Blog da Companhia das Letras
03 de abril de 2012
por Vanessa Barbara
“E se amanhã eu acordar e não for mais eu mesmo,
mas um besouro vira-bosta?” (Andrew Solomon)
Muitas vezes, ler sobre desequilíbrios, insânias e extravagâncias pode ser uma grande fonte de alívio para quem, como eu, tem medo de um dia acordar besouro. É terapêutico saber que há casos piores que o nosso, como o de Oliver Sanderson, que há mais de trinta anos pensa que é uma laranja, ou Phineas P. Gage, um operário de ferrovias que, após uma explosão, teve o crânio trespassado por uma barra de ferro de 6 kg. O comprido artefato entrou pela bochecha esquerda do rapaz, projetou seu globo ocular para fora, perfurou o lobo frontal e saiu pelo topo da cabeça. Ao dar entrada no hospital, caminhando, ele comentou ao médico: “Doutor, isso aqui vai dar um trabalhão”.
Além de catártica, esse tipo de leitura pode estabelecer uma conexão com outros mundos (autismo, esquizofrenia, depressão), do qual podemos sair a qualquer momento simplesmente desligando o abajur.
A seguir, uma lista das minhas leituras psiquiátricas preferidas (elaborada após o pedido de um Top 5 para o blog Meia Palavra). Lacunas imperdoáveis podem ser atribuídas a um lapso de memória e não devem ser consideradas sintomas. Para a infelicidade dos que sofrem de TOC, a lista não segue nenhuma ordem.
1) O demônio do meio-dia, de Andrew Solomon, ed. Objetiva. Melhor estudo sobre depressão já publicado. Com um estilo literário apurado, o jornalista expõe seu vínculo pessoal com a doença e faz uma investigação de sua incidência, manifestação, sintomas e tratamentos. É um mundo cinzento onde chove o tempo todo e até as estruturas mais fortes podem ser tomadas pela ferrugem. “Viver com depressão é como tentar manter o equilíbrio enquanto dança com um bode”, define.
O repórter da revista The New Yorker explica que a depressão começa do insípido, enevoa os dias num tom sépia e enfraquece ações ordinárias até que suas formas claras sejam obscurecidas pelo esforço que exigem, nos deixando cansados, entediados e obcecados em nós mesmos. Há uma bela passagem sobre a dificuldade que ele tem para se levantar da cama e ir tomar banho, antecipando cada passo e por fim desistindo da tarefa: “No mundo inteiro as pessoas tomam banho. Por que eu não podia ser uma delas?”.
Seu relato oscila magistralmente entre o registro jornalístico e o pessoal. A pesquisa durou cinco anos e é bem precisa em suas metáforas e definições: na depressão, o ar parece espesso e resistente, como que cheio de massa de pão. Tudo o que foi rápido é agora lento. A depressão, enfim, é a ausência de sentido vital de propósito e o embotamento de sensações — felicidade, tristeza, senso de humor e capacidade de amar.
A superação da doença é às vezes descrita com a simplicidade de quem decide sair para comprar um par de meias. Para alguns dos personagens deste livro, a salvação foi “fazer coisas com fios”, descascar pepinos, aprender sapateado e forçar-se a seguir em frente. “Pessoas que atravessaram uma depressão e estão estabilizadas frequentemente têm uma aguda consciência da alegria da existência cotidiana. Mostram-se capazes de uma espécie de êxtase imediato e de uma intensa apreciação por tudo que é bom em suas vidas. […] Podem desenvolver uma profundidade moral que é um troféu no fundo de sua caixa de tristezas”, diz.
2) Um antropólogo em Marte: Sete histórias paradoxais, de Oliver Sacks, ed. Companhia das Letras. O renomado neurologista e escritor descreve alguns casos curiosos que encontrou durante a prática clínica: um pintor que enxerga tudo em preto e branco, um cirurgião com síndrome de Tourette, um massagista cego que recupera a visão.
Autor de onze livros, Sacks descreve em detalhes o histórico de vida dos pacientes. Seu estilo literário aproxima-se das chamadas “anedotas clínicas” do século XIX, com especial influência do neuropsicólogo A. R. Luria, frequentemente citado em seus artigos.
Um dos pontos altos da obra é a constatação de que as deficiências, distúrbios e doenças podem ter um papel paradoxal na vida das pessoas, revelando poderes latentes que talvez nunca fossem vistos na ausência desses males. Em Um antropólogo em Marte, o tema central é justamente o potencial criativo das doenças. Se, por um lado, os distúrbios de desenvolvimento destroem caminhos preciosos no cérebro, podem, por outro, forçar o sistema nervoso a buscar alternativas, levando-o a um inesperado crescimento ou evolução.
