Sobre humanos

Postado em: 10th agosto 2008 por Vanessa Barbara em Clipping
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Gazeta do Povo/Paraná
10 de Agosto de 2008

por Sandra M. Stroparo


Divulgação / Vanessa Barbara: cem mil cafezinhos vendidos no Tietê
Vanessa Barbara: cem mil cafezinhos vendidos no Tietê
LITERATURA

A jornalista Vanessa Barbara escreve sobre as histórias que passam pela rodoviária do Tietê em O Livro Amarelo do Terminal, título da Cosac Naify com design inusitado

O projeto gráfico é bem diferente. Esquisito, talvez. Não parece que a gente vai encarar um livro, mas um manual, uma brochura de segundas vias de documentos com uma cara meio antiga, papel carbono, mimeógrafo. Ou bilhetes de passagens de ônibus – via do passageiro. Mas é um livro. E amarelo, como diz o título, a capa e a cor do papel das páginas. Sobre a grande rodoviária do Tietê, em São Paulo.

A voz narrativa não se apresenta, de início, só vai descrevendo, aos poucos, aquele mundo, aquela cidade de coisas perdidas. Não espere um romance nem um livro técnico, informativo, ou análise sociológica, antropológica. Podemos, contudo, reconhecer um pouco de tudo isso, no melhor estilo jornalístico contemporâneo.

A autora, Vanessa Barbara, hoje redatora da piauí (assim mesmo, sem maiúsculas), entre outras coisas, apresentou esse texto como trabalho final de graduação, orientado por Marcelo Coelho, no curso de Jornalismo que fazia. Isso foi em 2003. Cinco anos depois o trabalho sai em livro, com algumas adaptações e um epílogo que inclui uma volta rápida ao local da pesquisa e a descrição de algumas das mudanças que esses cinco anos acarretaram. Até um gostinho nostálgico sobra nesse “capítulo terminal”.

Sobre o terminal do Tietê como assunto para pesquisa acredito que todos nós podemos levantar várias hipóteses, vários temas a serem encaminhados em levantamentos documentais e algumas entrevistas. Num lugar como aquele, que resume o Brasil porque ele inteiro passa por ali, não há de faltar assunto. O que O Livro Amarelo do Terminal consegue é realmente falar um pouco de tudo, mas especialmente de gente. Quem vai e quem vem, quem fica o dia todo por lá, quem trabalha lá todo dia. Para que as dimensões daquilo que foi chamado de cidade sejam compreendidas, um capítulo sobre a história da construção do terminal e muitas inserções de números e estatísticas relacionadas ao movimento da rodoviária e os resultados de consumo que esse movimento implica. Como os cem mil cafezinhos vendidos e mil quilômetros de papel higiênico por mês. Ou os trezentos quilos de chiclete grudados no chão. Isso é divertido, mas gente é mais.

E como é que se fala disso, de gente? Bom, podemos dizer que literatura faz isso e aí temos que reconhecer que esse trabalho da Vanessa, apesar de ter garantido um diploma em jornalismo, é meio que uma fraude. Porque, nesse sentido, o livro é de literatura, porque fala de gente e dá conta, ao acumular histórias de gente, muitas, sobrepondo umas às outras de maneira inteligente, interessante e divertida, sem pieguice ou frieza profissional, acadêmica, dá conta de mostrar muito dessa gente, dramas e alegrias, esse material da vida de todo mundo. Não…, mesmo que você jamais tenha ido ao terminal, que Congonhas e Cumbica sejam os seus postos de saída e chegada em São Paulo, pode apostar que dá para se reconhecer por lá, pelo livro, em algum ou em todos os momentos.

O livro tem papéis diferentes em gramaturas aparentemente diferentes (será só impressão minha por causa da variação de cores?) e uma infinidade de fontes em formas e tamanhos diferentes, muitas acrescentadas ao texto como uma colagem de recortes de manchetes, panfletos, tabelas de preços, manuais dos sistemas de informação e segurança, publicidade, e só a narrativa mestra é que ganha uma certa uniformidade, mesma fonte, mesmo tamanho, ocupando o espaço todo da página, linhas e parágrafos completos.

E aqui vamos chegando à própria narrativa. Esses recursos gráficos fazem com a “cara” do livro o que o texto procura fazer para dar conta da multiplicidade imensa com que precisa lidar. A narrativa, sem perder o fio, acompanha os assuntos de que trata, deixa-se invadir por diálogos inteiros, frases soltas, por trechos de letra de música, mas também assume o comando e se transforma. Como quando o texto, falando de um futebol rápido jogado por crianças em uma plataforma, assume por algumas linhas a narrativa de um jogo de futebol, com vocabulário e vícios sintáticos. O leitor entra no clima, entende, o texto muda e segue adiante. Tem muita coisa para se ver no terminal. Como aqueles homens se abraçando, e sorrindo tanto que a voz narrativa não se contém e cita o escritor Lewis Carroll, a Alice assustada com a idéia de que os cantos da boca podem se juntar atrás e a cabeça pode cair.

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Serviço

O Livro Amarelo do Terminal, de Vanessa Barbara. Cosac Naify, 254 págs., R$ 35.