Folha de S. Paulo – Ilustríssima
20 de Junho de 2010
As pilhérias literárias de Carlos & Carlos Sussekind
RESUMO O celebrado romance “Armadilha para Lamartine” (1975) é uma original e irônica reelaboração que Carlos Sussekind fez dos exaustivos diários de seu pai, que registram 30 anos de vida privada e política no Brasil. Dois jovens escritores visitam o autor e conhecem os divertidos diários de seu pai, que são a matriz de sua obra.
O escritor Carlos Sussekind na praia de Copacabana.
VANESSA BARBARA
ANDRÉ CONTI
fotos DARYAN DORNELLES
O CARIOCA CARLOS SUSSEKIND DE MENDONÇA FILHO, 76, é uma espécie de saci literário. Entre as traquinagens de sua lavra, a que mais lhe dá orgulho é a da “correspondência machadiana do além”, executada há cinco décadas.
O crítico Augusto Meyer nem era de seu círculo de amigos, mas, na condição de autoridade em Machado de Assis, tornou-se alvo da patuscada. Carlos escolheu, entre as valiosas cartas de Machado herdadas do avô (Lúcio de Mendonça, fundador da Academia Brasileira de Letras), uma que contivesse vagas menções familiares que pudessem passar como relativas a Meyer. Envelopou-a e remeteu-a ao intelectual, endereçada com pena Malet e nanquim, caligrafia rebuscada e o nome: “Joaquim Maria M. de Assis”. A brincadeira consistia em imaginar com que cara ficaria Meyer ao receber, pelo correio, uma carta endereçada a ele do punho de seu ídolo.
Carlos não tinha como saber das repercussões da pilhéria. Ao longo da entrevista concedida à Folha, numa tarde de ventania em Copacabana, o escritor fez revelações e admitiu que as brincadeiras, em sua maioria, tinham como objetivo conquistar teimosas donzelas. Foi o que ele quis com a carta de Machado para Augusto Meyer: impressionar uma moça da família do crítico.
Certa feita, namorava uma jovem marxista quando descobriu, entre os papéis do pai, um cartão manuscrito com os seguintes dizeres: “Desejo-lhe um feliz Natal. Ass.: Luís Carlos Prestes”. Sem vacilar, enviou-o à bem-amada, já que o cartão não trazia data nem o destinatário. Deu certo.
MAQUINAÇÕES Sua maquinação mais bem-sucedida, porém, é “Armadilha para Lamartine”, romance de 1975. A autoria é creditada a “Carlos & Carlos Sussekind”, já que o romancista se baseia no diário do pai, proeminente jurista de mesmo nome. Sussekind Filho adulterou passagens, trocou nomes de pessoas, situações e referências, compondo uma narrativa meio ficcional e meio verdadeira, que se concentra em acontecimentos referentes ao ano de 1955.
A crítica da época foi positiva e o livro ganhou notoriedade entre leitores seletos, que o julgaram extraordinário. No posfácio, o escritor e psicanalista Hélio Pellegrino declara que, “do ponto de vista de sua estrutura, o romance apresenta o rigor e a elegância formal de uma partida de xadrez, jogada por um mestre”. A poeta Ana Cristina Cesar o chama de “livro único na ficção brasileira”. A crítica de literatura Leyla Perrone-Moisés aproxima-o de Machado de Assis, no que diz respeito à temática e ao uso da ironia.
Em seu conteúdo, os fatos narrados na “Armadilha” são quase todos verídicos, por improváveis que sejam, e o mesmo se pode dizer dos demais livros do autor: “Ombros Altos” (de 1960, reeditada em 2003 pela 7Letras), “Que Pensam Vocês que Ele Fez” (Companhia das Letras, 1994) e “O Autor Mente Muito” (Dantes, 2001), este escrito em parceria com o psicanalista Francisco Daudt da Veiga -que afirmou que a “Armadilha” é “a mais fiel das autobiografias, ou seja, tudo é inventado”.
Até os mínimos incidentes são confirmados pelo autor, que, portanto, mente muito menos do que se poderia supor. O título de seu próximo romance, se existisse, seria “Não sou quem eu era, não sei quem eu sou”.
OBSESSÃO Todos os livros de Carlos Sussekind, o filho, partem da mesma obsessão: o diário escrito pelo pai, Carlos Sussekind de Mendonça (1899-1968), respeitabilíssimo corregedor de menores do Tribunal de Justiça, autor de obras como “O Sport está Deseducando a Mocidade Brasileira” (1922), “Norma Talmadge e a Expressão das Emoções na Cinematographia Americana” (1923) e “Algumas Suggestões à Educação Sexual dos Brasileiros” (1927). Um sujeito sério, portanto.