O próprio Sacks é portador de algumas afecções esquisitas: tem prosopagnosia congênita, que é a incapacidade de identificar rostos — inclusive o dele mesmo. Há dois anos, perdeu a visão estereoscópica (tridimensional) devido a um tumor maligno na retina, e não enxerga mais em profundidade. Em O olhar da mente, ele conta sua dificuldade de subir escadas, atravessar a rua e caminhar sem tropeçar ou trombar nos outros.
Outros grandes livros de Sacks são: Tempo de despertar (que deu origem ao filme),Alucinações musicais e O homem que confundiu sua mulher com um chapéu.
3) O segredo de Joe Gould, de Joseph Mitchell, ed. Companhia das Letras. Escrito por um dos maiores jornalistas da New Yorker, é o perfil de um mendigo excêntrico que pretende escrever a história oral do nosso tempo, um livro doze vezes maior do que a Bíblia. Gould era conhecido por falar com gaivotas e despejar na comida frascos inteiros de ketchup. Caótica e ambiciosa, sua obra possuía longos capítulos ensaísticos que tratavam de temas como a influência do tomate na vida da sociedade contemporânea, além de trechos narrativos, fartamente carregados de digressões, nos quais Gould reproduzia conversas ouvidas ao acaso.
“Trata-se, talvez, da obra inédita mais longa que existe: a História Oral e as notas ocupam 270 cadernos de linguagem, desses que as crianças usam na escola, todos rasgados, imundos, manchados de café, gordura e cerveja. Gould usa caneta-tinteiro e enche os dois lados de cada folha, sem deixar margem alguma, tem péssima caligrafia, e centenas de milhares de palavras são legíveis só para ele mesmo. Nenhum editor se interessou pelo trabalho.”
4) “O alienista”, de Machado de Assis, in: Papéis Avulsos, ed. Penguin-Companhia das Letras. Conto clássico sobre um médico que decide enveredar pelo campo da psiquiatria, abre um sanatório e se dedica ao estudo da loucura. “De todas as vilas e arraiais vizinhos afluíam loucos. Eram furiosos, eram mansos, eram monomaníacos, era toda a família dos deserdados de espírito.” Com o passar das páginas, sua definição de loucura se torna ligeiramente mais abrangente.
“Não imaginava a existência de tantos doidos no mundo, e menos ainda o inexplicável de alguns casos. Um, por exemplo, um rapaz bronco e vilão, que todos os dias, depois do almoço fazia regularmente um discurso acadêmico, ornado de tropos, de antíteses, de apóstrofes, com seus recamos de grego e latim, e suas borlas de Cícero, Apuléio e Tertuliano. O vigário não queria acabar de crer. Quê! Um rapaz que ele vira, três meses antes, jogando peteca na rua!” Esse era provavelmente um genuíno Louco de Palestra.
Entre os meus preferidos estão um rapaz que se supunha estrela-d’alva, abria os braços e alargava as pernas, para dar-lhes certa feição de raios, “e ficava assim horas esquecidas a perguntar se o sol já tinha saído para ele recolher-se”. Outro era um fazendeiro de Minas cuja mania era distribuir boiadas a toda gente: dava trezentas cabeças a um, seiscentas a outro, e não acabava mais. “Não falo dos casos de monomania religiosa; apenas citarei um sujeito que, chamando-se João de Deus, dizia agora ser o deus João, e prometia o reino dos céus a quem o adorasse”. Também destaco o licenciado Garcia, que não falava nada pois acreditava que, no dia em que chegasse a proferir uma só palavra, “todas as estrelas se desapegariam do céu e abrasariam a terra”.
5) Bem que eu queria ir, de Allen Shawn, ed. Companhia das Letras. Bela obra de referência para os fóbicos. O autor confessa ter medo de altura, água, campos abertos, estacionamentos, túneis, elevadores, metrôs, pontes e estradas desconhecidas. Sua agorafobia serve de base para uma investigação mais ampla sobre as fobias e a psicologia do medo. O grande mérito deste livro é que, à maneira de Oliver Sacks, acaba expondo a relação direta entre nossas fraquezas e aquilo que somos. Referindo-se ao pai (o lendário editor William Shawn), o autor diz: “O paradoxo é que, sem suas fobias, ele não teria chegado aonde chegou. Podia muito bem ter chegado a outros lugares; que possivelmente poderiam lhe ser mais compensadores, mas não lá, onde se revelou tão competente.”
