“Tomai o fardo do homem branco”, escreveu o poeta inglês Rudyard Kipling no final do século xix, conclamando os europeus à conquista imperialista dos povos bárbaros. “Encha a boca dos famintos/ e proclama, das doenças, o cessar”.
Foi o que me ocorreu ao assistir a nova temporada de “Extreme Makeover Social” (Record, sáb. 0h30), apresentado pela empresária e socialite Cristiana Arcangeli, que no último sábado marcou 7 pontos no Ibope.
A produção brasileira é derivada de “Extreme Makeover”, reality show em que os participantes passam por transformações no visual ou têm suas casas reformadas. Na versão da Record, o objetivo é contemplar creches, asilos e casas de apoio voltadas à população carente.
Na temporada passada, mais de 400 vagas foram abertas para crianças “em situação de vulnerabilidade social e econômica”. O investimento foi de R$ 10 milhões, e contou com o apoio de 47 empresas e quatro grandes patrocinadores: Nestlé, Kimberly-Clark, Suvinil e Leroy-Merlin.
Os grilhões do patrocinador são facilmente sentidos ao longo do episódio, sempre que há uma cena ensaiada, do tipo: “Nossa, mas que portal bacana. Ai, quer saber? Vou aproveitar e escolher os produtos no catálogo virtual”.
A naturalidade afetada do merchandising é o de menos. Pior é ganhar uma reforma à custa da própria dignidade, já que o programa não perde a chance de dar zoom em órfãos que choram, abusar da trilha sonora pungente e explorar ao máximo as emoções de quem está ganhando um suprimento de fraldas.
Sem contar as demonstrações caramelosas de gratidão: as crianças correm para abraçar a apresentadora, uma espécie de emissária do bem que segura a mão dos necessitados e, condescendente, chama uma voluntária de “bonitinha”. O tom é magnânimo. Só uma vez ela tropeça, trocando “refeitório” por “restaurante”.
Com as câmeras quase dentro das narinas da entrevistada, grava-se a reação de uma diretora de creche, a quem a empresária comunica que decidiu dar uma casa.
“Quem é feliz aqui?”, ela pergunta, e as crianças gritam: “êêêu!”.
O objetivo do programa é realizar sonhos – e, pelo visto, explorá-los. É esse o fardo do milionário.