“Há povos de travesseiro e povos sem travesseiro”, teorizou o antropólogo Marcel Mauss, em 1934. “Há populações que se espremem para dormir em torno do fogo, ou mesmo sem fogo. Há povos de esteira e povos sem esteira. Há, enfim, o sono de pé”, completou, em sua ânsia científica de categorizar os tipos humanos.
Podemos ir além e dividir o mundo entre aqueles que usam tesourinha de unha e os que preferem o “trim”. Uns seriam mais habilidosos com a mão esquerda e os outros, mais detalhistas. Podemos também repartir a humanidade entre os que gostam de botar o feijão em cima do arroz, em oposição aos que separam metodicamente os alimentos ou usam a fava como substrato. Hoje em dia, é essencial optar entre ninja ou samurai, entre fio ou fita dental, entre PC ou Macintosh, entre gato ou cachorro, porco ou chouriço. É possível aglutinar os elementos em subgrupos: o usuário de Mac é eminentemente samurai, gosta de gatos e usa fita dental. Há uma clara propensão ao chouriço.
Não se tratam de opções corriqueiras e sem importância, como aderir ao gongorismo, abraçar a mitologia hindu ou defender a revolução armada. Neste caso, trata-se da maior das questões, do manifesto definitivo que marca o posicionamento de cada um neste planeta: o que você prefere, rúcula ou agrião?
Alguns dados para facilitar essa decisão quase metafísica: a rúcula, também chamada de mostarda-persa, popularizou-se a partir dos anos 90. Antes disso, era uma planta selvagem, ignorada nos campos da culinária e da botânica. Hoje é utilizada em refeições devido ao seu gosto forte e amargo, capaz de anular o sabor dos outros alimentos. Trata-se, portanto, de uma usurpadora de paladares. Já o agrião é popular desde a Idade Média, quando era utilizado como emplasto para combater o escorbuto. Possui alto índice de vitaminas, ferro, ácido fólico, potássio, cálcio, fósforo, iodo e betacaroteno, além de supostas propriedades anticancerígenas. Dizem que também serve para curar verrugas. Por que, então, a rúcula reina soberana em nossas saladas?
O agrião é proletariado, é perseverança, é a gente simples da nossa terra. E disso muitos têm vergonha. Não percebem que o bom acólito da causa agriã está fazendo uma profissão de fé, uma opção clara e simples, como quem diz: “Sou a favor de bebês em geral. E de filhotes de tartaruga”. Até hoje, o discípulo pró-agrião não se conforma com a supremacia da rúcula, consolidada nas duas últimas décadas. De um dia para o outro, surgiram certas folhas mais amargas em meio ao tradicional agrião-alface-e-pepino. Depois veio o tomate seco, a mussarela de búfala e os croutons. Em poucos anos, a rúcula sufocou por completo os caules do agrião, esta valorosa verdura, que praticamente sumiu do mapa. (Só no futebol é que se continua a dizer “zona do agrião”, em referência à pequena área.) Fora os locutores esportivos, ninguém mais tem a coragem de advogar em favor do Nasturtium officinale.
A rúcula é burguesa e petulante. Quem a aprecia fatalmente se posiciona do lado errado da luta de classes, mesmo sem a intenção consciente de esmagar o campesinato. O pró-rúcula escolhe Higienópolis em vez de Santa Cecília, táxi em vez de metrô, caipirinha de lichia em vez de groselha Milani. É adepto de alguma corrente new age e saboreia seus vegetais folhosos com molho italiano. A rúcula, afinal, não tem caule significativo e nem sombra de personalidade. Ela anda de salto alto, frequenta os bares da Vila Madalena, dá escândalo em fila de banco. Apoiá-la é aplaudir a mais-valia e a exploração dos fracos – a rúcula faz as unhas, enquanto o agrião as rói.
Vamos dar uma chance ao agrião e reverter essa iniquidade histórica.
[…] vez da rúcula Isto é uma resposta à deselegante picardia escrita pela genial (e lindinha) Vanessa Barbara. Seu texto (o dela, não o seu; a não ser que […]
Esse texto é obra de algum trabalho de filosofia? Hehe