Shawn explica que o conceito de fobia abrange todo um elenco de temores sociais, que podem ir da especificidade (ficar trancado em um armário de lavanderia) à generalização (todo confinamento de qualquer espécie), mas podem também permanecer notavelmente individualizados. “Recentemente li a respeito de um tenista que tinha medo de coisas felpudas e, portanto, usava luvas quando jogava; de certa pessoa que evitava todos os objetos marrons e não conseguia caminhar na direção de nada que fosse dessa cor; de uma mulher que tinha uma severa fobia de coxas de galinha. Sempre que a convidavam para uma festa, ela precisava ligar e perguntar: ‘Vocês não vão servir coxas de galinha, não é?’.”
Há fobias que se assemelham simplesmente a um medo de estar neste planeta: o medo da luz (fotofobia), do ar (aerofobia). E, para cúmulo da ciclicidade, há o medo de adquirir fobia (fobofobia).
6) O autor mente muito, de Carlos Sussekind e Francisco Daudt, ed. Dantes. Todos os livros do escritor carioca são notáveis (o melhor é Armadilha para Lamartine), mas este é especial por ter sido escrito em parceria com seu psiquiatra. Carlos, um dos senhores mais doces e divertidos deste mundo, tratou-se durante anos e foi dado como incapaz de distinguir entre ficção e realidade. “Diante de tal imprevisto, e para que não se desperdiçasse o caudal de fantasias desenfreadas que o paciente liberou sem retorno terapêutico no consultório do dr. Daudt, resolveu a dupla associar-se numa aventura literária — desistindo da cura em favor da diversão.” Isso está no capítulo “A verdadeira história deste livro”.
Leitura complementar: Entrevista com Carlos Sussekind.
7) Querido Scott, Querida Zelda, ed. Companhia das Letras. Por último, este livro lindo e melancólico que me deixou verdadeiramente impressionada. O que mais chama a atenção nesta coletânea de cartas trocadas entre Scott e Zelda Fitzgerald é a vida triste que ambos levaram, a evolução da doença de Zelda e o modo como ela lidava com seu estado nas cartas. A escritora foi diagnosticada como esquizofrênica e internada em diversas instituições. Era imensamente infeliz, mas em sua correspondência deixa transparecer um talento profundo e até mesmo um senso de humor admirável.
“Querido: A vida é difícil. São tantos os problemas. 1) O problema de como permanecer aqui e 2) O problema de como sair daqui. E eu quero tanto ir à Guatemala e andar de bicicleta até o fim de uma longa estrada branca. Uma estrada margeada por cedros-do-líbano e choupos, com esplendores antiquíssimos se desfazendo na encosta dos morros esturricados de sol e nativos dormindo à sombra, junto a um enorme muro cinzento.”
Visível nas entrelinhas das cartas, a história de ambos é de partir o coração. Por muito tempo, Scott lutou contra o alcoolismo e Zelda jamais se recuperou de sua doença. Há uma missiva datada de setembro de 1930 em que ela faz um balanço de seu relacionamento; é amarga e catastrófica, mas linda de dar nó. Ainda que separados, eram obcecados um pelo outro: “Eu o amo tanto e estar sem você é como ter saído e deixado o gás aceso, ou largado o bebê no cesto de roupa suja”, ela diz, no hospital. “Mas vou vê-lo em breve, e a chuva martela do lado de fora da janela, achata as árvores encharcadas, sobrecarrega o cascalho do passeio e eu torço para que a terra encolha com toda essa molhadeira, assim você ficará mais perto.”
* * * * *
Vanessa Barbara tem 29 anos, é jornalista e escritora. Publicou O livro amarelo do terminal (Cosac Naify, 2008, Prêmio Jabuti de Reportagem), O verão do Chibo (Alfaguara, 2008, em parceria com Emilio Fraia) e o infantil Endrigo, o escavador de umbigo (Ed. 34, 2011). É tradutora e preparadora da Companhia das Letras, cronista da Folha de S.Paulo e colaboradora da revista piauí. Ela contribui para o blog com uma coluna mensal.
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Prezada Vanessa,
Se você quiser uma leitura, no mínimo, divertida sobre saúde mental, recomendo enfaticamente que conheça as novidades do DSM-V. Se fosse um manual de diagnóstico brasileiro, eu diria que é uma cópia sem graça de O Alienista, mas é pouco provável que os estadunidenses tenham se inspirado em Machado de Assis. Sua lista ficou muito boa, mas eu, de forma alguma, deixaria Dom Quixote de fora.
Prezada Vanessa,
Se você quiser uma leitura, no mínimo, divertida sobre saúde mental, recomendo enfaticamente que conheça as novidades do DSM-V. Se fosse um manual de diagnóstico brasileiro, eu diria que é uma cópia sem graça de O Alienista, mas é pouco provável que os estadunidenses tenham se inspirado em Machado de Assis. Sua lista ficou muito boa, mas eu, de forma alguma, deixaria Dom Quixote de fora.