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15 de outubro de 2008 – 15h05
Por Larissa Morgato, 1º ano de Jornalismo
Vanessa Barbara fala da produção de livros e diz que se sente “um legume”
Repórter especial de “assuntos tolos” da revista piauí, Vanessa Barbara, 26 anos, escreve quinzenalmente sobre “doenças infecciosas do baço” para o jornal O Estado de S. Paulo, é seguidora convicta de Borges, Beckett e Talese e ácida quando se trata da postura, segundo ela, irritante, dos jornalistas.
O Livro Amarelo do Terminal (Cosac Naify, 2008) e O Verão de Chibo (Objetiva, 2008) foram as obras que projetaram a jornalista à “fama”. O primeiro é fruto de seu trabalho de conclusão de curso (TCC) de Jornalismo e, junto ao segundo, rendeu-lhe o convite para participar da Feira Literária Internacional de Paraty (FLIP) deste ano.
Barbara, formada pela Faculdade Cásper Líbero, embora conteste os cursos de jornalismo, afirma que foi “apresentada” a alguns dos seus autores de referência por professores da instituição. Crítica e irônica, a jornalista, nesta entrevista concedida por e-mail, fala do que carregou da sua formação, das dificuldades e delícias da apuração para o Livro Amarelo e da produção de livros – estes que, como ela afirma, nunca começam a ser escritos quando começam “de fato” a ser escritos.
Adendo: devido a tamanho assédio, a entrevistada afirma se sentir um legume.
Em seu almanaque virtual A Hortaliça, há trechos de livros do escritor Julio Cortázar. A professora Nanami Sato [docente de Língua Portuguesa na Cásper Líbero] nos contou que, provavelmente, o seu primeiro contato com a obra do escritor foi em suas aulas. Há outras contribuições importantes que a Faculdade trouxe para a sua vida pessoal e profissional?
Não. A faculdade só me trouxe desgosto e raízes brancas. Algumas exceções: a Nanami me apresentouO Jogo da Amarelinha e Todos os Fogos o Fogo, além de Zola, Camus e Poe. O Welington [Andrade, professor de Técnica de Redação e vice-diretor da Cásper] me apresentou Alice e Beckett. Alguns professores foram importantes e valeram a pena, como o Marcelo Coelho [ex-professor de Jornalismo Cultural] e o Sergio Amadeu [hoje docente da pós-graduação da Faculdade]. O resto é Jornalismo Básico I, II e III (quando é que vem o Jornalismo Avançado?) e disciplinas que falam sobre a eletrizante rotina nas grandes redações, além de professores ensinando lead, alunos deslumbrados e estagiários querendo trabalhar na Folha. A Cásper Líbero é um colegial que não serve pra muita coisa.
Na imprensa muitos a apontam como um novo expoente do jornalismo literário brasileiro. O seu estilo, principalmente na revista piauí e no seu almanaque, está situado entre o jornalismo e a literatura do fantástico. Quais foram as suas influências, além de Cortázar, na formação de sua bagagem cultural?
Flaubert, Borges, Sterne, Salinger, Poe, Kafka, Cervantes, Campos de Carvalho, Carroll, Beckett. No jornalismo, Gay Talese, Joseph Mitchell, Truman Capote, Hemingway, Rubem Braga, Paulo Mendes Campos, John dos Passos, Lilian Ross.
Como surgiu a idéia de realizar o Trabalho de Conclusão de Curso na Rodoviária do Tietê? O objetivo sempre foi relatar histórias curiosas daqueles que transitavam pelo Terminal? Queria fazer um livro sobre as ruas de São Paulo, mas teria que falar de calçadas, semáforos e meios-fios, então acabei escolhendo a rodoviária porque é o lugar que mais se parece com a rua. O terminal traz histórias que ilustram contradições da metrópole: a modernização, o movimento repetitivo das pessoas que vão-e-vêm sem pensar, a inconstância, a idéia de massas; e, por outro lado, a sensação de não-pertencimento, a vontade de retornar ao lugar de partida, o anacronismo dos personagens, a permanência – aquilo que nunca muda.
Em seu livro, há muitas histórias surpreendentes e que não só fazem rir, mas nos mostram uma parte desconhecida da Rodoviária. Na elaboração do Livro Amarelo alguma história apurada no Terminal foi retirada do trabalho final?
Sim, várias. Deixei de fora um capítulo sobre os bandeirantes que escrevem cartões de Natal e outro escrito em forma de peça de teatro. Da edição final, saiu um capítulo de que eu gosto muito, o da viagem ao Chile (o destino mais distante do Tietê), que cortamos por ser um relato de segunda mão, ou seja, eu não cheguei a fazer essa viagem, só conversei com gente que tinha feito. O Cassiano Elek Machado, meu editor, fez umas sugestões precisas que me ajudaram bastante nesse tom amarelo final.
A burocracia da Socicam (empresa que administra os Terminais Rodoviários) a impediu de conseguir informações importantes. Quais foram as outras dificuldades enfrentadas na apuração dos dados do livro?
