Revista Famecos/ PUC-RS
n. 19 – Agosto de 2008
por Guilherme Brendler
O professor de redação jornalística chega à primeira aula da disciplina de Produção em Revista e dispara: “Lembram do que eu havia dito sobre texto jornalístico no 2º semestre do curso? Pois esqueçam tudo!”. Os estudantes se entreolham, alguns acham graça, outros (como sempre) ficam indiferentes e os indignados se manifestam: “Por que eu pago essa faculdade? Pra ficarem se contradizendo toda hora? Nem parecem que recebem salário para nos ensinar as coisas!”. O que o infeliz do professor quis dizer é que as antigas formalidades do estilo de escrita que se aprende no início do curso de Jornalismo podem, a partir do 5º semestre, começar a ser relativizadas. Que atualmente, inúmeras publicações prezam uma redação mais despojada, livre do protocolo textual empregado, principalmente, pelos veículos diários e semanais. E, o mais importante de tudo, que o olhar que se dá aos fatos deve estar mais inclinado a mirar outros aspectos que normalmente não se presta atenção.
Então, a boa e velha matéria sobre a prostituição no centro da cidade, por exemplo, já não é mais uma pauta tão boa assim. É preciso que a história contemple outros ângulos, que seja desenvolvida por caminhos ainda não explorados, que se ressaltem as possíveis singularidades dessa história. “Não quer dizer que vocês devem ficar à procura de um papagaio que declame Olavo Bilac. Vocês precisam ver as coisas simples do cotidiano com outro olhar, mais aguçado e que perceba coisas que a maioria das pessoas não consegue apreender”.
Pois para quem ainda não entendeu as lições do mestre e continua o difamando pelos corredores da faculdade, deve ler o trabalho de conclusão de curso que Vanessa Barbara apresentou no final de 2003 e que em 2008 se tornou um livro. Ela emprega justamente essa visão afiada n’O Livro Amarelo do Terminal (Cosac Naify, 249 páginas). Vanessa transforma o terminal rodoviário do Tietê, um tema batido, numa inovadora radiografia da realidade brasileira. Exagero? Não mesmo! A jovem jornalista mostra que o desejo de regressar à terra natal que consome os migrantes das regiões Norte e Nordeste —principalmente — se expressa de maneira fundamental nas dependências da estação rodoviária. O lugar simboliza a esperança de retorno às raízes e, ao mesmo tempo, a conformação da permanência em São Paulo, já que muitos por ali chegaram e pouquíssimos terão condições financeiras de um dia embarcar num ônibus e nunca mais voltar.
Bárbara nos revela, por exemplo, a “máfia” do Sindicato dos Carregadores e Transportadores de Bagagens em Estações Rodoviárias de São Paulo, que possui um número fechado de funcionários (exatamente 182) e quando alguém se aposenta quem assume a chapa — o crachá de identificação, ou seja, o emprego — é sempre um membro da família ou, raramente, um amigo muito próximo daquele que sai. Mostra o esforço que os seguranças do terminal têm que fazer para aguentar piadinhas dos carregadores que se gabam por ter um salário muito melhor do que o deles. Conhecemos a realidade dos lojistas das mais variadas partes do país que atravessam a madrugada num ônibus, passam o dia em São Paulo para comprar, tomam banho um preço de R$ 5 nos banheiros da estação e sacolejam por mais uma madrugada inteirinha durante a viagem de volta. É um Brasil que todos sabem que existe, mas que ninguém repara.
Sem dúvidas, O livro amarelo do terminal faz referências a Fama & Anonimato, de Gay Talese. No caso do escritor norte-americano, a única mudança é o número de páginas, o objeto de estudo (no caso dele era Nova York) e o silêncio de Vanessa com relação aos famosos. Mas ambos descrevem diversas coisas esquecidas e/ou perdidas que não cansam de encher os olhos das multidões: motores de moto, dentaduras, muletas, formigas que rastejam no Empire State Building, o homem alinhado que retira o lixo dos latões da Sixth Avenue, etc. O olhar de Vanessa se aproxima muito daquilo que Talese fez em praticamente todos os seus livros. Os dois salientam o anonimato de figuras excepcionais que dão vida às cidades. Além disso, diga-se de passagem, a redação de Barbara faz algumas homenagens ao mestre da não-ficção. Exemplo? A primeira frase dela (A rodoviária do Tietê é uma cidade de coisas perdidas) refere-se à de Talese (Nova York é uma cidade de coisas que passam despercebidas). Outro: a forma como explica o modo de falar de seus personagens com as sílabas dispostas nas páginas. Mais um? A contabilidade. Ele revela que os nova-iorquinos piscam 28 vezes por minuto; ela, que 1,4 milhão de créditos telefônicos são consumidos por mês nos orelhões do terminal do Tietê. Ele, que por dia os moradores de Nova York enxugam 1,74 milhão de litros de cerveja, devoram 1,5 mil toneladas de carne e passam 34 quilômetros de fio dental entre os dentes. Ela, que nos corredores do terminal 100 mil cafezinhos e doze toneladas de pão de queixo são consumidos por mês. Números que são inúteis, mas não no texto deles. (Bem, acho que — pelo menos neste caso — não sou um fã inveterado de Gay Talese tentando enxergar a influência dele em todo mundo que escreve).
“Agora, outra coisa que vocês não podem esquecer é que o estilo de escrita também deve mudar. Percebam que para conduzir uma boa história é fundamental um texto mais maleável, que seduza o leitor. A objetividade extremista e o lead morreram!”, declara o convicto professor. Mais incerteza entre os alunos que por nada conseguem se livrar dos cacoetes adquiridos ao longo de dois anos e meio de faculdade.
