Observatório da Imprensa
16 de dezembro de 2008 – ed. 516
Por Rodolfo Viana
Nenhuma categoria da lista da Associação Paulista de Críticos de Artes (APCA) me chama mais a atenção do que a de literatura. Todo ano, aguardo com devoção especial os resultados de melhor obra de biografia e melhor reportagem. Justifica essa minha espera – ou seria vigília? – o momento raro: quando a relação dos melhores do ano é divulgada na imprensa, é ali, naquele instante, que o ofício mundano do jornalismo se mescla com o quê mais etéreo das artes. Sim, jornalismo pode ser arte. Pergunte a Hersey.
“A noite estava quente e o calor parecia ainda mais intenso por causa dos incêndios, porém uma das meninas que os religiosos resgataram se queixou de frio. O padre Kleinsorge a cobriu com sua túnica. Com várias partes do corpo em carne-viva, conseqüência de enormes queimaduras produzidas pela radiação térmica da explosão – a menina ficara horas dentro do rio, com sua irmã mais velha e a água salgada do Kyo seguramente lhe causara uma dor excruciante. Ela se pôs a tremer e novamente se queixou de frio. O padre Kleinsorge pediu um cobertor emprestado e a agasalhou, porém ela tiritava cada vez mais. `Estou com muito frio´, disse. De repente parou de tremer e morreu.”
Gênero continua atraindo atenção
Hiroshima, de John Hersey, tomou toda a edição de 31 de agosto de 1946 da New Yorker, fato inédito até hoje. Não por acaso, o texto da devastação da bomba atômica que culminou no fim da Segunda Guerra Mundial foi eleito o mais importante relato do século 20 pela Universidade Columbia e ficou em primeiro lugar na lista das cem maiores reportagens da Universidade de Nova York. Um dos motivos é a forma como Hersey conduz sua escrita que, à primeira vista, pode soar a literatura, mas nada tem de ficção; é jornalismo.
Da mesma fonte de Hersey, beberam alguns dos nossos mais célebres jornalistas, tais como José Silveira, Rubem Braga, Antonio Callado e José Hamilton Ribeiro. À parte produções pontuais, a revista Realidade e o Jornal da Tarde são obeliscos do gênero. Durante a década de 1960, suas publicações traziam reportagens de fôlego numa escrita fluida, o que ajudou a moldar a cara do Brasil na iminência dos anos de chumbo. A prática de jornalismo literário na redação do JT feneceu na década de 1990, enquanto a Realidade jaz na memória nostálgica de quem tem mais de cinqüenta anos e que lamenta não terem surgidos, nos últimos anos, textos similares aos da extinta publicação da Editora Abril.
Seis décadas depois da publicação de Hiroshima e quatro após o fim da Realidade, o gênero literário continua atraindo as atenções e fazendo adeptos na imprensa. Seja para tratar de um mendigo que nunca pediu coisa alguma ou um terminal rodoviário em São Paulo, profissionais fazem uso da literatura de não-ficção para contar belas histórias reais, e transformam uma simples notícia em arte.
“Textos duram décadas”
De fato, o jornalismo literário feito no Brasil perdura, não morreu com a Realidade e o JT. Quando a RBS adquiriu o Zero Hora na década de 1970, havia forte concorrência do centenário Correio do Povo. Para encarar o mercado, o diário passou por um processo de consolidação e de melhoria editorial e gráfica e o jornalismo narrativo surgiu como diferencial. “Foi então que se criou a tradição de grandes reportagens na redação”, explica Marcelo Rech, ex-editor do jornal e atual diretor-geral de produto da RBS.
O Zero Hora reserva até 1/6 de seu espaço aos textos jornalísticos literários. Algumas de suas pautas levam um ano para ficarem prontas, o que é incomum nas publicações diárias. Apesar de árduo, o trabalho é necessário devido às inovações. Para Marcelo, num mundo em que há rádio e web, o jornal que leva ao leitor notícias simples está fadado a sucumbir.
Neste século, a primeira empreitada comercial do jornalismo literário veio em formato de livro-reportagem. A Companhia das Letras endossou a idéia do jornalista Matinas Suzuki Jr. e passou a lançar periodicamente clássicos do gênero. O primeiro deles foi Hiroshima, em 2001. Até o momento, são 17 obras, das quais três são de escritores brasileiros – Joel Silveira, com A feijoada que derrubou o governo e A milésima segunda noite da avenida Paulista, e Zuenir Ventura, com Chico Mendes: crime e castigo. Até 2009, a intenção da Companhia das Letras e de Matinas é publicar mais um brasileiro e chegar ao vigésimo título.
“Alguns dos textos têm mais de 60 anos. Foram publicados para serem lidos no dia, na semana ou no mês, e já duram mais de seis décadas”, ressalta Matinas, que não acredita que o gênero seja uma mera “modinha”.
“Ver de outra forma”
A vocação pela narrativa jornalística não requer o rótulo literário. Foi o que aconteceu na década de 1990, quando houve reformas curriculares nas universidades. “A inserção da possibilidade de o aluno de Comunicação fazer um livro-reportagem como trabalho de conclusão de curso expandiu o gênero. Não se falava em JL na época, mas o livro-reportagem ficou associado ao jornalismo literário. Isso gerou trabalhos rasos, mas o excesso gera coisas legais”, comenta Sérgio Vilas Boas, jornalista e coordenador da Academia Brasileira de Jornalismo Literário.
