Último Segundo – SP
01/07/2008 – 16:28
por Marco Tomazzoni
SÃO PAULO – Para um jovem autor, publicar o primeiro livro pode ser considerado um desafio. Dois ao mesmo tempo, então, é algo quase impensável. Pois para a paulistana Vanessa Barbara, 26 anos, aconteceu assim mesmo: chegam quase simultaneamente às livrarias “O Livro Amarelo do Terminal” (CosacNaify, 254 pgs) e “O Verão do Chibo” (Alfaguara, 120 pgs, escrito em parceria com Emilio Fraia), que serão lançados nesta semana na 6ª edição da Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip.
A trajetória até as prateleiras percorreu um caminho breve, mas acertado. Dona do “Hortaliça”, espécie de fanzine publicado “de quando em quando” na Internet desde 2002, Vanessa chamou atenção na web pela mistura surreal de textos que vão desde a “gestação dos sapos” à “força de aceleração centrípeta do rodopio das baianas da Viradouro”.
Tradutora e também jornalista, é colaboradora desde a primeira edição da revista piauí, onde já escreveu, como mesmo conta, reportagens sobre “hipnose, telemarketing, astrologia, ioiô e anões”. A singularidade desses assuntos se reflete nos textos, uma mistura de inusitado, fantasia, nonsense e lirismo.
A necessidade de um trabalho de conclusão de curso motivou a autora a procurar tema para um livro-reportagem, e o resultado foi um relato original da minicidade que é o Terminal Tietê, em São Paulo, a maior rodoviária da América Latina. Entrevistas, material de arquivo, relatos tocantes e personagens curiosos são costurados capítulo após capítulo naquilo que foi descrito pelo documentarista João Moreira Salles como um “épico do transporte viário”.
O paralelo com “O Verão de Chibo”, apesar de uma leve proximidade no absurdo das situações, não é automático. Enquanto os causos do terminal são crônicas, produzidas em sua maioria em 2003, “O Verão do Chibo” é a estréia de Vanessa na ficção, ao lado do amigo Emilio Fraia. O romance, iniciado numa oficina da Flip de 2004 e concluído recentemente, narra as fantasias de um garoto durante suas férias no campo. Imerso na mata e em um milharal, ele maquina tramóias secretas que envolvem caras mortos, aventuras marítimas, conspirações no reino da Bulgária e o sumiço de seu irmão Chibo, em uma narrativa nada infantil sobre a chatice do amadurecimento.
Vanessa participa na quinta-feira (03), às 10h, da primeira mesa de debates da Flip. Ao lado dos também escritores Michel Laub, Adriana Lunardi e do parceiro Emilio Fraia, ela representa uma parcela da nova geração da literatura brasileira. Em entrevista por email ao Último Segundo, a autora falou sobre seus dois trabalhos publicados, motivações, a cumplicidade com Fraia e, nas respostas, dá um gostinho do texto que vem arrebatando crítica e admiradores.
Por que fazer um livro sobre a rodoviária de São Paulo?
Queria fazer um livro sobre as ruas de São Paulo, mas teria que falar de calçadas, semáforos e meios-fios, então acabei escolhendo a rodoviária porque é o lugar que mais se parece com a rua. O terminal traz histórias que ilustram contradições da metrópole: a modernização, o movimento repetitivo das pessoas que vão-e-vêm sem pensar, a inconstância, a idéia de massas; e, por outro lado, a sensação de não-pertencimento, a vontade de retornar ao lugar de partida, o anacronismo dos personagens, a permanência – aquilo que nunca muda. “Tietê” vem do tupi: “té é té”, um rio que se mostra “muito fundo e corrente” e corta a cidade.
“O Livro Amarelo do Terminal” é descrito como um livro-reportagem, mas não é um exemplar “específico” do gênero. Como você o define? No início ele tinha mesmo a intenção de ser essencialmente material jornalístico?
É um livro-reportagem com crise de identidade, disfarçado de lista telefônica. Foi um projeto experimental de conclusão do curso de jornalismo, que inicialmente era pra ser de crônicas. Aos poucos, foi virando outra coisa porque a pura observação não seria suficiente: eu teria que falar com as pessoas e fazer recortes, inserir diálogos, inventar capítulos e pesquisar bastante. De qualquer forma, gosto do gênero (crônica) e tentei misturar os registros tanto quanto possível.
Como foi feita a pesquisa para o material histórico do livro?
Fui atrás de recortes de jornais da época, o que é muito mais difícil do que parece. Encomendei uma pesquisa no arquivo da Folha de S. Paulo e microfilmei exemplares do Estadão no Arquivo do Estado. Encontrei edições de A Gazeta da Zona Norte numa biblioteca municipal em Santana. Copiei outras coisas e fui achando clippings do Jornal da Tarde e da revista “A Construção São Paulo” na Casa da Memória Paulistana. Foi um processo lento e difícil, com ofícios e telefonemas para todos os lados. Também pesquisei na internet e procurei testemunhas da inauguração do terminal.
