Uma cidade de pessoas que partem

Postado em: 10th agosto 2008 por Vanessa Barbara em Clipping
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Vanessa Barbara lança em livro extensa reportagem sobre a rodoviária do Tietê

O Estado de S.Paulo
10 de agosto de 2008 | 0h 00

por Francisco Quinteiro Pires

A vida é um milagre. E tem a cor amarela. O Livro Amarelo do Terminal, de Vanessa Barbara, é uma extensa reportagem sobre o Terminal Rodoviário Tietê. Além da cor das páginas – amarela -, que se presta como metáfora à passagem do tempo, que a tudo vai destruindo, a obra relata o vaivém dos passageiros da maior rodoviária da América Latina, embarques e desembarques que bem podiam ser a imitação dos ciclos da própria vida.

“Eu queria escrever sobre as ruas, mas precisaria falar de bueiros, pedrinhas e semáforos, então pensei que a rodoviária seria uma rua sem calçadas”, ela diz. Tietê, Vanessa explica, significa “rio fundo e corrente, que corta a cidade, com gente de todo tipo que chega e vai embora, que corre e perde suas muletas, que conversa com o Papai Noel”.

Querendo escrever sobre a rodoviária de um rio fundo e corrente, Vanessa escreveu sobre o absurdo da existência. O terminal se transformou em modelo miniaturizado do mundo. “Se o mundo é um lugar onde passam dezenas de freiras buliçosas segurando pranchas de surfe, onde há chicletes por toda parte e uma senhora acende velas no guarda-volumes, como eu acredito piamente, então a rodoviária é o mundo.” Ela prefere afirmar que a rodoviária é uma cidade esquisita, “onde nada de estrondoso parece acontecer e tudo se perde na multidão, mas há detalhes inacreditáveis e pessoas jogando pife-pafe enquanto aguardam a partida do ônibus”. Tudo se perde, e passa, até as pessoas. Quando voltou ao local, em abril, para escrever o epílogo, arrematando os 21 capítulos, ela reencontrou apenas alguns personagens da reportagem iniciada em outubro de 2002. “E igualmente falhei em descobrir o faturamento do banheiro.”

Antes de ser publicado pela Cosac Naify, O Livro Amarelo do Terminal (256 págs., R$ 35) era um Trabalho de Conclusão de Curso (o famigerado TCC), necessário para receber o diploma universitário. Vanessa visitou a estação rodoviária durante um ano. Como morava perto, no bairro do Mandaqui, ela passava a tarde inteira lá. “Ao terminar, cheguei a uma conclusão negativa, eu achava que era um lugar de desencontros e tristezas”, diz. “Depois de 5 anos, relendo o texto, vejo que é muito mais um lugar de pequenos encontros, de momentos sutis, de histórias extraordinárias.”

O capítulo 8 – História Oral do Tietê – é inspirado em O Segredo de Joe Gould, de Joseph Mitchell. Jornalista da New Yorker, Mitchell (1908-1996) extraía detalhes fantásticos da matéria bruta da realidade. Era capaz de ficar observando, durante duas horas, um pica-pau derrubar uma árvore. Os textos de Mitchell nascem de uma escuta/observação humilde e apaixonada. “Há várias formas de escutar as coisas e acho bom experimentar o máximo possível delas.” O jornalismo precisa de descrição e observação, segundo ela.

E de paciência. Vanessa, de 26 anos, precisou conversar com alguns dos 60 mil passageiros diários do terminal, além dos 1.806 funcionários que trabalham em três turnos. Era preciso nadar nesse oceano numérico – 100 mil cafezinhos mensais, 12 toneladas de pães de queijo por mês, mil quilômetros de papel higiênico jogados no lixo… A técnica parece simples. “Em certos dias, ia com um propósito certo: visitar o balcão de informações, os banheiros”, ela diz. “Em outros, apenas vagava pelos corredores puxando conversa e arrumando encrenca.” Ela chama isso de “histórias de vida”: fazer perguntas bem abertas e deixar o entrevistado falar livremente – “de frango com quiabo a carrapatos e bijuterias”.

Porque assim é mais fácil perceber o que importa de fato para as pessoas. A disposição para ouvir sem interferências se choca com o “gerador automático de reportagens”, nome inventado por Vanessa para qualificar as reportagens da grande imprensa (trânsito lento nos dois sentidos, liquidação de estofados, alta da taxa de juros) – “leio pouco jornal.” O mais do mesmo. “Faltam histórias”, afirma. E um olhar mais humanista nas redações. Entre os milhares de indivíduos do terminal, Vanessa, jornalista da revista Piauí, selecionou, entre outros, a Rosângela, o Bruno, o Marcos, todos personagens modestos e sem sobrenome. “Porque às vezes a conversa era tão tranqüila que perguntar sobrenome e RG era a última coisa que se aplicava no momento.”

Autora da ficção O Verão do Chibo (Alfaguara), com Emilio Fraia, Vanessa é adepta da noção de que a solenidade não leva a lugar nenhum. Concentrada nos detalhes bobos ou nas reações pequenas, ela aplica o recurso do humor, “um bom ingrediente para o jornalismo”, para narrar o surpreendente e o nonsense, como a senhora à espera da Marinha Britânica. “O mundo não faz necessariamente sentido e eu adoro essas pequenas bobagens que às vezes revelam muito e nada ao mesmo tempo”, diz. O segredo é achar o tom, para não cair no sarcasmo fácil, e ele não está no exagero, revela.

A afinação da narrativa se realizou em dois tons – no recurso ficcional e no projeto gráfico original. “É possível se valer mais de técnicas e noções de ficção para fazer reportagem, sem prejuízo do texto.” Vanessa convocou a ajuda de, entre outros, Truman Capote, Gay Talese, John dos Passos, João do Rio, George Orwell e até do quadrinista Will Eisner. E incluiu um capítulo inventado: Sala de Controle.

Todas as páginas são amarelas, de gramatura mais fina, cuja transparência mais acentuada permite a sobreposição das letras. A leitura às vezes embaralhada lembra o vertiginoso vaivém do local. “O objetivo foi emular a bagunça estética e polifônica do Tietê.” A exceção, dada para a cor azul, fica entre as páginas 145 e 192, sobre a construção, inauguração e consolidação da rodoviária. São os três capítulos históricos, em que o papel é semelhante ao carbono, usado na confecção de bilhetes de ônibus.

Nessas páginas, Vanessa misturou reportagens de época com músicas populares. “Achei a seqüência de acontecimentos tão absurda que precisava de uma trilha sonora à altura”, explica. “Declarações como ‘Não voltam porque eu não vou deixar. Quando for sair, que saiam todos os ônibus’ encaixam exatamente numa letra como ‘Levanta, me serve um café/ Que o mundo acabou’, sem falar de clássicos como ‘Ai, coração alado’.” A vida é mesmo um milagre. E, caso discordem, terão de aceitar ao menos um ponto: ela é uma bela de uma travessia absurda.