Vice Magazine – May 2009
por Vanessa Barbara, translated by Peter Azen
versão em inglês: http://www.hortifruti.org/obra/?p=736
Em fevereiro de 2008, o senador Mário Couto (PSDB-PA) desceu da tribuna e se arremessou em direção ao rival Gilvam Borges (PMDB-AP), que devolveu o gesto com um empurrão. Antes de serem apartados pela cintura, trocaram vigorosos insultos verbais. “Vossa Excelência é safado”, esbravejou Couto. “Vagabundo”, revidou Borges. Em outra ocasião, a deputada Angela Guadagnin (PT-SP) protagonizou, em plena Assembleia Legislativa, uma animada dancinha comemorando a absolvição de um colega das acusações de corrupção. Entre as cadeiras do plenário, ela sacolejou com gosto e foi captada pelas câmeras da TV pública.
Foi a expectativa de topar com imagens dessa envergadura que levou à ideia de assistir 24 horas ininterruptas da TV Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, canal 7 da programação de cabo local. A empreitada teria início no sábado, 4 de abril, às 20h, e se estenderia até o domingo às 20h. Na palpitante agenda do fim de semana, seriam veiculadas sessões do parlamento paulista, debates sobre assuntos atuais, documentários de interesse público e programas voltados ao cidadão com insônia.
A repórter estava animada. Tomou um banho caprichado, vestiu seu melhor pijama e postou-se diante do sofá. “Dentro da inteligência mediana que Deus me deu…”, começa um deputado, de forma auspiciosa. Segue-se o primeiro debate da noite, em que dois sujeitos de sapatos lustrosos explicam em minúcias a situação da economia agrária na cidade de Jundiaí. A certa altura, defendendo-se dos protestos populares contra a instalação de uma cadeia na cidade, o deputado declarou: “Isso já está superado, do ponto de vista que já está instalado”.
Às 20h15, o tema era a carência de recursos hídricos em Jundiaí. Às 20h31, o assunto foi subitamente encerrado e teve início um programa sobre a varonil cidade de Campinas, quando a repórter que vos escreve, num acesso de loucura, decide tirar fotos do próprio pé (fig. 1). “O amanhã já chegou em Campinas”, exclamava o locutor, enumerando os marcos científicos e culturais da localidade paulista. O programa terminou às 20h56, após cenas de uma seresta no coreto da praça principal e uma ode à “cordialidade e amistosidade [sic]” dos locais. Em seguida, toda a atenção foi para um comercial institucional orientando os munícipes a tirarem dúvidas presencialmente no Centro de Atendimento ao Cidadão, localizado no subsolo S-46 da Assembleia Legislativa.
21h03 – O deputado Aldo Demarchi (DEM) se dirige àqueles que acompanham o trabalho da assembleia pela televisão (a repórter olha para os lados) e afirma que aprendeu muito “com respeito a respeitar o direito dos cidadãos”.
21h16 – Terceira ocorrência da elegante construção “onde que”, em frases do deputado.
21h19 – “São Paulo é uma pérola”, diz o deputado, chacoalhando seu relógio dourado de pulso. O apresentador interrompe com uma pergunta sobre o plantio intensivo de gramíneas no interior.
21h25 – A essa altura, o debate versa sobre frangos de corte e o sujeito que trouxe a semente do eucalipto da Austrália.
21h29 – Anotação importante: ao que tudo indica, o senhor deputado tem o mindinho torto.
21h32 – Começa um documentário sonífero sobre o rio Tietê, que em meia hora de duração fala sobre os indígenas, o Descobrimento e a etimologia da palavra Tietê, “o mais paulista dos rios”, “onírico” e “teimoso”. Às 21h48, a repórter pede uma pizza por telefone. A expressão “borda de catupiri” ganha contornos verdadeiramente oníricos. É findo o documentário, ao som de gemidos abafados de desespero.
22h01 – Debate sobre a inspeção ambiental veicular. Às 22h06, primeira pausa para fazer xixi. A repórter anota mentalmente: “Parece setembro”.
22h34 – Chegada da pizza.
22h36 – A programação da TV Assembleia atinge seu ápice com o seguinte pronunciamento de um deputado: “A prioridade mais prioritária exclui a prioridade menos prioritária. Isso é lógica. Isso é elementar.” O público vai ao delírio.
22h46 – A repórter ameaça ir ao cinema, mas continua anotando furiosamente os melhores momentos do debate sobre a inspeção veicular.
22h57 – O deputado Barros Munhoz (PSDB), presidente da Assembleia Legislativa, ganha os primeiros elogios de seus pares, sendo chamado de “camarada” e “pessoa excepcional”. Até o fim deste experimento, certamente terá alcançado o status de deidade.