Com a mesma diligência que dedicava aos processos despachados em sua “varandola-gabinete” (a varanda de um apartamento em Copacabana), ele manteve, ao longo de 30 anos, um registro ultradetalhado de seu cotidiano, que abarcava temas tão díspares quanto os bloqueios intestinais de seus entes queridos, o preço da carne, a saúde do papa Pio 12, as belas gengivas da nova Miss Brasil, os discursos de Carlos Lacerda no rádio, a queda de Perón, a bomba atômica e a campanha de Juscelino à Presidência.
A herança está guardada até hoje nas estantes de Carlos Sussekind, o filho: aproximadamente 70 volumes em capa dura, preenchidos com caligrafia segura, caprichada e absolutamente sem rasuras. A obra completa tem cerca de 30 mil páginas e é entremeada por prosaicos recortes de jornal, em que figuram as obsessões do jurista. Retratos da atriz Gina Lollobrigida alternam-se a instantâneos do líder comunista Ho Chi Minh e da família na praia.
Nesse épico da vida privada, o dr. Sussekind fala sobre seus hábitos matutinos, suas idas à farmácia, as desavenças familiares e como tem passado a noite. Num dia, diz que a mulher “sofreu as consequências da comida com vinagre que tivemos ontem à noite”. Noutro, relata ter sido “forçado a dar expansão a uma acumulação extraordinária de gases no intestino”. E dá detalhes: “Fi-lo com o mínimo de ruído possível. Mas o Lamartine ouviu, apesar de tudo. E foi certificar-se do que era, imprudência que lhe custou caro ao olfato”. Lamartine é a persona literária do filho.
BONS IMPULSOS O diário é o relato de uma vida sem sobressaltos, metódica e implacável, que parece “não corresponder aos bons impulsos” de quem a descreve. O jurista se ocupa de questões comezinhas e vive sempre com a impressão nítida de haver deslocado alguma costela ou apanhado uma virose fatal: “Quero fixar bem esses detalhes para amanhã auxiliar o meu possível médico assistente, se não a me curar, pelo menos a me passar um atestado de óbito decente.”
O dr. Sussekind fala do seu peso, sempre acima do que gostaria, e dos filmes a que assiste no cinema, como um com Jane Russell, “o maior abacaxi de todos os tempos. Houve, até, vaias. E, para isso, sai um homem de casa, com sua esposa, luta por condução e perde a sua noite, tão digna de melhor emprego!”.
De sua “varandola-gabinete”, ele dá notícias sobre as mais divertidas insignificâncias da rotina, acalentando boas providências tais como: “Verificarei segunda-feira sem falta”, a respeito de uma disparidade de peso nas balanças de farmácia. Ou: “Hoje o dia foi de todo inexpressivo”. E ainda: “Noite besta, portanto”.
É na obsessão pela compulsão paterna que consistem os quatro livros de Carlos Sussekind, romances alegadamente ficcionais que se baseiam em anotações do diário e em patuscadas verídicas. “É muita besteira”, diz, sorrindo.
SANATÓRIO Concentrado nos anos de 1954-55, “Armadilha para Lamartine” relata os acontecimentos reais que levaram à igualmente real internação de Carlos Sussekind, então com 21 anos de idade, no Sanatório Botafogo. Preso no hospício e sem ter o que fazer, o rapaz fingia receber telepaticamente as páginas do diário do pai, identificado no livro como “dr. Espártaco”. Fez sucesso entre os colegas. “Eu tinha que arrumar um jeito de me divertir”, afirma Carlos, relembrando o acontecido.
O triste episódio que resultou em camisa de força aconteceu às 8h da manhã de 30 de junho de 1955. O rapaz passara a noite fora, “no número 418 da Barata Ribeiro”, mas voltou a tempo de tomar café com os pais, “no 326 da Gustavo Sampaio, apto. 901”. Na época, seus melhores amigos eram Alexandre Eulálio -futuro professor de teoria literária na Unicamp- e Joaquim Pedro de Andrade, diretor de “Macunaíma” e expoente do cinema novo. O que ocorreu em seguida continua nítido na memória de Carlos. Num ímpeto irrefreável, ele dirigiu-se à praia do Leme, a poucos quarteirões dali. Sem camisa, ganhou a avenida Atlântica. No calçadão, resolveu tirar o calção. Lá pela altura do Posto 1, já estava inteiramente nu. Caminhou em direção ao mar. Foi censurado pelos banhistas, que atiravam bolas de areia. Um garotinho chegou a oferecer-lhe o calção. Alguém chamou a radiopatrulha.
