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Segunda-feira, 4 de Agosto de 2008

por Thais Brugnara

No ousado livro-reportagem “O Livro Amarelo do Terminal”, Vanessa Barbara conta a história de personagens que ”passam pela página com um enorme fiapo preso aos pés” e detalhes “despercebidos e que não fazem sentido” do Terminal do Tietê.

(O tempo anda em círculos – profetiza Úrsula em “Cem Anos de Solidão”, de García Márquez-. E, como a memória é amante do tempo, às escondidas de nós, eles copulam, enquanto são levados por uma imensa – às vezes, perigosa – roda-gigante.)

Eu lia a Piauí de julho. Precisamente, a reportagem “A cidade das coisas perdidas”. Esse foi o estopim que pôs a memória a fornicar com o tempo na imensa – e, neste caso, inofensiva – roda-gigante. Então, eu lembrei do meu trabalho de conclusão de curso, da complexidade dos não-lugares de Buenos Aires, das poucas horas em que observei a loucura social da rodoviária de São Paulo. Assim, eu soube de “O Livro Amarelo do Terminal” e conheci o trabalho da escritora e jornalista Vanessa Barbara. Enfim, tantas lembranças, mescladas a novas informações, vieram à tona já na primeira volta da roda-gigante, já no primeiro parágrafo de uma página da Piauí.

Transformando a confusão cerebral em método: “A cidade das coisas perdidas” apresenta alguns trechos de “O Livro Amarelo do Terminal”, em que Vanessa Barbara faz um retrato pulsante da maior rodoviária da América Latina: o Terminal do Tietê. A partir de entrevistas, material de arquivo e observação aguçada, Vanessa passa a linha e a agulha por crônicas e relatos. Acaba costurando um livro-reportagem. O texto foi finalizado em 2003, após um ano de apuração, escrita e edição. (Ah,o livro foi resultado do seu projeto experimental de graduação.)

Bem, no meu trabalho de conclusão de curso, sob a orientação do professor Paulo Roberto Araújo, escrevi uma reportagem intitulada “Há vida nos subterrâneos de Buenos Aires”, em que relato o cotidiano do metrô portenho – cheio de cores, cheiros e sons – enfocando a história de vida de quatro pessoas que se cruzam diariamente sem se conhecerem. Para isso, estudei Marc Augé, o antropólogo francês que chamou de “não-lugares” os locais de espera e serviços, onde carecem de sentido as noções de identidade, memória e relação.

Passado um mês da apresentação da minha monografia, estive por duas horas no Terminal do Tietê, puxando conversa com a senhora da limpeza, comendo pão de queijo, tentando adivinhar o que havia nas malas, o que havia nos olhares desconhecidos. Duas horas em que vivenciei a rodoviária como um microcosmo da maior (e mais controversa) cidade do país. Depois, peguei a minha mochila e uma sacola cheia de livros de sebo; enfim, encarei a insana aventura de mais de 20 horas de viagem até Santa Maria.

E, passados outros meses, o tempo, em sua descompassada dança circular, pôs, em minhas mãos, a Piauí de julho e, justamente em frente aos meus olhos, o texto que detalha o cotidiano do Terminal do Tietê. E a memória, ansiosa para convidar o tempo para alguma orgia literária, reconheceu o bom jornalismo, resultado de um olhar que viaja entre tanta coisa pequena. Um olhar que pisca entre latinhas de alumínio, objetos perdidos, escadas. Um olhar que enxerga freiras e surfistas, famílias que passarão o Natal no nordeste, uma senhora que espera a Marinha britânica.

Por e-mail, entrevistei a moça do olhar viajante: Vanessa Barbara, repórter de Piauí, editora do site A Hortaliça (www.hortifruti.org), escritora (publicou o romance “O Verão do Chibo”, em parceria com Emilio Fraia, pela Alfaguara) e, o que vem ao caso, autora de “O Livro Amarelo do Terminal”.

No seu dia-a-dia, como você exercita o seu olhar? Como trabalha a sua sensibilidade?

Meu olhar sofre de um erro de paralaxe, pois se concentra em detalhes bobos ou reações pequenas. Isso em qualquer situação — quando vou ao mercado, por exemplo, presto atenção num velhinho que anda de galochas e compra cinco embalagens de mortadela. No sábado à noite, me interessam as pessoas que saem de flanela para comprar salsichas.

Sem grandes acontecimentos, “O Livro Amarelo do Terminal” é um retrato da vida que passa diariamente. Ele destaca detalhes do Terminal Rodoviário do Tietê que passam despercebidos. Por que esses detalhes se tornam tão importantes para o relato?