Vanessa* explora a sonoridade das palavras, uma das características que fez de Tom Wolfe talvez o mais inventivo escritor contemporâneo. Nenhuma palavra está onde está simplesmente porque sim. Está porque precisa estar ali junto com a anterior e com a seguinte. Ela emprega um estilo direto, seco e sem rodeios, semelhante ao de Dalton Trevisan. Inclusive, em determinados momentos, Vanessa utiliza o recurso do short tale ao invés de explicar Tim-Tim por Tim-Tim, na terceira pessoa do singular, a história dos seus personagens; uma excelente solução para manter o leitor pregado na viagem..
Chama a atenção que Vanessa não tira conclusões. Isso não é próprio para alguém que aos 26 anos trabalha numa das melhores revistas do país, é co-autora de uma novela, tradutora de uma história infanto-juvenil e tem o primeiro livro-reportagem editado por uma das mais disputadas e conceituadas editoras do Brasil. Geralmente, pessoas com brilhantes trajetórias em tão pouco tempo de vida têm de tudo para vestir a toga de filósofos e sair dando pitacos sobre as mazelas do mundo.
Vanessa não. Posso vê-la mostrar tudo num quadro pintado por ela mesma e sua única reação ser um breve sorriso sarcástico no canto da boca. Nem um comentário, tampouco uma pergunta se você gostou do quadro. A história é aquilo ali e pronto. Não necessita explicação, legenda ou coisa que o valha.
Mas três curtos capítulos do livro de Vanessa são excepcionalmente críticos, capazes de matar de rir qualquer um que já se aventurou a ser jornalista. Do nono ao décimo segundo, ela senta a porrada em todo mundo. Não sobra pra ninguém. No capítulo 9, apenas com diálogos, exemplifica a dificuldade de se conseguir acesso a documentos públicos. No seguinte, um retrato perfeito do relacionamento entre assessorias de imprensa e a própria imprensa. E, finalmente, no 11º a melhor e menor crítica ao jornalismo que se pratica hoje nos grandes veículos. Vanessa nos apresenta o incrível, o revolucionário, o eficaz Gerador Automático de Reportagens. Basta checar os números e pronto. Está feita a matéria do feriadão prolongado (qualquer feriado!).
Os personagens de Vanessa Barbara não precisam de sobrenome. Eles são eu, você, nós. Ou eles são brilhantes ou a escritora os fez assim. No caso de Rosângela, uma das atendentes do balcão de informações do terminal, penso que a autora não precisou se esforçar muito. A simpática funcionária da rodoviária traduz o que vários poetas já tentaram dizer em versos melosos: “Tem pessoas aqui no Tietê que marcam sua vida de verdade. Ao contrário de tantas outras, que só passam e perguntam onde é o guichê da Cometa”.
Outro caso interessante é o de Marcos, um dos locutores da estação rodoviária. Provavelmente sem ter conhecimento da existência de um sujeitinho que marcou época enquanto perambulava pelas ruas de Nova York e contava sua vida para um jornalista americano, Marcos recebeu o espírito de Joe Gould e, por tabela, Joseph Mitchell encarnou em Vanessa.
Reencenando o egocentrismo do mendigo novaiorquino, Marcos informa a um colega: “Essa moça aqui não tem nada não. Está comigo pra fazer uma… pra escrever minha biografia!”.
No entanto, os bois recebem sobrenome quando se trata da farra quando o terminal rodoviário foi construído e, com uma vasta pesquisa aos arquivos dos jornais da época, nos ambienta na sujeira da política que coordenou a concepção do Tietê. Em três capítulos, sem cair na tentação, não faz um único comentário sobre a farra com dinheiro público e nos mostra, por exemplo, que a inauguração do terminal foi atrasada sete meses para favorecer os interesses de Carlos Caldeira Filho, dono da antiga rodoviária e de uma cadeia de jornais, o que representou um prejuízo de Cr$ 1,5 bilhão (R$ 53,1 milhões). Ou ainda que se gastou Cr$ 21 milhões (R$ 743 mil) apenas com a construção de duas simples escadas, num desnível de sete metros, com 1,5m de largura.
Não poderia deixar de citar o maravilhoso trabalho de Elaine Ramos e Maria Carolina Sampaio que conceberam a edição do livro. O projeto é divino. Mostra como são os tíquetes de embarque, a placa do banheiro, as manchetes dos jornais e as chamadas das revistas à venda na estação e, assim, ambienta o leitor ao mundo que Vanessa Barbara narra. Mesmo que se possa ter inicialmente certa dificuldade na leitura por causa das páginas em folhas finas que remetem a um guia telefônico, a edição é daquelas que se sobressaem.
Creio que estamos diante de uma revelação da literatura de não-ficção. E pode ser que agora o incansável professor perca menos tempo tentando incutir na cabecinha dos sorridentes, dos indiferentes e dos indignados o que é esse “outro” jornalismo. Belo cartão de visitas, Vanessa.
Guilherme Brendler é graduando em Jornalismo pela PUCRS e bolsista de iniciação científica BPA/PUCRS.
* VANESSA BARBARA tem 26 anos e é jornalista da Revista Piauí. É co-autora de O Verão do Chibo (Alfaguara), com Emilio Fraia e tradutora de Akimbo e os elefantes (Companhia das Letras).