Revista piauí – n. 66
Março de 2012
Versão Estendida

por Vanessa Barbara

Aos 37 anos, a paulistana Cris Siqueira tem planos de vida muito específicos: “Eu preciso ter uma Monga”, exclama, bastante séria. De cabelos castanho-claros, voz rouca e tatuagens nos braços, ela foi vocalista da banda punk Go Hopey e usuária assídua da CapsLink BBS, uma rede pré-internet só para aficionados. Graduou-se em cinema pela Faculdade Armando Alvares Penteado (FAAP), onde teve a ideia de produzir um documentário sobre o Globo da Morte. Durante a pesquisa, porém, descobriu que há Globos da Morte por todo o mundo – “na Índia tem alguns com carros” –, e que o filme seria inviável com um orçamento tão baixo. Mas travou contatos no circo brasileiro e começou a se apaixonar pelo tema.

Em 2004, interrompeu o projeto e a banda punk para ir morar em Milwaukee, onde concluiu dois mestrados (em cinema e história) e deu aulas na Universidade de Wisconsin. Queria estudar a história do circo nos Estados Unidos, mas foi demovida da ideia por seus professores. “Os acadêmicos americanos não podem ver uma pessoa não branca que já mandam para estudos étnicos”, brincou. Acabou indo estudar questões de raça nos Estados Unidos e no Brasil.

Foi numa dessas pesquisas de campo que Cris descobriu que existem Mongas nos EUA – o pitoresco truque de vidros em que uma mulher se transforma em macaco e foge da jaula, para desespero do público. Lá é chamada de Zambora, A Mulher-Gorila, e faz parte dos sideshows, pequenos circos itinerantes inspirados nos espetáculos de aberrações. Originalmente eram a atração secundária do circo, com a mulher barbada, o homem de três pernas e as mutações da natureza, além dos chamados working acts – engolidor de espadas, cuspidor de fogo, atirador de facas, faquir. “São coisas que você não precisa passar a vida treinando, como o trapézio – você vai e faz. É só ser meio doido e não se importar com a dor”, explica Cris, que cospe fogo nas horas vagas.

Por essas e outras, os integrantes de um sideshow não precisam vir de uma família circense de terceira ou quarta geração – Cris se define como “geração zero incrível”, termo que ela mesma inventou. “No sideshow, não há esse esnobismo de circo. São todos empreendedores novos. São também os ‘perdidaços’ da vida, os outsiders, que te recebem de braços abertos.”

Intrigada com a origem da Zambora, ela foi pesquisar e pimba: descobriu que a Monga americana vinha do Brasil. “Achei o elo perdido!”, brinca. O número surgiu de uma técnica inglesa de ilusionismo chamada Pepper’s Ghost, que é um truque de vidros criado para transformar uma coisa em outra. “Aí um casal de brasileiros, nos anos 60, foi pros Estados Unidos com um parquinho itinerante e trouxe do Brasil essa ideia”, conta a historiadora-cineasta-punk, que é também fundadora de uma equipe feminina de roller derby, espécie de rugby de patins (sem bola). “Parece que antes eles tentaram com uma mulher que virava pedra, aí não dava certo. Um dia, fizeram a mulher virar um gorila, e o que funcionou mesmo foi ela escapar”.

Tomada por um furor patriótico, Cris decidiu: “Eu preciso ser a Monga. Preciso”. Em 2008, nas férias do mestrado, conheceu um senhor de 80 anos chamado Ward Hall, dono de um sideshow chamado World of Wonders. “Ele tinha uma Monga. A mais vagabunda que você já viu na vida, não tinha nem os vidros, era só uma máquina de fumaça”, ri. Em vez de “garota em gorila”, ele transformava “garota em fumaça”. Com a temporada prestes a começar, Ward e seu sócio, Chris Christ, convidaram a brasileira para se juntar à trupe. Ela aceitou.

Não possuía habilidades circenses e, para piorar, não era exatamente uma moça delicada, loira e magra. “Os adolescentes esperavam uma modelo. Aí vinha eu, que na época pesava uns 110kg, estava gordésima… Então eu já chegava Monga. Já chegava parecendo um gorila”, conta Cris, que emagreceu 40 quilos montando as tendas dos sideshows e hoje aparece nos espetáculos magra e linda com seus vestidos brilhantes, botas de cano alto e uma flor no cabelo.

