MAN Magazine / Volkswagen
n. 3 – circa dezembro de 2011
por Vanessa Barbara
Pode-se dizer, com segurança, que meu caso de amor com o transporte coletivo não é passageiro – com o perdão do trocadilho. Seu ápice se deu em 2008, quando publiquei O Livro Amarelo do Terminal (CosacNaify), um trabalho jornalístico sobre a Rodoviária do Tietê. Mas esse não foi o início e nem o fim.
Meu relacionamento com os ônibus começou em 1993, aos 11 anos de idade, quando ganhei o direito de andar de ônibus por conta própria. Foi com uma euforia desgovernada que tomei meu primeiro coletivo sozinha, no Terminal Santana, e por algum tempo essa foi a minha principal motivação para frequentar a escola: a promessa de que, na saída, eu viajaria garbosamente num mamute de lata, golpeando os passageiros com minha mochila extravagante e fazendo troça dos imaturos que voltavam de perua ou de carro com os pais. Naquela época, só o que eu almejava era um dia poder erguer o braço e fazer o sinal, posto que eu só sabia subir num ônibus que já se encontrasse parado em seu ponto final. Minha amiga Fabianny já conhecia essa sensação, o que sinceramente me deixava invejosa. Mas Fabianny não perdia por esperar.
Lembro de um domingo à tarde em que eu, minha mãe e o meu irmão fizemos uma viagem absolutamente insólita para a “cidade” (na época, o centro era chamado de “cidade”, como se o subúrbio não fizesse parte da capital), onde supostamente passava um ônibus mítico de dois andares, o “Fofão”. A gente esperou um bocado, e até hoje ele não veio. Outro ônibus que esperei em vão, este por uma manhã inteira, foi um fretado que levaria meu grupo de bandeirantes a Salesópolis, como prêmio por termos coletado um número obsceno de assinaturas em prol de uma campanha para despoluir o rio Tietê. Não só desconheço a nascente até hoje, como o supracitado rio permanece sulfuroso. Fabianny não estava presente, e desconfio que ela tenha tido algo a ver com o boicote.
Aos 16 anos, após meia década de experiência com os ônibus urbanos, arrumei um namorado catarinense. Como, naquela época, viagens de avião eram uma impossibilidade econômica para uma estudante de colegial cujas aspirações turísticas mal englobavam a Praia Grande (quando muito), passei os três anos seguintes fazendo viagens de onze horas de duração em linhas de ônibus convencionais com bancos pouquíssimo ou nada reclináveis.
As partidas aconteciam às oito ou dez da noite, e costumávamos chegar em Florianópolis pela manhã. Eu passava a viagem toda acordada, e era geralmente a única, pois quase todos os passageiros entravam direto no quinto estágio do sono assim que o ônibus deixava o terminal e as luzes se apagavam, me fazendo sentir como aqueles personagens de desenho animado que continuam piscando com os olhos bem abertos, mesmo num breu absoluto. Plic, plic.
Eu levava algumas opções de entretenimento a bordo: um toca-fitas portátil com seleções musicais gravadas em cassetes Basf, um monte de livros e muita comida. O farnel era composto de duas ou três unidades de Toddynho, dois sanduíches naturais de frango e quatro bisnaguinhas como sobremesa, sendo duas de geléia e duas de Io-iô Crem, tudo embalado em sacos plásticos de fecho hermético.
Minhas leituras variavam, mas a que me causou maior impressão foi Histórias extraordinárias, contos de terror de Edgar Allan Poe, que li entre duas e seis da manhã, sozinha na última poltrona, com pausas ocasionais para sucumbir a um ataque cardíaco sempre que alguém resolvia levantar e ir ao banheiro.
Foi isso o que ficou das minhas madrugadas passadas num ônibus indo ou vindo de Santa Catarina: o silêncio, a solidão gélida do ar-condicionado, os vidros embaçados, a vergonha de acender a luz e incomodar alguém, o céu estrelado envolvendo curiosas cidades-fantasma – como Massaranduba, onde uma vez vi dois velhinhos sentados lado a lado num banco de praça, às cinco e meia da manhã de um dia glacial. (Achei que estivesse morta.)
Saindo de São Paulo, à noite, tinha uma sensação das mais esquisitas: olhando através da janela em movimento, sentia inveja daqueles que passeavam pela rua, voltando pra casa ou se preparando para ir dançar, sobretudo aos finais de semana, quando eu me via como prisioneira de um não-lugar, habitante de um limbo temporal, a meio caminho entre uma coisa e outra.
Sempre que entro num ônibus, é a sensação que tenho até hoje: de que a vida é uma passagem silenciosa de um lugar para o outro, onde cabem todas as expectativas, ninguém sabe regular o ar-condicionado e o motorista pode pegar no sono a qualquer momento, embalado pelos roncos sinfônicos dos demais companheiros de trajetória. Todo mundo dorme. Não há outros carros na estrada. Mas, se você tiver sorte, haverá alguém à sua espera no desembarque.
Certamente, a melhor crônica envolvendo ônibus já escrita.
Esse texto contém ‘Humor Bobão’ e Sentimentos Aconchegantes. Acho que vou escrever com caneta piloto (sem trocadilho) o último parágrafo nos ônibus aqui do Rio de Janeiro. ;)