Todas as noites, ele chega do trabalho, acende a luz da cozinha e põe o cachorro em cima da bancada, perto da janela. Todas as noites, ele escova o animal, que fica encostado no vidro, espichado, morrendo de cócegas. “Amor, ele está penteando a loira bizarra de novo”, diz a vizinha míope, espantada.
Todas as noites, o casal do apartamento da frente bota o bebê pelado no sofá e liga a televisão. Da janela vê-se a mulher passar a roupa vagarosamente, enquanto ele abre uma cerveja e vigia o filho. A vizinha míope acha que a criança é do mal. Eles assistem tevê sem pular os reclames e ficam horas sem se mover.
Há outro casal que veste o pijama às quatro da tarde, um pijama engomado de gola e bolsinho, listrado ou xadrez. “Amor, eles já estão de pijama”, diz a mesma vizinha, tomando certas providências quanto ao próprio vestuário.
Já o advogado da janela de baixo passa as madrugadas de camisa social, cochilando em frente à tevê, e às três da manhã acorda sem saber qual é a capital da Alemanha, quanto tempo a água leva para ferver e se já é hora do almoço. Às vezes ele passa um pano no chão da cozinha, às vezes discute procedimentos jurídicos ao celular. Outro dia estava lendo um livro sobre a China.
A velhinha do lado assiste a programas de culinária no volume máximo e nunca trocou a maçaneta dourada da casa. Às vezes ela fica espiando o corredor pelo olho mágico, quando está sem sono ou quando é sábado à noite.
As luzes estão acesas em todos os apartamentos da vizinhança, e há no ar um cheiro de feijão. É sempre tarde. As moças chegam do trabalho com seus sapatos de salto, os homens largam as pastas na mesa e abrem a geladeira. As crianças vão dormir cedo por causa da escola, os cachorros se enrolam no canto da sala, resmungando palavras em francês. A esposa se põe a contar o que aconteceu no escritório, sem poupar o marido dos mais vívidos detalhes, por exemplo: ela espirrou três vezes antes de assinar o contrato, ela comeu um abacate inteiro, outro dia pensou em pintar a unha de vermelho, mas acha melhor não. O marido bota um filme no aparelho de DVD e os dois dormem antes de descobrirem que é dublado. Amanhã é preciso lavar a roupa, jogar as batatas fora, pagar a conta do gás. Amanhã é preciso acordar cedo, fazer o café, limpar o umbigo.
A vizinha míope anda o dia todo de pantufas, às vezes senta perto da janela e corta as unhas do pé. Ainda não sabe direito trocar as lâmpadas, mas lava a louça como ninguém. Quando chega a madrugada, ela senta no sofá e começa a ler um livro bem grosso, de capa dura, em companhia das luzes que vão se apagando, uma a uma, até sobrarem o barulho dos caminhões de lixo e o porteiro lá embaixo, assistindo a uma reprise do Pica-Pau.