Os inventores da gravata e sua marcha nonsense pelas atrações turísticas da capital croata

Folha de S.Paulo – Turismo
21 de junho de 2012

por Vanessa Barbara

Há dois anos, em julho de 2010, o Comitê de Turismo de Zagreb criou uma nova atração: a Troca da Guarda, que acontece todos os fins de semana das 11h40 às 14h20.

É um ritual interminável e de difícil compreensão em que meia dúzia de soldados de infantaria marcha pelo centro da cidade, em círculos, com seus tradicionais trajes azul-marinho, chapéus murchos e um lenço vermelho no pescoço, enquanto quatro homens a cavalo (a cavalaria) fazem o mesmo por outra rota. De vez em quando eles se encontram, ensaiam umas mesuras, deixam guardas pelo caminho e voltam pra fazer tudo de novo e de novo.

A cerimônia dura duas horas e cobre uma pequena área de cinco quarteirões. De forma confusa, os batalhões sobem e descem as mesmas ruas, fazem paradas estratégicas para executar inspeções, descansam em degraus, se separam e se cruzam. Aqui e ali, dão ordens uns aos outros e saúdam a bandeira aos gritos de: “Pela cruz honorável e pela liberdade de ouro!”.

Os turistas tentam acompanhar pelas brochuras, desdobrando-as e consultando o relógio, mas é preciso ter um doutorado em exploração de mapas para descobrir exatamente o que está havendo. Para quem não entende o idioma, a impressão é de que eles gritam coisas como: “Guardas! Vamos invadir a Prússia”, e alguém responde: “Mas, senhor! A Prússia não existe”. Inúmeras teorias surgem enquanto os soldados vão e vêm, andando sempre em ângulos retos – nunca em diagonal –, como personagens de um videogame.

A cerimônia é uma homenagem à cavalaria croata, que, no século XVII, durante a Guerra dos Trinta Anos, engrossou as fileiras do exército da França. “A desenvoltura militar e aparência singular dos soldados croatas afirmaram-se em 1664 com a fundação do Régiment des Cravates du Roi dentro do exército francês”, diz o folheto. Os forasteiros usavam echarpes de tecido para identificar os postos militares, o que foi copiado pelos oficiais franceses e adotado pela corte de Versalhes, de onde se espalhou pelo mundo. Assim surgiu a gravata ou cravat – que significa “croata”.

O folheto sugere: “Marche por Zagreb acompanhado do comandante do batalhão, um armeiro, um trombeteiro, um tocador de tambor e um porta-estandarte, e conheça as atrações da cidade de uma forma diferente”.

PASSO A PASSO

 

O evento começa às 11h40 em dois lugares ao mesmo tempo: a infantaria parte do quartel-general na praça do Mercado Dolac, em meio a barracas de flores e lembrancinhas quadriculadas, e segue ladeira acima pela Tkalčićeva, uma viela de paralelepípedos com ares medievais. No Kamenita vrata, um portal de pedra do século XIII, eles se alinham para uma oração e ficam a postos. A gruta é um conhecido local de devoção por exibir uma pintura da Virgem que se salvou de um incêndio em 1731, e é onde fiéis acendem velas e rezam.

Enquanto isso, o batalhão da cavalaria trota pela rua Dubravkin, num longo percurso até o santuário. São 11h55 quando ambos se encontram pela primeira vez.

Ao meio-dia, o canhão da torre Lotrščak dispara, numa tradição obscura que remonta a 1877 – a versão mais difundida da lenda conta que o tiro do canhão atingiu um prato de frango carregado por um soldado turco, e por isso a Turquia desistiu de atacar Zagreb, mas, na verdade, as causas do disparo comemorativo diário continuam sem explicação satisfatória.

Teoricamente nesse horário – a cerimônia não é pontual, dificultando ainda mais a localização dos turistas –, o regimento militar chega à praça São Marcos, forma uma só coluna e saúda a audiência. Em seguida, há um peculiar ritual de inspeção das armas. Dois soldados são estacionados na entrada da igreja São Marcos, um dos cartões-postais da cidade, que possui um telhado de azulejos pintados com os brasões do antigo reino da Croácia e da capital Zagreb.

Mais tarde, outros dois homens tomam guarda diante da estátua de Ban Josip Jelačić, conhecida por ser um ponto de encontro dos locais – “debaixo do rabo do cavalo” já se tornou uma referência geográfica. Conta-se que, de início, o monumento estava voltado na direção norte, com o general croata brandindo a espada ameaçadoramente em direção à Hungria. Foi removido em 1947 pelo marechal Tito e devolvido em 1990 ao seu lugar histórico, só que virado para o lado contrário. Ninguém sabe por quê: uns dizem que é para ameaçar a Sérvia, outros argumentam que ficava feio ter uma estátua com o rabo voltado para a praça.

O grupo perde ainda mais elementos ao passar pela estátua de Nossa Senhora no Kaptol.

A essa altura, há poucos soldados restantes. Dos espectadores iniciais, quase nenhum conseguiu acompanhar a cerimônia inteira, que em certos momentos acelerou o ritmo e dividiu os batalhões, para a exaustão do público, que optou pela deserção militar em prol de uma cerveja Karlovačko ou de um bom café.

É perante um desdém generalizado, portanto, que os bravos croatas de gravatas seguem marchando – lá vêm eles de novo – e recolhendo seus companheiros, um a um, numa troca mecânica de rituais e continências que se estende até bem depois das duas da tarde. 


Links

http://www1.folha.uol.com.br/turismo/1107658-em-zagreb-troca-da-guarda-confunde-turista.shtml
http://www1.folha.uol.com.br/turismo/1107681-militares-se-encontram-para-saudar-audiencia-em-zagreb.shtml

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