Qua, 02 Jul, 03h21
Guilherme Bryan*/Especial para BR Press
Em 2004, Vanessa Bárbara e Emilio Fraia, então com 22 anos e vizinhos do bairro do Mandaqui, participaram de uma oficina para jovens escritores, ministrada por Milton Hatoum, na primeira Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip. Agora, quatro anos depois, eles são convidados do mesmo evento literário agora o mais importante do país, para compor uma mesa que reúne algumas das novas sensações da literatura brasileira. A razão do convite é a autoria a quatro mãos do recém-lançado romance O Verão do Chibo (Alfaguara, R$ 23,90, em média).
O Verão de Chibo é um romance bastante envolvente e inventivo. Afinal, sua história é narrada a partir do ponto de vista de Menorzinho, um garoto de 7 anos que descreve seu verão alucinante e confuso, ao lado dos amigos Cabelo e Bruno. É uma grande aventura, envolvendo antigas brincadeiras típicas de crianças do interior do Brasil, missões importantíssimas e o misterioso desaparecimento do irmão do narrador, Chibo.
Outro aspecto interessante é a marcação do tempo como “meses-pó” e “meses-palha”. A sensação que se fica é que, em meio a referências ao lindo filme de René Clement, Brinquedo Proibido, o romance trata na verdade de um rito de passagem e, de certo modo, da perda da inocência.
Muito bem-humorados, Vanessa Bárbara e Emilio Fraia comentam a realização de um livro conjunto e o início da parceria na Flip, onde estão de volta, agora como convidados, quatro anos depois.
Como foi a experiência de escrever um romance a quatro mãos e como vocês se organizaram?
Vanessa Bárbara e Emilio Fraia: É mais difícil do que parece e mais possível do que se pensa – o que quer que isso signifique. Pensamos em fazer um romance com crianças sobre a impossibilidade de expressar certas coisas, normalmente as mais importantes, uma história que aos poucos caminhasse para um território de pessoas e sentimentos mortos e empalhados. Um dia, começamos. Um de nós escreveu o início e passou pro outro, que reescreveu, ajeitou, matou no peito e devolveu. Assim foi. No início, demoramos para encontrar a voz do narrador, mas depois o processo foi mais rápido e íamos escrevendo sem discutir.
Mas vocês não se encontravam?
VB EF: Na verdade, chegamos a nos encontrar apenas umas três ou quatro vezes para falar sobre o livro e os rumos da história. Foi um jogo divertido, criar um mundo sem o menor controle (nosso ou dos protagonistas), em que os dias acabavam de repente e aos meses-pó se sucediam os meses-palha, num amontoado de coisas estranhas e suspeitas aconteciam.
Qual foi a importância da participação na oficina literária de Milton Hatoum na Flip 2004? Em algum momento, passou pela cabeça de vocês serem convidados para este que é um dos eventos mais importantes da literatura no Brasil? Qual é a expectativa, aliás, da participação ao lado dos colegas Adriana Lunardi e Michel Laub?
VB EF: Na oficina do Hatoum é que, discutindo sobre as modalidades de romance, pensamos em fazer um romance “pistolar” (em vez de epistolar), que começasse com um tiroteio de balas de goma. A isso juntamos uma frase do Kafka: “Além do mais somos cinco e não queremos ser seis”. Nunca achamos que seríamos convidados para a Flip e, pra falar a verdade, temos certeza que vamos pegar soluço durante o debate. E será um soluço tão constrangedor quanto sincronizado: a Vanessa solta um hic, o Emilio continua, bota um hífen, vira hic-hic, e depois hic-hic-hic e será um sucesso.
O Verão do Chibo é narrado com a linguagem e a visão de uma criança de 7 anos, que, de certo modo, dá uma grandiosidade aos eventos que nós adultos provavelmente não daríamos. Quais foram as maiores dificuldades de se encontrar o tom certo dessa linguagem?
VB EF: No começo, o Menorzinho (nosso narrador pequeno e confuso) não ia interferir na história e nem falar quase nada. Mas ele foi se impondo e, aos poucos, tomando conta do registro desse verão, que, afinal, foi bem difícil pra ele o Chibo e o Bruno desapareceram, o lado de lá se misturou com o de cá e os navios não atracaram, nunca. De certa forma, foi o tom em conjunto que encontramos para escrever a quatro mãos; o narrador reflete esse ruído que são duas pessoas escrevendo por uma só: ele é assustado, confuso, nunca entende nada e interpreta do jeito que ele quer uma literatura do malentendido. É o nosso H. Bustos Domecq de nariz escorrendo.
