Blog da Companhia das Letras
5 de junho de 2012

por Vanessa Barbara

Numa coluna anterior, comentamos sobre os benefícios do feijão para a saúde de nossas leituras cotidianas, pois que serve de apoio de página enquanto estamos comendo ou lixando as unhas. Falamos do leitoril, este valoroso objeto que mantém as páginas abertas sobre uma superfície lisa e iluminada, facilitando a fruição dos romances mais volumosos.

Não falamos, porém, de como fazer para ler na cama num dia de inverno, quando só o que você quer é passar a noite ronronando debaixo de quatro mantinhas de lã, de preferência na companhia de algum clássico francês.

O elemento central de uma boa leitura na horizontal é o abajur. Não há nada mais determinante do que o estilo e a intensidade luminosa do mesmo — talvez a qualidade do livro, diriam os mais ortodoxos —, e meu sonho sempre foi ter uma modesta (porém significativa) coleção de abajures nos mais diversos formatos, quilowatts, cores, materiais. O sueco Stieg Larsson, por exemplo, é um autor de luzes fortes e vermelhas. Stendhal e Flaubert requerem uma claridade mortiça, amarelada, em tons amadeirados. Os russos a gente lê à luz de velas quando acaba a eletricidade na rua, e Edgar Allan Poe se beneficiaria de um abajur com defeito, que vai falhando e definhando conforme as páginas avançam, até que, lá pelo fim, você não o esteja mais lendo, e sim imaginando. Luz focada de ônibus é para ler aventuras, diários de viagem e expedições com piratas, cerimônias pagãs e escorbuto.

Acionado o abajur, porém, pouco nos resta senão soterrar-se debaixo do edredom e esperar sair de lá vivo.

E qual a posição ideal para ler na cama? De barriga para cima, o mundo parece perfeito até que seus braços e ombros começam a sentir o peso da gravidade. Então você vira de lado, suponhamos, o esquerdo, e prossegue sua leitura da página 77, julgando assim ter encontrado um estado de coisas assaz satisfatório. A página 78, contudo, traz uma inverossímil reviravolta na trama e uma dificuldade: ela se localiza na parte inicial do grosso livro, que você mal começou. Como equilibrar a página 78 aberta quando se está deitado sobre o flanco corporal esquerdo, sendo esta uma folha par e o lado direito do livro, essencialmente ímpar?

A solução, claro, é rolar para o outro lado, mas a satisfação só dura até avançarmos para a folha ímpar novamente. É hora de rolar de volta, e algum leitor agora pode alegar: nós somos intelectuais, não nascemos para competir na corrida do queijo, de modo que, exauridos pelo rolamento infinito, atolamos de barriga e cedemos à controversa posição de bruços. (Nota: pesquisar o que vem a ser etimologicamente um bruço.)

Ler de bruços é confortável apenas nos primeiros três parágrafos — sim, a bruçalidade é assim fugaz e não compensa, embora seja quase impossível resistir-lhe. Finda a primeira oração subordinada substantiva reduzida do infinitivo, o leitor deve escolher entre a fisioterapia e o pilates, pois que a cervicalgia virá — e virá com todas as forças, pinçando os seus nervos e abrindo terreno para a hérnia discal. Por outro lado, ler de bruços é até considerado uma posição de ioga, só que sem o livro.

Engenhocas como a que ilustra este post podem ser uma solução. O Salonpas Linimento e o Profenid têm se mostrado boas opções paliativas. Uma alternativa muito apreciada é ler com as pernas para o alto, apoiadas na cabeceira da cama ou numa parede, de modo a encaixar o livro na barriga e nas coxas, favorecendo ao mesmo tempo a circulação sanguínea e o alongamento da região dorsal, feito um pilates literário. Na foto abaixo, Paul Newman se rende à prática. Manter a posição até a página 120 com respiração abdominal alternada, descansar e repetir a operação por mais cinco capítulos.

p.s.: Segundo o Dicionário Etimológico Silveira Bueno, bruço — “Tovar explica a expressão por um cruzamento árabe-basco: bus (ar.), beijo; buruz (basco), cabeça. O mais difícil é explicar como é que o árabe se foi cruzar com o basco e como este entrou para o português. Além do que, na loc. “De bruço” não há, nem por milagre, a ideia de beijo, a não ser um beijo dado na terra… Melhor é dizer que até o momento ainda não se conhece o verdadeiro étimo dessa palavra”.


Vanessa Barbara tem 29 anos, é jornalista e escritora. Publicou O livro amarelo do terminal (Cosac Naify, 2008, Prêmio Jabuti de Reportagem), O verão do Chibo (Alfaguara, 2008, em parceria com Emilio Fraia) e o infantil Endrigo, o escavador de umbigo (Ed. 34, 2011). É tradutora e preparadora da Companhia das Letras, cronista da Folha de S.Paulo e colaboradora da revista piauí. Ela contribui para o blog com uma coluna mensal.
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