Revista Piseagrama n. 1
Janeiro de 2010
por Vanessa Barbara
São Paulo é uma cidade sem crianças. É uma cidade onde não se pode olhar para os lados senão pelo reflexo das janelas ou dos óculos escuros; onde não é permitido obter ou prestar atenção. São Paulo é uma cidade sem muito amor nem muito ódio, onde os que choram no ônibus são ignorados, os que pedem informações ganham um olhar desconfiado e os que cantam – pobres dos que cantam – são advertidos por um funcionário de cinza, com o estatuto interno do Metrô. Na rampa da estação Santana, é proibido brincar de escorregador.
São Paulo é uma cidade em que ninguém tem o direito de surpreender, a não ser os loucos, as crianças e os velhos. Todas as terças e quintas de manhã, dezenas de velhinhos dançam bolero, tango e rumba no Sesc Ipiranga. Enquanto isso, um outro senhor opta pela corrida de resistência: Tuplet Vasconcelos, um magro cidadão de 85 anos, já participou de 114 maratonas nos últimos quinze anos, tendo completado a Corrida Internacional paulista de 1999 em cinco horas e quarenta e cinco minutos. Deixou pra trás centenas de competidores. Há velhinhos que jogam dominó; outros tomam aulas especiais de saúde na Universidade Federal de São Paulo. A maioria anda devagar pelas ruas, em total contradição com o ritmo da cidade.
Há, ainda, os que vagam pelos metrôs a esmo, como um certo senhor sentado no banco cinza, a quem uma mulher perguntou: “Este trem vai pro Jabaquara?”, e ele suspirou: “não sei”. A réplica não demorou: “mas para onde é que ele está indo?”; novamente um suspiro e a resposta: “Olha… não sei”.
Nas ruas de São Paulo, todos sabem para onde vão; programam-se para caminhar em linha reta, rumo ao horizonte, e vão atropelando hidrantes, cachorros quietos e criancinhas perdidas. Próximo à entrada dos fundos da USP, junto à Marginal Pinheiros, uma mulher sem-teto gritava, de longe, para o filho de uns 9 anos: “Onde é que tá o Caio?” – e o menino dava de ombros, fazendo um “sei lá” engraçado com o corpo todo. Tinha um olhar meio sapeca, e escondia atrás dele uma caixa enorme de papelão (que se limitava a ficar de pé, impassível). A moça já estava virando as costas, conformada, quando a caixa caiu no chão de repente, em meio a um barulho enorme. E, de dentro, após um penoso esforço para empurrar as abas, saiu engatinhando um menino pequeníssimo, minúsculo mesmo, nem ligando para essas coisas da vida; queria apenas saracotear o mais rápido que podia, de uma ponta à outra do gramado.
Caminhando pelo asfalto, as pessoas veem guris saindo de dentro de grandes caixas, a engatinhar, e não dão a mínima. Nada atinge os que passam na rua; nem mesmo um martelo, que certo dia escapou, lenta e inexplicavelmente da mochila de um rapaz, e foi aterrissar na calçada da Avenida Paulista, causando quase nada de transtorno aos que por ali andavam. Apenas deram a volta, sem oferecer ajuda ou achar minimamente estranho. Que tivesse um martelo dentro da mochila, oras. Não é da minha conta.
Há mães que também não acham ser da sua alçada um certo garoto que cutucava a saia e a paciência dos passageiros do metrô, tentando convencer a referida progenitora a correr com ele para fora do vagão. Queria porque queria sair de lá e entrar no trem oposto, que ia para o Jabaquara e estava vazio; só para depois sair correndo de novo quando a porta abrisse e tomar, mais uma vez, o metrô para o Tucuruvi. Movido por nenhum motivo coerente, é claro. Apenas porque parecia algo bacana à beça – para a criança, não para os demais paulistanos irritados ou para sua mãe, que suspirava fundo e pedia para que ele falasse mais baixo, por favor, os moços ali estão reparando.
Em São Paulo, as pessoas morrem no meio do caminho, atravessam a rua nas horas que não deveriam e os prédios desabam, atrapalhando o tráfego. Na opinião dos taxistas, a esquina da Alameda Campinas com a Paulista é o lugar mais fácil para se atropelar transeuntes. Já no cruzamento entre as Ruas Humberto I e Conselheiro Rodrigues Alves, na Vila Mariana, os carros têm 3 minutos para circular – e as pessoas, pouco mais do que 2 segundos.
Em São Paulo, os pedestres não existem; bem como as cadeiras de rodas, os mendigos (meu nome é Francis e estou vendendo drops), as árvores e as bicicletas. Os poucos que transitam pelas ruas estão indo de um lugar a outro, preocupados com a hora do estacionamento. Nas calçadas da avenida Paulista, não se pode andar em paz sem trombar com um guardinha bravo, que normalmente apita na orelha dos que passam e os obrigam a parar. Tudo para que os carros de vidros fumê possam atravessar a calçada, rumo aos estacionamentos.
Alguns ainda resistem: todos os últimos sábados do mês, um grupo de jovens promove uma Bicicletada pelas avenidas de São Paulo e questionam a utilização das vias públicas. Vestem uma máscara branca de enfermagem e saem por aí, com seus veículos alternativos (sejam patinetes, pogobóis, skates, monociclos, bigas ou pula-saco). “Não estamos atrapalhando o tráfego, nós SOMOS o tráfego”, diz o slogan do Reclame As Ruas, movimento internacional no qual se baseou a Bicicletada paulista. A favor das aglomerações e das festas, sempre no meio da avenida.
A cada ano, cerca de 180 mil pessoas tiram a carteira de habilitação do Detran (Departamento de Trânsito). Quinhentos mil novos automóveis entram em circulação na cidade. Toda esta multidão, atordoada, decide dispor de seu direito de ir e vir geralmente ao mesmo tempo, provocando congestionamentos que já chegaram a somar 240 quilômetros, em um feriado de 1996. A distância, para se ter uma idéia, equivaleria a 3 milhões de potinhos de Yakult, empilhados um a um, embora a comparação não faça qualquer sentido. No ano 2000 houve, em São Paulo, um acidente a cada 2,9 minutos; um atropelamento a cada 44,4 minutos; um morto a cada 5,9 horas. Todos devidamente contabilizados, etiquetados e despachados – em 2002, uma das vítimas foi um pacato cavalo, atropelado no meio de uma rua do Morumbi pela cantora Sula Miranda.
A balbúrdia da cidade encontra seu buraco negro todas as sextas-feiras à noite na praça de alimentação do Shopping Metrô Tatuapé – onde reina o silêncio quase absoluto. Desde que foi inaugurado, o shopping virou ponto de encontro de deficientes auditivos, que passam a noite se comunicando em silêncio, através da linguagem de sinais. Em algumas ocasiões já chegou a haver mais de 200 deficientes auditivos no local.
São Paulo é uma cidade em que ninguém tem o direito de se surpreender, a não ser os loucos, as crianças e os velhos. Mesmo que haja tanto a ser descoberto. Mesmo que existam tantas cidades nas sombras da São Paulo que sai nos jornais.
Sobre o autor
Colunista da Folha de São Paulo, editora do site A Hortaliça e autora de O Livro Amarelo do Terminal, da CosacNaify. Escreveu este texto em 2002.
http://piseagrama.org/artigo/124/sao-paulo-e-uma-cidade-de-coisas-despercebidas/