Piauí n. 28 [só no site]
Janeiro de 2009
por Vanessa Barbara
Beligerância e rancor em evento tipicamente klingon
No auditório da Livraria Cultura do Conjunto Nacional, em São Paulo, inúmeros klingons se reúnem para bradar o hino da vitória: “YIjah, Qey’ ‘oH”, eles repetem, zangados e com a mão no peito, numa letra que diz que a batalha já começou. No dia 17 de novembro, às 19h30, cerca de cinqüenta bancários e analistas de sistemas vestiram suas fantasias de trekkies e prestigiaram o Dia do Guerreiro Klingon, no lançamento dos quadrinhos Herança de Sangue, promovido pela livraria Devir e a Federação da Frota Estelar de São Paulo.
Os klingons são uma raça guerreira do universo da série Jornada nas Estrelas (Star Trek). No início, eram inimigos dos humanos, mas, ao longo de diversos episódios e filmes, se aliaram à Federação Unida dos Planetas e passaram a formar um pelotão de elite dos bonzinhos. Seu código de honra é militar, baseado no bushido japonês e nas religiões nórdicas. Para um klingon, todo dia é um bom dia para morrer.
O contra-almirante Sandro Feliciano, de 34 anos, mais conhecido como Gork, foi o primeiro klingon a aparecer no evento. Cumprimentou o almirante Wilton Mendonça Ferreira Junior, 44 anos, que na vida real é auditor fiscal do Bradesco, e brandiu sua bat’leth (espada de honra) aos presentes. Seu uniforme era preto, com coturno e calça de couro. No peito, grampeou dois jogos americanos metálicos e espetou broches de doação de sangue, segurança no trabalho e outras insígnias. Colou sobrancelhas espessas da mesma cor dos cabelos compridos e castanhos, além de uma máscara de testa rugosa, marca registrada dos klingons da Nova Geração. “É um assunto que não comentamos com forasteiros”, justifica um representante da raça, sobre a questão da testa. Trata-se de um dos temas mais discutidos da noite: na série clássica, com Kirk e Spock no comando da Enterprise, os klingons tinham a aparência normal com a sobrancelha mais grossa e a testa lisa. Na Nova Geração – capitaneada por Jean-Luc Picard -, talvez porque os produtores tivessem mais verba, a mitologia ficou mais complexa e as testas, rugosas.
O contra-almirante Alexandre “Worf” Lancieri, de 37 anos, professor de jiu-jítsu e ex-lutador de Mixed Martial Arts (uma espécie de vale-tudo), tem a testa comum e um uniforme mais sóbrio. É ele o único falante do idioma klingon (que estuda há oito anos) e um dos palestrantes da noite. “Você acaba procurando uma raça na qual você se enquadra, no meu caso, uma raça que dá porrada em todo mundo”, justifica. “Por ter uma cultura guerreira, sou muito fã dos klingons, então a minha série preferida é A Nova Geração, na qual se formatou a cultura klingon, e a Deep Space Nine, a partir da quarta temporada. Foi assim: um belo dia eu liguei a televisão na falecida TV Manchete, vi aquela baita nave da Enterprise e aquele cara ali, o Worf. Ele começou a dar pancada em todo mundo e eu pensei: ‘Esse aí sou eu’.” Worf, vivido pelo ator Michael Dorn, foi o primeiro klingon a tripular uma nave da Federação.
Há também uma moça klingon, Larissa Ortiz de Souza, 22 anos, estudante de moda, e seu namorado trekkie, que veste um uniforme amarelo no estilo pijama. Ambos têm uma visão da série mais bem-humorada, principalmente na tosca parte de efeitos visuais. Quando a discussão são os efeitos de câmera na hora de simular a turbulência na nave, eles dizem: “Tem sempre alguém que cai pro lado errado”. Já Michel “Vegore” Vega, 33 anos, bancário, é um klingon mais bravo, que faz caretas e olha feio para os humanos. Ele vigia uma das extremidades do auditório da Livraria Cultura enquanto Gork guarda a porta, de pé, feito um segurança dos portões do inferno. Sandro é técnico químico, trabalha com saneamento básico e gosta da raça de Worf por causa da inspiração japonesa e nórdica, e não por sua inclinação a exterminar organismos vivos.
Às quinze para as oito começa um debate sobre cultura klingon que se estende até as nove, com perguntas inflamadas do público. “Gostaria que você falasse sobre a política dos klingons passando pela guerra de Cardássia com Martok e com Gowron na Nova Geração, falar da importância do chanceler, da política em si”, pede um membro do fã-clube. “Qual é a população do planeta Klingon?”, questiona outro. De repente, chega um red shirt e cumprimenta os amigos. Red shirts (camisas-vermelhas) são os coadjuvantes da série que servem apenas para morrer logo após serem apresentados ao espectador, comprovando o perigo enfrentado pelos protagonistas. O sujeito em questão apareceu, sorriu para a platéia e disse que é sempre preciso haver um red shirt. Também apareceu, atrasado, um curioso casal klingon, que se sentou na primeira fileira e dizimou com seus fêisers todas as pessoas que lhes desagradavam.
Durante o debate, foi dito que o idioma klingon é a língua fictícia mais falada no mundo – há inclusive uma célebre tradução de Hamlet, que os aficionados dizem ter sido composta originalmente em klingon e vendida a Shakespeare por um viajante do tempo. Além de possuírem uma língua marcante, os klingons são muito fortes, têm os ossos robustos e uma personalidade aguerrida. Entre seus ritos de passagem, o de puberdade implica em andar por um corredor polonês recebendo choques do bastão da dor. O rito de casamento inclui o Kal’Hyah, despedida de solteiro do klingon, que consiste em passar uma semana num deserto sem comer, vertendo sangue, suando e fazendo provas de resistência física. “Tudo isso para pegar uma mulher barbada?”, pergunta um fã menos ortodoxo, deixando muitos indignados: há, sim, mulheres klingons muito belas, “mas ao estilo klingon”.
A discussão foi longa e, durante as partes mais controversas, foram ouvidas algumas pérolas. “Como diz aquele velho ditado klingon: errar é humano”, observou Michel, fazendo cara feia para a máquina fotográfica de uma criança. “Que os seus pratos sejam sempre servidos vivos”, “Se está no seu caminho, derrube” e “Você é feio” são outros ditados populares. Falou-se também sobre o calcanhar-de-aquiles da raça: o sangue cor-de-rosa. Por causa da censura, em um dos filmes da série, os produtores tiveram que pintar o sangue dos klingons de cor-de-rosa, tornando-os uma das raças mais caçoadas da mitologia. “Por que não amarelo, verde, ou preto?”, eles se revoltam.
Quase no fim da palestra, um klingon inflamado xingou o outro: “Hab SoSlI’ Quch”, ou seja, “Sua mãe tem a testa lisa”. É um xingamento fortíssimo. Aliás, o dicionário klingon não registra nada afetuoso ou amigável. Em lugar de um “olá”, apenas grunhidos como “nuqneH”, que pode ser traduzido como um ríspido: “O que você quer?”. De fato, reza a lenda que os klingons são rudes, truculentos e só gostam de matar. Mas, ao terminar o debate, ironicamente, eles pediram licença, recolheram seus fêisers e foram embora, sem trombar em ninguém.