Quais foram as experiências mais incríveis que você vivenciou na rodoviária? É surreal como você descreve ou o texto está um pouco temperado?
Quatro freiras consecutivas e uma senhora que acende velas no Malex é uma coisa incontestável. Talvez eu tenha um olhar esquisito para selecionar os fatos, sim, mas qualquer cidadão respeitável que espera um ônibus no Tietê pode ver que alguma coisa não está bem. A rodoviária é uma cidade profunda e corrente que corta a metrópole, cheia de falas solenes, histórias estranhas e gente perdida.
Você lança também na Flip um livro com Emilio Fraia. Como essa história começou? E de que maneira essa parceria foi operacionalizada: vocês escreviam juntos ou trocavam colaborações? Dá para reconhecer o que é de quem no resultado final?
O Emilio tinha um fanzine na Internet chamado “Givago” e a Vanessa escrevia “A Hortaliça”. Começamos a trocar emails e descobrimos que morávamos no mesmo bairro (o Mandaqui) e fazíamos a mesma faculdade, o que era uma coincidência incrível – é um bairro tão longe que segue até um fuso horário diferente. Um dia, escrevemos juntos um conto sobre o sumiço de um vibrafone. Participamos de uma oficina literária com o Milton Hatoum, na Flip de 2004, e enviamos projetos de romances para concorrer a uma bolsa. Naturalmente não ganhamos porque o livro da Vanessa continha trechos do “Manual de refrigeração e ar condicionado” (Editora Fulton, 1329 pp.), e o do Emilio tinha como protagonista um isqueiro. Depois de suportar o peso da nossa genialidade incompreendida, tivemos a idéia de fazer um romance que começasse com um tiroteio de balas de goma. Começou assim. A idéia inicial era escrever um livro que falasse da dificuldade de dizer coisas importantes, de se comunicar com o outro e de criar besouros campeões. O Emilio escrevia um trecho, eu sapateava e devolvia por email. Foi um processo lento que demorou 2 anos e meio. Hoje não sabemos quem fez o quê, e se tal trecho é meu ou do Emilio. Há certas passagens que não fazemos idéia de quem é a culpa.
Como foi para você mergulhar no universo de um menino? Foi fácil enxergar por esse olhar ou, para você, o ideário é similar ao de uma garotinha?
Não vejo diferenças… o narrador (Menorzinho) é confuso e assustado, e odeia brincar de esconde-esconde. Eu fui um Menorzinho e o Emilio também. Nós repartíamos o cabelo ao meio. Nunca vi muito sentido em falar de “literatura feminina”, senão teria que me incluir na turma da “literatura de baixinhos” e “literatura de gente que não sabe falar ao telefone”.
Como é que você define a “Hortaliça”? É o caso de chamar de almanaque mesmo?
É o único periódico do mundo que sai “de quando em quando” – quer dizer, possui uma periodicidade definida, os leitores é que não sabem. Ela é baseada na gestação dos sapos e na força de aceleração centrípeta do rodopio das baianas da Viradouro. Enfim: é uma mistura de fanzine com almanaque e jornalzinho, com textos alheios tirados do contexto e textos próprios sem razão de ser.
O seu trabalho na Internet ajudou bastante para que você conseguisse ser publicada, com dois livros praticamente simultâneos? Ou é resultado de um trabalho contínuo no ramo jornalístico e editorial?
O “Livro Amarelo” foi escrito em 2003, então não se pode dizer que foi exatamente simultâneo. Mesmo assim, tudo influi, tanto a internet quanto a experiência jornalística (na revista piauí) e editorial (comecei como preparadora de originais na Companhia das Letras e na CosacNaify, depois fui fazendo aparatos e traduções). A “Hortaliça” me ajudou muito porque é um meio onde se pode escrever o que dá na telha na hora que quiser e para quem quiser, então a liberdade é única – tanto que a edição “bobice indomável” atingiu recordes de audiência.
O que transpassou de um livro para o outro? Você nota influências do “Livro Amarelo” no “Verão de Chibo” e vice-versa?
Acho que os dois têm muita coisa em comum, principalmente no olhar. É claro que todo mundo quer ter um estilo tão particular que inviabilize as cartas anônimas – mas é uma pergunta difícil de responder. Não sei, espero que sim.
E agora a parte fácil (ou não): quem são teus heróis na literatura, que influenciam teu trabalho?
Para o “Livro Amarelo”, li muitos jornalistas literários e escritores como Joseph Mitchell, Gay Talese, Truman Capote, Hemingway, John dos Passos, João do Rio, Rubem Braga, Luis Fernando Verissimo, George Orwell, Charles Dickens e até um quadrinista, o Will Eisner. Na literatura, gosto de Flaubert, Cortázar, Borges, Kafka, Campos de Carvalho, Cervantes, Sterne, Drummond, Poe e Lewis Carrol.