Um dos exemplos mais atuais do que a reestruturação acadêmica proporcionou saiu das mãos de Vanessa Barbara, que se utilizou da arte literária para escrever O livro amarelo do terminal, um retrato preciso e irreverente do Terminal Rodoviário do Tietê, em São Paulo. O que era um trabalho de conclusão de curso tornou-se título publicado pela CosacNaify em 2008 e reverenciado pela APCA no mesmo ano. Desde a época de faculdade, a jovem jornalista busca “ver as coisas de outras formas”. Influenciada por Gay Talese, Joseph Mitchell, Truman Capote e Lilian Ross, a repórter da revista piauí e colunista do Estado de S. Paulo confessa que não seria capaz de “ligar para uma assessoria de imprensa pedindo dados sobre a movimentação de veículos nas estradas”.
Auto-indulgência dos editores
O recente interesse do gênero literário na imprensa não se deve apenas à superficialidade das notícias e reportagens, mas também ao advento da recepção em massa de material jornalístico na rede mundial de computadores. Claudio Tognolli aponta a tendência da dispersão de informações sem estrutura, por repetição, tal qual um eco. “As redações esperam colaborações de fotos e textos emanados de leitores que, por sua vez, programam as páginas da internet, via RSS, e editam de casa o que querem ler. Essa linguagem do jornalismo é resumida, ‘ecolálica’.”
A propagação de informações em larga escala pela rede mundial, no entanto, pode ser um motivo para alavancar o jornalismo narrativo na mídia impressa, uma vez que este gênero seria o diferencial do conteúdo encontrado na internet. “O jornalismo literário, o gonzo e outras variantes seriam uma grande oferta para quem está cansado de abrir os jornais e ver que não tem nada diferente do que se leu um dia antes”, diz o cronista Xico Sá, que percebe a necessidade em se contarem boas histórias, “independentemente do rótulo”.
Xico, porém, relaciona a cisma que persiste nos grandes veículos de comunicação em não aceitar uma narrativa que fuja aos padrões da empresa. “É um preconceito antigo. Lembro quando ouvia nas redações aquela sentença, sempre seguida de uma risada, ‘Lá vem o poeta’. A maioria dos cargos de comando dos jornais está nas mãos de burocráticos que insistem na política da chatice mesmo.” Tognolli concorda que “infelizmente, o jornalismo literário no Brasil só ocorre em acessos de auto-indulgência por parte dos editores”.
Rótulo entra como “charminho”
Neste cenário, é comum cair no erro de crer que o jornalismo literário é melhor do que o convencional. Ledo engano. Matinas aponta que ambos podem coexistir em harmonia: “O noticiário do dia-a-dia precisa de uma linguagem simples, direta, com lead e pirâmide invertida; o jornalismo literário tem outras necessidades.” Mesmo nas redações hard news, “não é impossível ser um pouco mais criativo, dar todas as informações essenciais e, ao mesmo tempo, ter um texto mais bem escrito”.
Eliane Brum, que já passou pela redação do Zero Hora e desde 2000 é repórter especial da revista Época, ganhou o Prêmio Jabuti 2007 na categoria livro-reportagem com A vida que ninguém vê, uma coletânea de escritos produzidos para a edição de sábado do periódico gaúcho. “Sempre busco fazer um texto que o leitor possa ler com o prazer de uma ficção. Isso só é possível com uma apuração tão completa, tão detalhada, que permita ao leitor ser transportado para a realidade que nós, repórteres, tivemos o privilégio de testemunhar. Então, ele pode fazer suas próprias escolhas, ter suas próprias opiniões. Algumas pessoas identificam essas características com o jornalismo literário; para mim, isso é bom jornalismo.”
A busca por gêneros tem a pretensão de elevar o valor do texto, como se o termo “literário” atribuísse ao escrito a perenidade que a ficção detém. “A verdade é que fica forçada a tentativa de muita gente de transformar bons textos jornalísticos em obras-primas literárias”, aponta o crítico e jornalista Adriano Schwartz. Lançar mão de beletrismos em material noticioso é reservar uma suposta nobreza a uma atividade prática e concreta. “A grandeza do jornalismo literário está em ele ser `grande jornalisticamente´. Eu não acredito muito nessa mistura: o rótulo parece entrar como um `charminho´, um símbolo de status.”
Público não quer ser ignorado
Sua opinião baseia-se nas definições essenciais de cada campo: a literatura tem como elemento primordial o trabalho com a linguagem, enquanto sua relação com os fatos é ocasional. “O jornalismo, por outro lado, busca sempre uma representação de alguma fatia da realidade. Nessa construção, ele pode, eventualmente, atingir um nível de trabalho com a linguagem tal que termina por passar uma impressão de texto literário.”
Mas afinal, pode-se considerar uma determinada reportagem literatura? Marçal Aquino, escritor e jornalista, acredita que sim, “na medida em que existe a preocupação declarada de produzir algo além da mera informação, algo com estilo”. Ele lembra a experiência do Jornal da Tarde que, “ao menos até a década de 90, mostrou que é possível dar as notícias com estilo, e que é legítimo um texto jornalístico aspirar à literatura”.
Estilo é bem-vindo em peças jornalísticas. Antes de ser literário, porém, é um produto informativo e deve manter este seu caráter. Isso significa que “a pior coisa é pretender ser muito elevado, é querer escrever bonito e sacrificar a reportagem em benefício de um texto cheio de mesóclises”. Vanessa Barbara aposta na parcimônia e ressalta a necessidade de “saber equilibrar e apresentar simplesmente os fatos para escrever um texto bom, ao contrário do que se pensa”.
Um bom texto. Nossa imprensa está repleta de números apenas, e carece de boas histórias. Podem pretender uma elevação artística. “Jornais e revistas desprezaram por muito tempo os leitores que gostam de um bom texto simplesmente pelo prazer de lê-los e eu acho que este público não quer mais ser ignorado”, percebe Matinas. Aos poucos, a mídia também vai percebendo: jornalismo pode ser arte.