Revista Mais – Pão de Açúcar
Outubro de 2010
por Vanessa Barbara
Aos 8 anos, meu avô ficou bêbado de tanto tomar água. O incidente se deu por conta de uma aposta para ver quem bebia mais, pois, nessa idade, são essas as coisas que importam. Valente, meu avô tomou quase uma moringa inteira – quinze copos d’água – e venceu a disputa, embora tenha saído vomitando nos braços do povo. “Naquele dia eu apanhei bastante”, ele lembra, com um sorriso gabola.
Até os 12 anos, em 1945, Paulo de Moraes viveu em Ourinhos, no interior de São Paulo, onde havia constantes guerras de uva e brigas de pedrada. Uma de suas mais célebres histórias, recontada no romance O Verão do Chibo (Alfaguara, 2008), diz respeito à escolha do líder da turma – formada por Craiton, Zé Minduim, Valter Gordinho, meu avô e o Oscar.
“O Zé Minduim chegou com uma câmera fotográfica invisível e a respiração toda estranha. Disse que ia tirar um retrato, eu fiz pose, e ele tacou uma torneira na minha cabeça”, conta. Era uma vida difícil para Paulo, o mais magrinho do grupo e o único que não conseguia enxergar por cima do milharal. Mas ele era o mais esperto e, certa vez, chegou a ganhar numa aposta dez caixas de palito de fósforo – o que fez dele uma espécie de magnata local, pelo menos até a mania de incêndio passar.
Por essas e outras é que meu avô acabou virando o “Menorzinho”, narrador do meu primeiro romance (em parceria com o escritor Emilio Fraia). Passamos horas conversando sobre o Flash Gordon, o futebol de botão, as surras, o rio Paranapanema, Tarzan contra o mundo (1942), os passeios pelo trilho do trem, o aprendizado de cambalhotas com os palhaços do circo, Roy Rogers, A Deusa de Joba (1936) e o dia em que comeu três marias-moles de uma vez.
Minhas histórias preferidas têm como protagonista o Valter Gordinho, que, dizem, só andava com a turma porque o tio dele era rico e lhe enchia de presentes. Não há um episódio em que o roliço petiz não se meta em alguma enrascada. Sempre incentivado pela turma, Valter Gordinho foi atacado por marimbondos, tomou chineladas antológicas, pulou de um andaime, passou semanas com febre, perdeu misteriosamente os suspensórios e, durante um furto de pombos, ficou entalado no forro de um galinheiro.
Há algumas semanas, aos 76 anos, meu avô sofreu um AVC e ficou com o lado direito paralisado e a fala comprometida. Ninguém parece desconfiar, mas eu sei que ele vem planejando uma mirabolante fuga do hospital, com direito a guerra de goiaba, fratura exposta, carrinho de rolimã e a ajuda de quem quiser participar (exceto o Valter Gordinho).
Na época do meu avô, “o quintal de casa ia embora”.