“Além de tudo, era uma coisa extremamente racista. A moça é loira, clarinha, linda… E aí as narinas dela vão se abrir, a pele dela vai escurecer… E ela vai se transformar neste gorila macho africano, que vai te pegar e acabar com esse país!” Na época, Cris ainda dava aula de estudos étnicos, raça e gênero na universidade. E era Monga para completar o orçamento.

No World of Wonders, além de virar gorila 32 vezes por dia, ela tinha mais duas atribuições profissionais: sentar em cima do coitado que deitava na cama de pregos e atuar como “uma linda mulher com rosto de uma linda mulher e o corpo de uma aranha”. (Basicamente, um display de papelão repleto de fumaça onde ela botava a cara de vez em quando.)

Mas Cris se considera acima de tudo uma documentarista. Primeiro sonho realizado, surgiram outros dois: “Quero montar uma Monga. Uma Monga só minha. E fazer um filme sobre isso”. O projeto, que está na fase de captação de recursos, prevê uma parte histórica, a montagem de uma Monga própria e uma comparação entre as variantes brasileira e americana. “Nos Estados Unidos, a moça não pode ser nem moreninha. Tem que ser bem branquinha, senão causa desconforto racial”, filosofa. No Brasil, só causaria desconforto se ela fosse bem negra, tipo zulu.

O filme pretende traçar um paralelo entre a classe C americana, que está em franca decadência, e a brasileira, em ascensão. Cris percebe no dia-a-dia as consequências da crise: enquanto faz propaganda do sideshow na entrada, fica reparando se as pessoas estão carregando prêmios dos jogos, se gastaram dinheiro com as brincadeiras, se estão levando comida e bebida. “Uma coisa que eu nunca tinha visto na vida: sabe refrigerante grandão de refil? A família compra um só com um canudinho pra todo mundo!”. Em ambos os países, a entrada média da Monga custa o mesmo preço (4 reais e 2 dólares), então a comparação é pertinente.

Outra coisa que Cris descobriu em suas pesquisas de mercado junto aos donos de Monga é que, no Brasil, o grande desafio é fazer o pessoal correr. “É um problema, porque o pessoal não corre. Então você tem que infiltrar na plateia uns populares contratados pra gritar e estimular o povo a correr”. Nos EUA, é o contrário. O público corre demais e é preciso brecar a saída, por exemplo, botando uma curva no túnel. Senão eles caem um em cima do outro e processam os donos do espetáculo. “Aí eu comecei a reparar: as Mongas do Brasil têm uma rampa! É uma beleza: cai todo mundo, perde o chinelo, ninguém está nem aí…”, afirma.

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Em busca do sonho da Monga própria, Cris foi a uma convenção de sideshows em novembro e soube que havia uma Monga à venda por 4 mil dólares em Dalton, uma cidadezinha ao norte de Minnesota. Estava completa (caminhão e tudo) e era original dos anos 80. “Ficava a oito horas de viagem, e eu havia acabado de passar cinco meses morando numa van. Fim de temporada, o veículo estava arrebentado. Era início de inverno, podia nevar a qualquer momento e eu ficaria ilhada. Falei: vou. Vale a pena”, decidiu.

No dia 12 de novembro, um sábado gelado, Cris dirigiu o dia todo, até escurecer. A rodovia interestadual 94 (I-94) é uma estrada grande, com infraestrutura, porém ladeada por cidades minúsculas, sobretudo no último trecho da viagem. Cris planejava passar a noite em Alexandria (“metrópole” de 11 mil habitantes), mas a van começou a fazer um barulho estranho pouco antes de St. Cloud e ela acabou parando num hotel de beira de estrada em Clearwater (população de 1,7 mil). Lembrava de ter trocado os pneus semanas antes e feito uma revisão no meio da temporada com Troy Jones, o mecânico de montanhas-russas, mas ficou apreensiva.

