O número 1 do xadrez perdeu as estribeiras no Parque do Ibirapuera
Revista piauí n. 65
Fevereiro de 2012
por Vanessa Barbara
Havia uma ambulância a postos na tenda principal do 4o Grand Slam de Xadrez, realizado no Parque do Ibirapuera, em São Paulo. Intrigados, corredores e ciclistas das imediações acharam graça – afinal, que tipo de emergência médica poderia acometer aqueles pacatos enxadristas, confinados num cubo de vidro durante três ou quatro horas, olhos pregados no tabuleiro?
Mal sabem eles que o xadrez é um esporte dos mais violentos. Talvez nunca tenham reparado na divisória de madeira que separa as pernas dos oponentes sob a mesa, prevenindo os enxadristas mais exaltados de agraciar seus adversários com pontapés. E decerto não conhecem os inúmeros casos de jogadores que sofreram colapsos nervosos durante as partidas ou enlouqueceram irreversivelmente.
Que o diga o letão Aaron Nimzowitsch. Ao antever uma derrota, ele subiu na mesa e gritou: “Como posso perder para esse idiota?” Ou o polonês Achilles Frydman, que foi parar num sanatório após um torneio particularmente exaustivo. De acordo com um artigo da Chess Digest Magazine, Frydman gostava de deixar a sala para dar telefonemas internacionais e encomendar objetos insólitos, como uma bicicleta alemã ou uma flauta húngara. Durante uma competição na Polônia, correu de cueca pelo hotel, gritando “Fogo!”. Outro caso irremediável é o do austríaco Wilhelm Steinitz, que alegava ter jogado xadrez contra Deus – e vencido.
Era reconfortante, afinal, que uma ambulância estivesse de prontidão para a eventualidade de um ataque de nervos vitimar algum dos enxadristas hospedados em São Paulo. Eram estrelas de primeira grandeza do xadrez, a começar pelo norueguês Magnus Carlsen, número 1 do mundo – um rapaz de 21 anos que guarda semelhança perturbadora com o ator Matt Damon.
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A tenda montada nas proximidades do Planetário abrigou três partidas simultâneas por dia, durante uma semana. Os embates ocorriam dentro de uma sala de vidro com isolamento acústico, onde ficavam os enxadristas e os árbitros. Do lado de fora, o público podia acompanhar as partidas e ouvir o comentário de especialistas ao microfone.
Ao longo da semana, houve também atividades abertas ao público, como torneios simultâneos contra veteranos. Num deles, o grande mestre internacional Gilberto Milos, terceiro lugar no ranking brasileiro, enfrentou 32 jogadores de todas as idades. Ganhou 28 partidas, empatou três e perdeu uma. Quem o derrotou foi um menino franzino de 11 anos chamado Igor Kikuchi Cadilhac, natural de Registro, interior de São Paulo, que aprendeu a jogar xadrez com o vizinho e não tem treinador. Suas participações nos torneios são bancadas pelos amigos, familiares e estabelecimentos registrenses como a Swagat Modas (especializada em roupas indianas), o Mercado Preço Bom, a Pizzaria Beirute e a Esteiras Yoshimoto. Em 2011, Igor sagrou-se campeão paulista na categoria Sub-12.
Perto dele, brincando com uma garrafa d’água e falando sozinha, estava outra jovem promessa do xadrez brasileiro – uma menina chamada Katherine Vescovi, muito magra, pequena e loira, de olhos azuis e jeito de bailarina. Aos 12 anos, é campeã paulista, brasileira e sul-americana. A despeito de sua aparência frágil e angelical, enxadristas veteranos garantem: Katherine joga de forma agressiva e é conhecida por derrotar os adversários de forma impiedosa.
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Contrariando a expectativa, o número 1 do mundo não se saiu muito bem na etapa brasileira do Grand Slam. Quem teve o melhor desempenho foi o ucraniano Vassily Ivanchuk, que ocupava a sétima posição no ranking, com três vitórias, um empate e uma derrota. Chucky, como é chamado, mostra um estilo de jogo imprevisível e inovador, o que o torna um competidor perigoso, porém instável. Sua originalidade não se limita ao tabuleiro: ele costumava fazer aulas de turco e já foi visto bêbado cantando poemas ucranianos, segundo seu próprio colega Viswanathan Anand disse a um jornal indiano.