23h01 – “Sob a proteção de Deus, iniciamos nossos trabalhos”, diz a deputada Célia Leão (PSDB), abrindo a sessão solene de homenagem a uma associação de ajuda a portadores de Síndrome de Down. O evento irá “marcar nos anais desta augusta casa de leis um trabalho de envergadura…”.
23h06 – Primeiras substituições dos verbos “ver” por “visualizar” e “sentar” por “assentar-se”, por parte dos nobres deputados. Também se usa “literalmente” sem o necessário sentido literal.
23h09 – Execução do Hino Nacional Brasileiro pela banda da Polícia Militar do Estado de São Paulo. Há um gordinho no trompete.
23h11 – A deputada fala aos deficientes auditivos presentes no local. Ela pede desculpas pela demora do intérprete de linguagem de sinais. Grande momento da Assembleia Legislativa: sim, ela está falando com os surdos, que se entreolham.
23h13 – Mais um elogio ao deputado Barros Munhoz: “Grande líder, grande homem, ministro, já foi prefeito de Itapira […]. Pode ser chamado de cidadão e de pessoa humana, porque no seu interior, em sua síntese, ele o é.”
23h17 – Ao que tudo indica, São Francisco de Assis é bolinho perto de Barros Munhoz.
23h19 – Primeira utilização da palavra “quiçá”, que mais tarde será até flexionada: “quiçás”.
23h32 – Mais uma vez, a deputada diz que esta sessão solene ficará marcada ao longo “das próximas décadas e dos próximos séculos”. Ela saúda um político que veio “abrilhantar a nossa festa”, mas que logo vai embora.
23h57 – O representante do município de Valinhos acena para a câmera. Ele usa abotoaduras.
0h06 – Discurso: “Não posso deixar de perder a oportunidade de…”.
0h22 – “Se mais pudéssemos fazer, assim o faríamos”, filosofa o deputado João Barbosa (DEM).
0h29 – Durante um depoimento na tribuna, a presidente da mesa é surpreendida falando ao celular. Ela disfarça e esconde o aparelho sob a bancada. Presume-se que está mandando torpedos às amigas.
1h – Depois de uma atividade solene de duas horas, sem pausas, passa-se a um debate sobre suplementos vitamínicos, esteróides e doping.
1h22 – “Meu caso clínico é gotoso”, confessa um deputado, a respeito de sabe-se lá o quê.
1h34 – A repórter pensa seriamente em aderir ao doping.
1h52 – “Eu, por exemplo, quando como ovo, me dá uma sonolência”, observa a apresentadora, genuinamente interessada no tema.
2h – Desviando-nos temporariamente do sono, há um interessante debate sobre biocombustíveis, embora o prólogo do palestrante seja longo demais e comece com: “Há dez mil anos, o homem era um mero coletor”, passando pela revolução industrial e a peste.
2h19 – O entrevistado demora 11 minutos para responder a uma pergunta.
3h – Debate sobre projeto de lei relativo a faltas escolares. As pálpebras da repórter começam a se fechar.
3h13 – A repórter é rendida por um cochilo avassalador, do qual desperta apenas às 6h55, a tempo de acompanhar um documentário que descreve florestas, canaviais e exalta a conservação da biodiversidade. Naturalmente, cai novamente no sono e é acordada pouco depois por um debate que pretende resolver o problema da habitação de pessoas de baixa renda.
10h06 – Começa um instigante documentário sobre a represa de Guarapiranga, seguido por um programa educativo que nos leva ao Jardim Botânico.
12h33 – Na plenária, acontece uma sessão parlamentar sobre o Plano de Metas da prefeitura, apresentado por um sujeito chamado Manoelito. Agora a programação da Assembleia é dominada por sessões da Câmara dos Vereadores, por conta de uma parceria com a TV Câmara.
13h03 – “Tem a palavra Vossa Excelência por cinco minutos na forma regimental.”
13h22 – “Vejam, senhores, que coisa esdrúxula. Não fiquei satisfeito, senhor vereador, em que pese o meu respeito…”
13h55 – O vereador Jooji Hato (PMDB) sobe à tribuna para pedir o veto ao transporte de passageiros na garupa das motos, que, segundo ele, incentiva os assassinatos na Grande São Paulo. Está obcecado pelo assunto.
14h11 – O vereador e cantor Agnaldo Timóteo (PR) se exalta ao protestar contra a imprensa, que veiculou imagens humilhantes dos políticos na Câmara. Os vereadores foram expostos de maneira torta e covarde, diz ele, que mais tarde se perde no raciocínio e declara que a ditadura militar brasileira “só existiu para quem era terrorista, para quem matava”. Timóteo chama os jornalistas de vagabundos e sai furioso.