Conseguir os documentos da Companhia do Metrô e as reportagens dos jornais antigos sobre a construção e a inauguração do terminal. É muito mais difícil do que parece: encomendei uma pesquisa no arquivo da Folha de S.Paulo e microfilmei exemplares do Estadão no Arquivo do Estado. Encontrei edições de A Gazeta da Zona Norte numa biblioteca municipal em Santana. Copiei outras coisas e fui achando clippings do Jornal da Tarde e da revista A Construção de São Paulo na Casa da Memória Paulistana. Foi um processo lento e difícil, com ofícios e telefonemas para todos os lados. Passei por maus bocados para atualizar os valores monetários e me perdi em calculadoras e contadores solícitos.
Como relatado no livro, ao contrário da administração da Rodoviária, os funcionários lhe contavam histórias de suas vidas, fatos corriqueiros etc. Como era a relação de entrevistador-entrevistado mantida com essas pessoas e como eram as abordagens e as reações das pessoas entrevistadas para o Livro Amarelo?
Eu sentava, me apresentava e puxava conversa. A coisa mais abominável no jornalismo é abordar as pessoas do alto, com câmera, microfone e carteirinha (eu sou Fulano de Tal e trabalho para a revista Queijos), e sair fazendo perguntas ruins com respostas óbvias (como você se sente ao perder a passagem?). O legal é sentar e ir conversando sobre qualquer coisa. Essa superioridade de jornalista é irritante e só produz reportagens ruins.
A impressão que fica ao terminarmos a leitura do Livro Amarelo é que ele foi resultado de uma grande serendipidade [grandes descobertas feitas por acaso]. Qual a sua opinião a respeito de entrevistas feitas com perguntas pré-definidas e fechadas em oposição à técnica da tradição oral?
Na faculdade, fiz uma monografia sobre inclusão digital usando a técnica das histórias de vida, que permite ao entrevistado falar o quanto quiser, sobre o que quiser. As perguntas eram bem abertas, para deixar o entrevistado dizer o que lhe era importante. O objetivo dessa técnica é obter registros da experiência efetiva dos narradores, tradições e crenças, narrativas de ficção etc. Segundo a pesquisadora Maria Isaura Pereira de Queiroz, “a história de vida se define como o relato de um narrador sobre sua existência através do tempo, tentando reconstituir os acontecimentos que vivenciou e transmitir a experiência que adquiriu. (…) Porém, o relato em si mesmo contém o que o informante houve por bem oferecer, para dar idéia do que foi sua vida e do que ele mesmo é. Avanços e recuos marcam as histórias de vida; e o bom pesquisador não interfere para restabelecer cronologias, pois sabe que também estas variações no tempo podem constituir indícios de algo que permitirá a formulação de inferências; na coleta de histórias de vida, a interferência do pesquisador seria preferencialmente mínima”.
Jornalistas como Talese e Capote acreditam que não se deve utilizar gravadores ao se realizar uma entrevista para que o entrevistado se sinta à vontade e possa revelar o que realmente interessa. Qual a sua opinião a respeito e qual é o seu método: a memória, o gravador ou o bloco de anotações?
Um pouco de cada, depende do entrevistado. No Amarelo, usei só o bloco e a memória, por isso às vezes tinha que sair correndo e despejar tudo no papel antes de esquecer ou me distrair com sorvetes. Continuo adepta do papel e gosto muito de deixar o gravador do iPod ligado, preso no cinto.
Desde o começo do curso de Jornalismo você se identificou com a profissão?
Eu queria desistir desde a primeira semana, mas a matrícula foi cara e fui empurrando com a barriga… Na verdade, sou contra o curso de jornalismo e preferia ter feito qualquer outra coisa, História, Letras, Ciências Sociais, Física, Botânica, qualquer outra disciplina que tenha realmente o que ensinar – com bibliografia e pesquisa decente, disciplinas optativas e professores de verdade. Fora que no curso de jornalismo todo mundo se leva muito a sério. Estudante de jornalismo se leva muito a sério.
Com apenas 26 anos e dois livros publicados por editoras de prestígio, como é sentir-se nessa posição de destaque no mercado?
Eu me sinto um legume.
Quais são os seus projetos futuros? Existe alguma idéia ou assunto para o seu próximo livro?
Meu próximo romance se chama O Livro Negro da Cócora e é sobre uma menina que perdeu a nuca. Pretendo continuar como tradutora da Companhia das Letras e repórter especial de assuntos tolos napiauí. No Estadão, vou escrever quinzenalmente sobre o bairro do Mandaqui e as doenças infecciosas do baço.
Como surgiu a parceria de escrever um livro a quatro mãos com o jornalista Emilio Fraia? Vocês têm algum projeto para outro livro?
Nós tínhamos lido uma frase do Kafka, de um conto chamado “Comunidade”, e ela dizia que “além do mais somos cinco e não queremos ser seis”. Isso foi mais ou menos ao mesmo tempo em que a gente pensou em escrever uma história cujo início fosse num tiroteio de balas de goma. Não tem muita lógica (e não sabemos exatamente como surgiu a coisa da plantação). O que nos faz pensar também que um livro não começa a ser escrito quando começa (de fato) a ser escrito. Ele começa antes e depois, e por muitas vezes — caolho, com sono, dor de barriga, soluço, apendicite, dor de dente. O Verão, que começou quando a gente se conheceu e começou de novo quando o Chibo não desceu do carro pra brincar com os amigos, começou muitas outras vezes, e quando descobrimos que os personagens não se entendiam muito bem e que tínhamos ali algo sobre a dificuldade de expressar certas coisas, sobretudo as mais importantes.