Porque a vida é feita de detalhes despercebidos e que não fazem sentido. Não é uma matéria de jornal com lead, desenvolvimento e conclusão, em que tudo se encaixa e tem um propósito. No Livro amarelo, há pessoas que passam pela página com um enorme fiapo preso aos pés, e é isso.

Além dos detalhes, as pessoas também passam despercebidas em lugares como a rodoviária. Porém, “O Livro Amarelo do Terminal” apresenta um relato humanizado. Como você escolhia, entre uma infinidade de possíveis histórias, os seus entrevistados? Como eram essas entrevistas, ou seja, você dizia que estava fazendo uma reportagem, usava gravador, já tinha uma pauta programada, quais eram as perguntas recorrentes?

Eu chegava, me sentava e puxava conversa. Me apresentava como estudante de jornalismo fazendo um trabalho sobre a rodoviária, usava um bloco cor-de-rosa e tentava anotar algumas frases da pessoa. No segundo ano da faculdade, fiz uma monografia de iniciação científica sobre inclusão digital e usei uma técnica de entrevistas chamada “histórias de vida”, em que o entrevistador tenta interferir o mínimo possível e deixar que a pessoa conduza a conversa. Costuma dar certo. Eu fazia uma ou outra pergunta genérica e a pessoa já ia falando sobre as coisas que importavam, às vezes por horas. Nunca tive pressa de encerrar uma conversa sobre frango com quiabo.

Aliás, você deve ter algumas anedotas interessantes da apuração. Pode contar alguma?

No decorrer do trabalho, tentei desenhar um mapa da rodoviária, no que fracassei estrondosamente. Cheguei a levar uma bússola e, no chão do andar superior, fui abordada por um segurança que me perguntou o que eu fazia com um mapa e uma bússola no chão. Eu respondi: “Olha que engraçado. O Norte antes era pra cá, agora é pra lá. Suspeito, não?”, ele riu, deu as costas e decidiu que eu não era perigosa.

Segundo Marc Augé, rodoviárias são “não-lugares”. Para ele, uma das principais características desses locais é a solidão. Isso porque muitas pessoas dividem o mesmo espaço, mas não se conhecem, quando se comunicam é superficialmente e não se sabe a história de vida dos demais. Como você percebeu isso durante a apuração?

Em 2003, foi essa a conclusão que eu tive com a experiência da rodoviária. Hoje, cinco anos depois, percebo que não é bem assim: a rodoviária é um lugar de encontros. Podem ser breves, tristes, singelos ou aparentemente insignificantes, mas são histórias. A rodoviária é um grande lugar, um rio que corre rápido e fundo, cortando a cidade.

E como é a relação entre os funcionários do Terminal Rodoviário do Tietê com o próprio local?

Depende, há os funcionários como Marcos e Rosângela, que têm uma relação carinhosa com a rodoviária, e há outros como os assessores de imprensa e os supervisores da época, que aparentemente dirigem uma indústria de embutidos com segredo industrial.

Há trechos, publicados na revista Piauí, em que os dados são substituídos por __. Por exemplo, “(…) __ quilômetros de lentidão. A previsão é de __ carros deixem a cidade até amanhã.”. Por quê?

É um gerador automático de reportagens. O repórter de “Cidades” que precisa publicar uma matéria sobre o feriado e quer sair do trabalho mais cedo só precisa preencher com os números e pronto.

O estilo do livro aproxima-se ao Jornalismo Literário. Quais foram os principais recursos estilísticos que você utilizou?

Usei muito diálogo e pouca descrição. Fiz um gerador automático de reportagens, um texto entrecortado por músicas, outro interrompido por vozes que foram se impondo no capítulo, outro puramente inventado, outro com recortes de jornal etc. Tentei usar os melhores expedientes para contar as histórias.

Quais são os autores que inspiraram o livro?

Além de Gay Talese, Joseph Mitchell, Truman Capote, Joel Silveira, Will Eisner, Rubem Braga, Drummond, Luis Fernando Verissimo, George Orwell. Na literatura, Flaubert, Cortázar, Poe, Salinger, Sterne, Kafka, Campos de Carvalho.

Você tem manias para escrever? Alguns rituais?

Tenho que escrever em silêncio e às vezes, para reler, fico de pé, mudo a posição do monitor ou a fonte do texto. Gosto de escrever com serifas.

“O Livro Amarelo do Terminal”
Autora: Vanessa Barbara
Prefácio: João Moreira Salles
Editora: Cosac Naify

* Vale a pena destacar o ousado projeto gráfico, elaborado por Elaine Ramos e Maria Carolina Sampaio.