Na ocasião, Carlos/Lamartine afirmou que havia morrido e que estava felicíssimo, pois isso não lhe custara nada. Alegou depois que era Jesus Cristo e saiu correndo atrás da irmã, querendo atirar-lhe coisas (“Deteve-se, porém, quando chegou a vez de uma jarra mais pesada e mais custosa”). Sua expressão era abobalhada. Só hoje ele entendeu o que realmente houve naquela manhã, há mais de 30 anos. “Eu acreditava estar numa outra dimensão”, explica, com ar divertido.
ORIGEM Ao que tudo indica, a origem do surto foi um pensamento que teve, certo dia, enquanto passeava na areia de mãos dadas com a namorada, trançando um caminho entre as cadeiras dos bares da orla. “A gente passava andando e ninguém percebia, o que era bem esquisito”, lembra.
Pouco depois, para piorar, presenciou um diálogo entre seu amigo e o garçom de um boteco, em que ambos repetiam as mesmas palavras de forma desconexa, mas ninguém além dele parecia estranhar. “Aquilo só podia estar acontecendo em outra dimensão, foi a conclusão que eu tirei. A dimensão em que eu estava não era aquela em que as outras pessoas estavam”, justifica.
Foi com o intuito de comprovar essa tese que Carlos, tal como ele percebe hoje, despiu-se em plena praia do Leme -de início, as pessoas não pareciam se importar. Ao entrar no mar, seu objetivo não era exatamente morrer, pois “estava em outra dimensão”. Como resultado da peraltice, o futuro escritor, que nos diários é chamado pelo apelido de Caíco, passou quase dois meses num sanatório e chegou a ser tratado com eletrochoques (“Passava o dia inteiro com dor de cabeça”).
Enquanto isso, um sofrido dr. Sussekind intercala as novidades do noticiário à aritmética das despesas com a internação do filho. Na sua obsessão de descrever tudo, ele não tem como compreender o que se passa com Carlos/Lamartine. O livro se constrói na tensão entre o relato do drama familiar e a repercussão do suicídio de Getulio Vargas, em agosto de 1954, com os discursos radiofônicos de Carlos Lacerda, o que faz da “Armadilha” uma obra-prima do romance político.
Diz-se que uma das agravantes do surto foi, justamente, o fato de Carlos sentir-se aprisionado pela ação opressiva do pai, que impunha um controle absoluto sobre tudo e todos: a família, os colegas, a China comunista. “O mundo, o país e a cidade convergem para a casa, centro que se quer estável no olho do torvelinho”, atesta Leyla Perrone-Moisés, em artigo publicado no “Mais!” em 26/9/1993 e disponível em folha.com/ilustrissima.
ENCANTO & INVENÇÕES Em “O Autor Mente Muito”, Carlos afirma ter feito fama literária como um desses “malucos de carteirinha” que, após um único surto e consequente internação, “passam anos recordando o assunto, como se tivessem feito parte da campanha da Itália na Segunda Guerra”.
No livro, escrito a quatro mãos com seu próprio psicanalista, ele comenta que, após anos de terapia, foi dado como incapaz de distinguir entre ficção e realidade. Resolveu então ceder de vez e misturou à narrativa suas invenções mais encantadoras.
A principal delas é a “suprema leveza” – um circo com bailarinos de papel que é acionado por estática. O brinquedo é montado numa pequena forma de pizza, coberta por um papel-filme, e seus protagonistas são confetes que ele mesmo confeccionou com um furador de papel. Tal qual um feiticeiro, Carlos esfrega a manga da blusa no objeto e, surpresa!, os papeizinhos iniciam uma dança nervosa, colando-se ao plástico e se enganchando sofregamente. A namorada que ganhou o mimo não achou a menor graça. “Casou-se com outro”, ele reclama.
O MICO-PRETO O diário do dr. Sussekind é famoso por suas lacunas, silêncios e omissões. De início, ficava guardado numa prateleira alta, fora do alcance da família: “A barreira dos 30 centímetros foi uma das tantas que, uma vez estabelecidas lá em casa, eram respeitadas com a concordância de todos para preservar a anormalidade da família”, escreve Carlos. Com o tempo, passou a ser lido por todos. Daí os expedientes que o autor usava para desconversar.
Há uma suposta amante de quem ele falava o tempo todo, d. Camila Soares, sob o pretexto de ser uma “amiga espiritual”. Há o seu inacreditável problema com os bondes: a crer nos diários, na volta para casa, os motorneiros estavam sempre trocando o letreiro depois que ele já se sentara, e o resultado era “o bonde tomar um rumo imprevisto, ele ter que saltar no meio do caminho e chegar invariavelmente atrasado ao jantar em família”. Ou seja, uma inventiva desculpa para ocultar seus encontros clandestinos.
