo idéias e estilos, alcançaram uma voz narrativa coesa. ‘Quando duas pessoas escrevem juntas, e não são vaidosas, o resultado é melhor do que quando trabalham separadas’, disse Casares, abrindo caminho para os jovens paulistanos.

De alunos a escritores convidados

Os caminhos de Vanessa Barbara e Emilio Fraia, apesar de muito próximos, demoraram para se cruzar. Ambos nasceram no mesmo ano de 1982, no bairro paulistano do Mandaqui. Embora vivessem a uma distância de 200 metros, demoraram para se conhecer. Mesmo assim, desfrutaram as experiências semelhantes na infância, estudaram na mesma faculdade, mas só notaram uma afinidade quando o fanzine de um começou a chamar a atenção do outro e vice-versa. ‘A idéia de escrever um livro em conjunto surgiu logo que a conheci’, conta Fraia.

O primeiro teste para verificar a possibilidade de um trabalho conjunto aconteceu em 2004, quando Vanessa e Fraia participaram de uma oficina para jovens escritores, ministradas por Milton Hatoum, na Festa Literária Internacional de Paraty – justamente a mesma Flip que agora os acolhe como autores convidados. ‘Mas nosso projeto, em 2004, não foi aceito’, diverte-se Vanessa.

Tratava-se de uma forma original de dar voz a objetos – Fraia, aliás, já havia escrito um conto sobre o sumiço de um vibrafone. Sem desanimar, a dupla não desistiu e, em 2005, iniciou o trabalho que resultou em O Verão de Chibo. O livro concentra-se nas aventuras de férias de um menino que, presume-se, tem 7 anos. Mesmo brincando em meio a um espesso milharal e cercado do amigos, o garoto percebe que se trata de um verão diferente, pois Chibo, seu irmão mais velho, some misteriosamente. Logo, o mesmo parece acontecer com os outros meninos.

A narrativa, no entanto, não é linear, como se um adulto recuperasse instantes de sua infância. Tampouco é a tentativa de recriação por meio de uma voz infantil – Vanessa e Fraia alternam sutilmente o ponto de vista do narrador, que se revela tão surpreendido como os outros personagens com o desenrolar dos fatos. Com isso, construíram uma história sobre a dificuldade de se expressar.

O ponto de partida, segundo Vanessa, foi uma frase de Stephen King, famoso criador de histórias de suspense, para quem as coisas mais difíceis são as que não se expressam. ‘Foi isso que nos guiou a definir o narrador, que sofre com a opacidade do mundo externo’, comenta Fraia. ‘Não se trata de uma narrativa realista, mas a estrutura leva a isso.’

Foi um trabalho exaustivo para unir idéias e definir estilo até alcançar uma voz narrativa coesa. Vanessa e Fraia – que, aliás, não formam um casal, apenas são bons amigos – leram diversos livros de aventura, mas com a intenção de se afastar do veloz ritmo narrativo, típico do gênero. Preferiram a aventura totalmente humana oferecida pela obra de

Gustave Flaubert. O cinema foi outra preciosa fonte de pesquisa, em filmes como Os Incompreendidos, de François Truffaut. Não à toa que a epígrafe escolhida é um diálogo de Brinquedo Proibido, longa de René Clément que mostra como duas crianças criam estruturas mentais para sobreviver ao horror dos combates da 2ª Guerra Mundial.

Também se apoiaram, claro, no trabalho conjunto dos argentinos Jorge Luis Borges e Adolfo Bioy Casares, cuja parceria começou com uma inocente publicidade para um iogurte. ‘Com eles, aprendemos que é preciso ter uma admiração mútua para o trabalho vingar’, observa Vanessa que, na Flip, lança também um trabalho-solo: O Livro Amarelo do Terminal (Cosac Naify).

Curiosamente, ao longo do ano e meio que durou o trabalho conjunto, ela e Fraia mantiveram poucos encontros – os acertos eram feitos exclusivamente pela troca de e-mails e telefonemas. Foram inúmeras viagens de texto pela rede mundial, em que a proposta de um era aprimorada pelo outro. Desavenças? ‘Bem, uma vez fiquei assustada quando ele propôs matar um personagem’, lembra Vanessa. ‘Acabei não aceitando.’

Chegaram, por fim, ao livro, que será lançado na quinta-feira, na Livraria da Vila Madalena. E a dedicatória não surpreende: ao Mandaqui, onde, afinal, tudo começou.