A zebra correu solta no Ibirapuera na terceira rodada. No mesmo dia em que Ivanchuk bateu o atual campeão Anand, o favorito Magnus Carlsen perdeu para o espanhol Paco Vallejo, então número 28 do mundo, após um lance de rematada tolice. Até ali, o jogo estava favorável para Carlsen, não obstante jogasse com as pretas (no mundo do xadrez, sabe-se que as brancas têm ligeira vantagem no jogo, pois detêm o privilégio de começar a partida). O norueguês passou muito tempo tentando forçar a vitória e chegou inclusive a desperdiçar uma chance. Mas, num apuro de tempo, acabou “pendurando uma peça”, ou seja, cometendo um erro crasso que lhe custou a partida.
O lance fatídico se deu quando Vallejo ameaçou ingenuamente capturar o bispo de Carlsen com o cavalo. Teria sido só uma investida aparvalhada se, na sequência, o norueguês houvesse se esquivado do mensageiro equino da morte como qualquer amador faria ou, melhor ainda, caso tivesse se saído com um contra-ataque sofisticado. Em vez disso, “ele viu duendes”, na avaliação de um popular, e moveu a rainha de forma a deixar seu bispo exposto, pronto para a degola.
Ao perceber o lapso, Carlsen olhou para os lados como se o mundo tivesse caído, empurrou algumas peças, esboçou gestos de irritação para o árbitro e a plateia, e foi tomado pela fúria. Desistiu da partida doze lances depois, enquanto o elegante Vallejo saía de cena com sua garrafinha de Gatorade cítrico. Ao final, não deu autógrafos nem tirou fotos.
O algoz de Carlsen era o lanterna do grupo. Em São Paulo, vinha de duas derrotas consecutivas. Perderia de novo na rodada seguinte, mas nem por isso se deixou abalar. Vallejo foi um dos mais jovens enxadristas a ser sagrado com o título de “Grande Mestre”. Em 2000, após ganhar o mundial Sub-18, tomou a decisão: “Serei jogador profissional, mas não pretendo passar dez horas por dia treinando. Quero aproveitar a vida.” Dali para a frente, sua carreira progrediu mais lentamente, para desgosto dos espanhóis.
Três campeões mundiais julgam que Vallejo possui talento suficiente para estar entre os dez melhores do ranking. Mas ele dispensa esse tipo de ambição. “Isso implicaria estudar e me dedicar mais, e tenho outros interesses na vida”, explicou ao público do Ibirapuera, pouco antes do encerramento do torneio. Sobre o descontrole emocional dos enxadristas diante da derrota, Vallejo aproveitou para rir de si mesmo: “O bom de perder tanto é que a gente se acostuma e passa a encarar tudo com mais tranquilidade. Além disso, há maior mérito em se levantar após uma queda do que em seguir de pé.”
Já Carlsen deu uma entrevista coletiva desolado após perder para o lanterna. Mas manteve a cabeça erguida. “Eu simplesmente pendurei uma peça. Não sei se podemos chamar isso de ilusão de óptica.” Mais tarde, no Twitter, considerou “ultrajante” o fato de ter tido problemas com o tempo e de haver perdido uma posição vantajosa em poucos lances. Acinte mesmo foi o atentado gastronômico do qual ele fora vítima em São Paulo. “Servir pizza sem queijo para clientes desavisados é simplesmente um crime contra a humanidade.”
Esses caras são engraçados. Na ficção policial há grandes e bem humorados enxadristas, como o Sherlock Holmes de Conan Doyle, Phillip Marlowe de Raymond Chandler ou Mandrake de Rubem Fonseca. Sei apenas o básico, ou seja, os movimentos que são permitidos a cada peça do xadrez. Mas acho bem legal essa mistura com a literatura. É um jogo fascinante. E seu artigo comprovou isso, Vanessa.
Abraço.
Algo que mereceu uma crônica no xadrez foi a história de Karpov e Kasparov. Enquanto Karpov sagrou-se campeão após a recusa de Fischer a disputar o confronto, Kasparov foi um campeão incontestável. Mas os dois travaram um duelo interessante, de gerações diferentes, entre o tradicional e o idealista. Kasparov se tornou o campeão mundial por muitos anos, perdendo apenas para um supercomputador, e só foi derrotado por outro ser humano quando começou a se interessar por política. Depois de deixar a carreira, passou a ser um oposicionista do governo de Vladimir Putin e retornou rapidamente ao cenário do xadrez justamente para treinar o jovem Magnus Carlsen.
Antigamente, os jogos (tanto as partidas como os estratagemas psicológicos) eram acompanhados pelos jornais brasileiros, mas os nossos periódicos ainda assim exploraram muito pouco os soturnos personagens do xadrez. A única exceção talvez tenha sido Bobby Fischer, pois foi o maior (anti)herói dos EUA.