14h44 – “Não vou cansar Vossas Excelências com meu discurso já combalido pelos anos…”, diz um vereador grisalho.
14h57 – Começam as votações aos projetos de lei pendentes, como a criação da carteira de saúde bucal para os alunos da rede municipal, caixa de gordura obrigatória nos prédios, preferência para deficientes nos corredores de ônibus e demais questões que se seguem uma após a outra, enquanto a repórter decide passar a roupa acumulada da semana. Em geral, os vereadores favoráveis devem permanecer onde estão para rejeitar os projetos, alguns datados de cinco anos atrás. A maioria é vetada sem que os vereadores levantem o dedo.
15h30 às 16h15 – Nesse período, a repórter entrou num grave estado de catatonia e não respondeu aos estímulos externos.
16h18 – Recuperação da repórter mediante vasta ingestão de chocolate. Começa uma discussão interminável sobre um projeto de lei que dispõe sobre a concessão urbanística pela prefeitura de áreas do bairro da Luz. Grande polêmica. O vereador Cláudio Fonseca (PPS) reclama do ambiente de dispersão.
16h25 – Começa a chover. Torcida para acabar a luz no apartamento.
16h47 – O vereador Chico Macena (PT) discute a utilização do adjetivo “singelo” na redação do texto do projeto de lei. Diz que o texto é “singelo” por ser simples mesmo, não estando à altura desta augusta casa de leis. Leva quase dez minutos para desenvolver essa argumentação.
16h55 – O vereador Netinho (José Police Neto, do PSDB) apela para a noção de “sofisma”, na sequência acalorada da discussão.
17h07 – Chico Macena (PT) não para de falar. “É isso o que falta nesse projeto: um projeto”, conclui. Não é possível dizer com precisão há quanto tempo ele está discursando.
17h40 – Há praticamente dez vereadores presentes e interessados no assunto, e eles se revezam no microfone até completarem as duas horas mínimas de discussão. Um vereador passa bocejando. Outro afirma que o tempo mínimo é de duas horas, sim, mas é preciso falar mais.
18h04 – Quando tudo parece perdido, o vereador Jamil Murad (PcdoB) começa seu discurso falando que a cidade tem 455 anos de idade e que ele se lembra do quarto centenário, ano em que o time dele ganhou o campeonato com um gol do Cabecinha de Ouro.
18h30 – Finalmente é votado o projeto de lei sobre o bairro da Luz. É aprovado por 40 a 6, para desespero do vereador Alfredinho (PT).
18h34 – É decidida a ampliação do nome da CPI da Pedofilia para “CPI da Pedofilia e do Enfrentamento à Violência Sexual Infanto-Juvenil na Cidade de São Paulo”.
19h01 – O presidente de uma das comissões delibera sobre a conservação dos campos de futebol da cidade.
19h36 – Jooji Hato volta a defender o veto à garupa das motos. Ele sonha com uma cidade onde os alunos não entrem nas escolas com armas, onde se possa ir e vir sem ser molestado, onde o filho do governador não seja assaltado.
19h42 – Na reta final deste doloroso experimento, um parlamentar se mostra ofendido com a obrigatoriedade de divulgar as contas pela internet. “Existe fronteira entre ser homem público e fazer gracinha à população, exibindo seus gastos.”
19h46 – Wadih Mutran (PP) diz que não tem obrigação de publicar na internet suas contas. “Quem é que vai corrigir na internet? Qual é o valor jurídico disso?”
19h56 – Wadih Mutran fala sobre economia de 700 mil reais que a Câmara está fazendo.
19h58 – Carlos Apolinário (DEM) volta triunfalmente à tribuna e fala do respeito que tem pelo vereador Netinho. “Grande líder do governo, é companheiro, é leal.”
20h – Com a proteção de Deus, estão encerrados os presentes trabalhos.
20h01 – Repórter beija o chão da sala e desliga a tevê. Passará as próximas horas chamando os vizinhos de Vossas Excelências e procedendo à execução da janta, que, por questão regimental e pela ordem, com a proteção de Deus e do presidente desta augusta casa de leis, foi devidamente apreciada sob a forma de item bovino. Nada mais havendo a tratar, se despede, não sem antes deixar ressaltada sua imensa satisfação em proceder ao registro de tão magistral momento et cetera, et cetera, et cetera.
[…] sabia Nunes que esta colunista já fez uma maratona de 24 horas de TV Assembleia para uma revista, e que o ponto alto dessa experiência foi um debate sobre inspeção veicular em […]