“No dia seguinte, quando fui levar a van para o mecânico, o pneu caiu ali mesmo no estacionamento do hotel. Imagina se isso acontecesse no meio da estrada?”, indaga. Preocupada com o atraso, telefonou para Phyllis Osander, 85, dona da Monga à venda, que resmungou e disse que Cris não era séria (“you’re not legit”). A velhinha aproveitou para agourar a expedição, afirmando estar na estrada há tempo suficiente para saber que ninguém iria ajudá-la numa cidade estranha, no meio do nada. “Tem uma coisa de estar na estrada, esse pessoal é muito duro”, conta Cris. “Dizem que ninguém vai te ajudar nunca, mas eu sou o contrário, sou brasileira, sempre assumo que você dá um jeito, tudo vai dar certo…”

Conforme o previsto, Cris ficou amiga do mecânico local, a quem contou suas peripécias na feira de Minnesota, que tem o maior parque dos EUA (“The Mighty Midway”). Ganhou até um desconto.

Então venceu os últimos quilômetros e foi ao encontro da Monga de sua vida, que vinha com uma tenda e um conjunto completo de seis banners pintados à mão. Na bilheteria, a inscrição: “Was Darwin right?” [Darwin estava certo?] e a propaganda da mulher-macaco, “capturada nos desertos de Nairobi”. O pacote de 4 mil dólares incluía o caminhão (sem rodas), a caixa, os vidros, as luzes, os postes para montagem da tenda e uma fantasia podre de gorila. O sistema de armazenamento e transporte do material era bem sacado e prático, e os vidros rodavam num trilho bem razoável.

Por azar, ela não tinha dinheiro para comprar a Monga. Além disso, achou que o material estava em péssimas condições de conservação e precisaria de uma reforma praticamente do zero. “Tudo velho, enferrujado, mal cuidado. Mas vi pela primeira vez a Monga que eu quero ter.”

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A segunda road trip do projeto aconteceu no Nordeste do Brasil. Dessa vez, Cris não pretendia comprar o material, mas encontrar uma Monga que representasse o país no filme. Passou sete horas rodando por estradinhas esburacadas, de duas mãos, com desvios inacreditáveis, um deles “sinalizado” por um tronco no meio da estrada – este passava pelo meio de uma favela. “Vi até carcaça de boi no caminho. Se a roda do carro tivesse caído nessa viagem ia ter carcaça de Cris no sertão, porque eu passei no meio do nada mesmo…”, narra.

Finalmente, em Parelhas, no Rio Grande do Norte, encontrou o “Castelo da Monga”, também chamado de “A Monga mais bonita do Nordeste”. Após a visita, Cris concordou com o epíteto: “Fiquei super impressionada e quero muito fazer o filme com eles. Os caras são batalhadores, herdeiros de uma tradição”. A trupe é comandada pelo Paulo da Monga (pai) e Paulinho da Monga (filho), de Campina Grande, na Paraíba. O sogro é o Zezé da Monga, que tem Monga há 40 anos. “Eles são inovadores também, aproximaram a atração do universo de terror para atrair o público e reformaram o ônibus recentemente”, analisa a cineasta-punk-patinadora-e-cuspidora-de-fogo.

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Hoje Cris Siqueira trabalha para o Jim Zajicek’s Big Circus Sideshow, que tem como atrações uma tartaruga albina, um touro de seis patas, um anão malvado e Eartl & Myrtle, a tartaruga de duas cabeças. Todos os anos, no verão americano, ela sai em turnê. Em 2011, apresentou-se em Louisiana, Texas, Pensylvania, New Jersey, Maryland e Ohio. Com seus dois mestrados e uma experiência de vida quase que totalmente urbana, ela escolheu morar numa van e tomar banho em postos de gasolina na estrada. “É uma vida desconfortável, de trabalho braçal”, admite. Mas Cris adora. “Entender o resto do mundo tem sido bem interessante.”

De vez em quando, ela cospe fogo profissionalmente para atrair o público, mas diz que é péssima nisso. “Eu queimo a boca inteira, não consigo engolir, tenho que tentar várias vezes… E às vezes bate um vento na cara…” Sua especialidade no sideshow é de captar a audiência, discursando num microfone com uma cobra ao redor do pescoço. De pé, ela faz truques de mágica e usa frases clássicas do circo de horrores. “Aberrações, monstros e mulheres estraaaaanhas!”, anuncia, ao lado da colega engolidora de espadas, Diane Falk, que assina as fotos desta matéria. “Nós somos as mulheres estranhas. Boa noite!”


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  1. Jackelinefelixfernandes disse:

    parabéns pelo belo trabalho e pesquiza sobre amonga