Há o assédio das moças com quem travou conhecimento na repartição. Estas viviam lhe oferecendo números de telefone, endereços e locais de encontro, que terminantemente recusava: “E aí está a que perigos se expõe, num dia quieto, um homem de bem”.
O capítulo do mico-preto é assim chamado por ser uma longa passagem do diário que o filho gostaria de descartar, como uma carta de mico, por julgar desagradável. São revelações sobre a vida sexual do dr. Espártaco, trechos em que o jurista fala de sua intimidade com a esposa e a amante. Por causa desse capítulo, publicado em “Que Pensam Vocês que Ele Fez”, Carlos resolveu destruir os três últimos volumes do diário. Está arrependido até hoje. “Como havia isso, essa dúvida de se aquilo era de minha autoria ou de meu pai, aproveitei para manter uma ambiguidade que não se resolveria nunca”, contou em entrevista ao pesquisador Fábio Bortolazzo Pinto.
“Uma coisa ou outra: ou eu tinha forjado aquilo, que seria uma grosseria inqualificável, ou aquilo era a própria verdade e eu a estava revelando. Então ficou essa complicação que eu resolvi muito mal.” Entre os volumes perdidos, estavam as impressões do pai de Carlos sobre o golpe de 64.
IRRELEVÂNCIAS Ao longo de sua carreira, Carlos trabalhou na confecção do dicionário Houaiss, foi tradutor e ilustrador. Hoje, aposentado, passa as tardes digitando as páginas do diário do pai, sem previsão para concluir a tarefa. Coleciona dicionários antigos e é cinéfilo. Adora passear na rua e observar as pessoas.
Carlos escolheu o dia da entrevista à Folha para render-se a uma extravagância permitida por sua nutricionista. Nos últimos meses, um problema renal o obrigou a uma dieta rígida: só pode comer livremente uma vez por semana. Almoçou penne com gorgonzola, pera e “aroma de pimenta”. De sobremesa, um tiramisù pequeno demais. “Não como doce há dois meses”, lamenta, tecendo loas ao sorvete de café choc chip da marca Itália, guloseima de sua predileção.
Assim como o diário paterno, o cinema é uma de suas fontes preferidas de irrelevâncias. Embora goste de assistir a todo tipo de filme, Carlos é um prodigioso especialista em atores secundários que o tempo esqueceu. Wendell Cory, por exemplo. “Você sabe quem foi Wendell Cory? Pois então. Assim que ele apareceu na tela, seu nome surgiu nítido em minha memória.” Ele adotou um livro de referência, o “The Movie Stars Story”, de Robyn Karney, que traz os 500 mais notáveis atores de todos os tempos. O critério é o seguinte: quem estiver mencionado no livro não vale. “Então nessas horas sei que estou lúcido, apesar de ninguém mais saber”, afirma.
MUTIRÃO DE COPISTAS O diário do pai se faz presente em cada coisa que Carlos escreveu na vida. Para comemorar seu aniversário de 70 anos, em 2003, ele reuniu os amigos na livraria Dantes, no Leblon, e pediu-lhes que ajudassem a digitalizar as páginas já datilografadas do documento. Cada um recebeu 15 laudas.
No mutirão de 101 copistas, estavam o jornalista e editor Paulo Roberto Pires, o poeta Armando Freitas Filho, a crítica literária Flora Süssekind e o documentarista João Moreira Salles, além da professora na UERJ e pedagoga Ira Maciel, então sua namorada. Durante a entrevista, ele afirmou várias vezes que “adoraria” digitalizar o diário e publicá-lo gratuitamente na internet, mas que, na verdade, não lhe importavam os preciosos panoramas históricos contidos no documento. (Uma de suas filhas pretende dar uso acadêmico aos diários.)
“Danem-se as relevâncias!”, exclama Carlos. “Tudo o que quero é achar graça, quando isso estiver completo, em estabelecer associações curiosas, coisas que só serão possíveis quando tudo estiver transcrito em texto eletrônico”, diz. “Imagine eu pegando a palavra ‘safado’ ao longo de 30 anos, e reparar a mudança de conceito, às coisas e pessoas a que se aplica, construir uma história juntando os dias em que as safadezas foram registradas.” Donde se conclui que, aos 76 anos, Carlos continua um grande galhofeiro. É assim que vai se esquivando de um destino “pior que a morte”: a seriedade.
André Conti, 28, é editor de livros e tradutor. Vanessa Barbara, 28, escritora e crítica de TV da Folha. É autora de “O Livro Amarelo do Terminal” (Cosac Naify) e do romance “O Verão do Chibo” (Alfaguara), com Emilio Fraia. Pág. 4
[…] Leitura complementar: Entrevista com Carlos Sussekind. […]