O livro começa com um dos diálogos mais fortes do filme Brinquedo Proibido, de René Clement. Qual foi a importância desse filme para a realização do livro? Também há muitas outras referências cinematográficas no livro. Pode citar algumas?
VB EF: Quando vimos Brinquedo Proibido, já tínhamos avançado um pouco na história. Gostamos do tom e dos meninos que roubam as cruzes do cemitério, da Paulette arrastando o cachorro morto, de tudo. É um filme que se passa durante a guerra, realista, o que pode levar a uma leitura diferente da nossa história, que tem muita imaginação desenfreada. Além disso, no fim do filme há uma homenagem ao nosso colega de Flip, o Laub, quando a menina fica gritando: “Michel, Michel, Michel”.
Tem também algumas referências de clássicos do cinema e faroeste, não?
VB EF: Nós gostamos muito de filmes e botamos até o Rodolfo Valentino na roda. Assistimos muito faroeste (a Vanessa adora o título do livro do Eli Walach: O Bom, o Mau e Eu), muito filme de aventura e muito Hitchcock (em Sabotagem, uma criança morre e, ora, não se deve matar crianças no cinema, diria o nosso narrador). Além disso, Os Incompreendidos, Zero de Conduta, Zazie no Metrô, If e Quando Papai Saiu em Viagem de Negócios são outros dos filmes a que assistimos na época do Chibo.
O Verão de Chibo faz referência a uma série de brincadeiras e travessuras típicas de crianças do interior. Como foi a infância de vocês, nascidos numa cidade tão urbana como São Paulo, no início da década de 80? Aliás, como vizinhos, vocês costumavam brincar juntos? Se sim, quais eram as brincadeiras mais comuns e quais narradas no livro vocês gostariam de ter brincado mais?
VB EF: A gente morou no Mandaqui, que não fica exatamente em São Paulo. Quer dizer: é um bairro da zona norte bem distante do centro, cheio de peculiaridades. Por exemplo: frequentávamos a lojinha de doces Pé-de-Moleque, onde os donos não tinham o menor senso de lucro (faliu em pouco tempo) e davam picolé premiado pra todo mundo – um dia o Emilio ganhou cinco, em sequência. No Mandaqui, as coisas acontecem num tempo diferente e há o seu Firmo Farias, que desde o Descobrimento fala as mesmas coisas para quem espera o ônibus (“Vais passear, Minino?”). É um bairro pitoresco. Na rua, a Vanessa brincava de Elefantinho Colorido; o Emilio morava no Bosque de Santana, corria muito no polícia-e-ladrão e sempre roubavam as figurinhas dele – eram eventos muito graves e importantes. Tudo é muito sério até os 12 anos. Quando ainda se tem dentes de leite, o esconde-esconde é a coisa mais assustadora do mundo. Isso sem falar nas cascas de joelho, a infância é cheia delas, e de pais e mães que brigam, e de um passarinho morto que é enterrado atrás do prédio, sem ninguém ver.
A escritora campineira Índigo adotou em seu romance, A Maldição da Moleira, o pensamento de um bebê. É possível estabelecer alguma relação com a obra de vocês? Por quê?
VB EF: A gente não leu este livro, mas não é difícil imaginar que ela se divertiu um bocado entre toucas, sapatinhos, mingau e a vida íntima dos bebês.
Também há comparações entre o método adotado por vocês e o de Jorge Luis Borges e Adolfo Bioy Casares. É possível realmente estabelecer esse paralelo? Por quê?
VB EF: Gostamos muito do Bioy e do Borges, do humor irônico, da discrição, de certo classicismo da dupla (de lugares que criaram, feito a “quase marmórea confeitaria Los Argonautas”), mas eles são gigantes, qualquer comparação é impossível. Algumas das regras que norteavam a colaboração entre os dois acabaram sendo naturalmente adotadas por nós: exigência mútua, direito permanente de veto, prioridade ao jogo e ao prazer. Nos livros que escreveram juntos é impossível dizer o que é de um e o que é de outro. Isso foi algo que buscamos, tentar apagar esses limites e fazer o leitor se concentrar única e exclusivamente no mundo que importa, que é o do Chibo, Cabelo & Cia.
(*) Guilherme Bryan é autor do livro Quem Tem Um Sonho Não Dança – Cultura Jovem Brasileira nos Anos 80 (Record, 2004).