Chibo, seus pais & o verão

Postado em: 23rd junho 2008 por Vanessa Barbara em Clipping
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Segunda, 23 de junho de 2008, 08h22
Terra Magazine
http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI2965917-EI6787,00-Chibo+seus+pais+o+verao.html

Paulo Scott
De Porto Alegre (RS)

Alguns me acusam de usar as indicações de leitura deste espaço como subterfúgio para empurrar goela abaixo do leitor minhas convicções de ordem política, acadêmica, existencial etc. Não é verdade, procuro apenas mostrar o contexto que justificou minha escolha de leitura e recomendação.

Diferentemente do cinema, ou do teatro, a literatura é algo que o seu idealizador resolve sozinho, basta algumas folhas de papel e uma caneta ou, no máximo, um computador que funcione. Tem um cineasta gaúcho que, em nossas conversas, sempre enfatiza ter como principal meta ser escritor, pois quando isso acontecer não dependerá mais de ninguém, será o governante absoluto da sua criação, será o autor, autor com letra maiúscula.

Há um quê de vaidade nessa pretensão.

Um diretor de cinema, dentro dos padrões ordinários dessa sua arte, jamais poderá dizer “este resultado é 100% meu”, pelo simples fato de que jamais poderá executar todas as funções sozinho (estou simplificando?).

No fundo, é uma questão de autoria. Um escritor não precisa de equipe (os revisores não contam, sua função é o acerto gramatical), escritor gosta da noção de que tudo a ser criado na sua obra dependerá exclusivamente dele, o peso de um mau resultado será exclusividade sua também.

Daí o ângulo esdrúxulo de uma obra literária dividida a quatro, seis, oito mãos. É necessária uma generosidade (e também uma parcimônia) fora do natural da atividade. Não bastarão conselhos, dicas, sugestões.

Há perda de autonomia quando há pluralidade de julgamento: há concerto em sua plenitude. Há risco de não haver personalidade. E o leitor a quem acusará? E a marca do escritor? Conjecturas para destacar a atualidade.

Num mundo em que o rótulo da autoria perdeu sua pompa, pois tudo é rápido demais e apropriável demais – a não ser que haja uma revolução autoritária (não é minha intenção o trocadilho) que aniquile a circulação quase plena conquistada pela internet -, a tendência é o concerto (o verbo como manifestação cultural é concerto, surge do que nos foi emprestado por outros).

A internet possibilita o compartilhamento como não havia antes, e dessa dinâmica, me parece, surge uma preocupação abrandada quanto ao que de fato pertence a um, a outro. Penso que se acentua o que é mais propício ao diálogo, à troca. Mas não vamos longe.

Semana passada, ganhei de presente um exemplar da obra “O verão de Chibo” (Rio de Janeiro: Alfaguara, 2008), escrito pelas mãos de Vanessa Barbara e Emilio Fraia. Li as perto de cem páginas de textos em menos de vinte e quatro horas e gostei bastante do resultado. Deixo de lado a constatação óbvia de que tudo é uma questão de gosto – sei de amigos que detestariam a ousadia narrativa do livro -, para salientar que a história engendrada pelos co-autores está na linha do que considero o que há de mais aprazível na literatura contemporânea (não apenas a nacional).

Onde pretendo chegar?

“O verão de Chibo” é um livro feito a quatro mãos e que funciona bem. Não é original – outras parcerias notórias já ocorreram (e outras ainda ocorrerão) no curso histórico da literatura -, mas é exitoso e me fez imaginar como é possível a generosidade na criação literária. Teimo em achar que em uma criação desse tipo o seu processo jamais se justificará apenas na amizade.

Parece-me que se trata de perceber limites e desfazê-los, de outorgar ao outro a condição de destino e vivê-lo na falta de autonomia de buscar ser um só: ser o outro até quando ele esquece como é ser a parcela desse concerto.

Eis um livro maduro – muito bom de ler – saído não apenas do talento de seus condôminos, mas de uma escolha sem vaidade (tendo a acreditar) que demonstra um progresso, notável e sem retorno: uma experiência; válida, ainda que nesse terreno tão singular, e sem placa de vende-se, onde ardem as fogueiras da literatura.


Paulo Scott é autor de Histórias curtas para domesticar as paixões dos anjos e atenuar os sofrimentos dos monstros (Sulina, 2001), sob o pseudônimo Elrodris. Também publicou o livro de contos Ainda orangotangos (Livros do Mal, 2003; Bertrand Brasil, 2007), Voláteis (Objetiva, 2005), A timidez do monstro (Objetiva, 2006) e Senhor escuridão (Bertrand Brasil, 2006).

Fale com Paulo Scott: pscott@terra.com.br