Blog da Companhia das Letras
22 de novembro de 2011
Por Vanessa Barbara
(Rachael Morrison em foto de Michael Schmelling)
Em 2010, a norte-americana Rachael Morrison arrumou um emprego como bibliotecária-assistente do MoMA (Museum of Modern Art), de Nova York. Tomada por um irrefreável ímpeto artístico, resolveu aproveitar seu horário de almoço para dedicar-se à performance “Smelling the Books” (Cheirando os livros), que consistia em cheirar todos os volumes da biblioteca.
A peripécia teve início com o primeiro livro da primeira prateleira, conforme a classificação oficial: o AC5.S4, Sermons by artists, e irá terminar com o número ZN3.R45,Bibliography of the history of art. Há 300 mil volumes ao todo e, até o presente momento, ela só cafungou 300. “É uma ideia corajosa”, declarou David Senior, bibliógrafo do MoMA, “pois alguns dos nossos livros cheiram muito mal.”
Rachael tem o cuidado de discriminar cada fragrância num caderno de registros, anotando o número, o título da obra e uma descrição de seu olor. O objetivo dessa exploração farejadora é suscitar uma discussão sobre o futuro da mídia impressa e a relação do olfato com a memória.
Em suas anotações, o livro Collected papers on museum preparation and installation, de 1927, foi imortalizado com uma só frase: “cheiro de sovaco”. Outro volume, de 1967,American folk art in the collection of the Newark Museum, possui “um cheiro nojento de cocô de cachorro”. The civic value of museums evoca o odor de fumaça de cigarro e de chá, e An experiment in museum instruction tem cheiro de chuva de verão e papel velho. Outros aromas catalogados são o de “abraçar a vovó com sua blusa de lã”, o de cola, urina, talco, sótão, fogueira, parte de baixo do sofá, móveis de madeira, cabelo, esmalte, fritura, cera de chão, protetor solar, meia suja e “nenhum”.
Procurada pela reportagem deste blog, Rachael diz que ainda não chegou a conclusões definitivas, mas que, curiosamente, entre os cheiros mais populares estariam o de flores, sovaco, barro e tomilho.
Diz-se que os livros mais antigos têm um peculiar aroma de baunilha devido a um polímero orgânico presente na madeira, a lignina – similar à vanilina. De acordo com o manual Perfumes: um guia de A a Z, de Luca Turin e Tania Sanchez (inédito no Brasil), a lignina é uma substância presente nas árvores, que serve para unir as fibras da celulose à parede vegetal e aumentar sua rigidez, impermeabilidade e resistência. Altamente volátil, o composto seria exalado pelo papel com o passar do tempo e, por ser muito ácido, também o acabaria amarelando e acelerando sua decomposição.
Essa hipótese se aplicaria somente aos papéis provenientes de pastas de madeira mecânica (“groundwood”), processo que emitiria fragrâncias de vanilina, anisol e benzaldeído. Por outro lado, os compostos resinosos derivados de terpeno (mais impermeáveis à tinta) resultariam em fedores mais canforados, gordurentos e amadeirados. Um cheiro de cogumelos estaria associado a álcoois alifáticos bem fortes, e não estou inventando. Os cientistas também consideram que a presença de 2-etil-hexanol pode gerar emulsões levemente florais e que a combinação de etilbenzeno e tolueno dá em aromas mais adocicados.
Do que se conclui, portanto, que o cheiro dos livros se deve aos compostos voláteis emitidos pelos diferentes materiais de que são fabricados, e que não existe um cheiro específico de “livro velho”. Mais de cem compostos diferentes já foram identificados no papel, entre ácidos, aldeídos, álcoois, cetonas, alcano e terpenos. Ainda assim, na busca de uma unanimidade, pesquisadores da Universidade de Londres publicaram um artigo na revista Analytical Chemistry na qual definem o cheiro de livro velho como sendo “uma combinação de notas campestres com um buquê de ácidos e um toque de baunilha sobre uma base de bolor”.
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Segundo enquete no site da Folha de S. Paulo, 81% dos brasileiros gostam de cheirar livros. O hábito é compartilhado até pela presidenta Dilma Rousseff, que, em entrevista à apresentadora Ana Maria Braga, declarou que não basta ler – “tem de pegar o livro, dar uma cheiradinha… Aquele cheiro da página nova”.
O aroma dos livros recém-impressos é de ordem bastante diversa daquela dos antigos e abaunilhados – tem mais a ver com a tinta e a cola do que com o papel. Diante de um exemplar recém-saído da gráfica e trazido pra casa, a primeira coisa que meu pai faz tradicionalmente é abrir o volume, afastar os óculos de leitura e dar uma boa fungada. É esse seu primeiro passo para julgar a qualidade de uma determinada obra – quanto mais fresca, mais promissora. Meu pai é um defensor das vanguardas.
Gordurento ou abaunilhado, empoeirado ou levemente tóxico, há que se valorizar o chorume olfativo dos livros, mas sem protestar contra a ameaça inodora dos e-books. Para combatê-la, é fácil: basta adquirir uma lata de “Cheiro de Livro Novo”, um spray que custa 29 dólares e é compatível com todos os leitores no mercado (menos o Zune). Embora obviamente não exista, o produto vem em sabores variados, como “Mofo Clássico”, “Cheiro de Gato” e “Bacon Crocante”.
Para quem prefere algo mais leve, é possível adquirir uma vela perfumada com o cheiro do New York Times, desenvolvida pelo artista plástico Tobias Wong e vendida por 65 dólares. A vela tem toques de “madeira de guaiaco, cedro e almíscar”, trazendo à memória o aroma “empoeirado e aveludado” do jornal impresso.
Vanessa Barbara tem 29 anos, é jornalista e escritora. Publicou O livro amarelo do terminal (Cosac Naify, 2008, Prêmio Jabuti de Reportagem), O verão do Chibo (Alfaguara, 2008, em parceria com Emilio Fraia) e o infantil Endrigo, o escavador de umbigo (Ed. 34, 2011). É tradutora e preparadora da Companhia das Letras, cronista da Folha de S.Paulo e colaboradora da revista piauí. Ela contribui para o blog com uma coluna mensal.