Nuvem preta e expectativa internacional na madrugada em Montmartre

Revista piauí – n. 70
Julho de 2012

por Vanessa Barbara

Às cinco e quinze da manhã de uma quarta-feira, o advogado austríaco Alexander Soucek, de 34 anos, abriu a janela de seu quarto em Paris. Em meio a nuvens carregadas e um cenário predominantemente nublado, olhou para o leste e viu uma faixa mirrada de céu azul, junto ao horizonte. Não teve dúvidas: vestiu uma jaqueta e foi para a rua.

Era 6 de junho de 2012, dia do aguardado trânsito de Vênus – uma ocasião astronômica raríssima em que a silhueta do planeta pode ser observada da Terra, a olho nu, passando diante do Sol. No Brasil, o fenômeno foi visível apenas em certas cidades no Acre e Amazonas, e só por alguns minutos, mas, na Europa, os astrônomos aguardavam um espetáculo mais duradouro.

Em Paris, o trânsito estava agendado para começar às 5h50, com o nascer do Sol, e terminar às 6h55, após o último contato de Vênus com o disco solar. Às 5h22, Alexander saiu de casa e caminhou até a estação Javel – André Citroën, onde aguardou o primeiro metrô do dia. Cruzou o rio Sena em direção a Montmartre, um dos pontos mais altos da cidade, de onde provavelmente teria um bom horizonte leste.

Enquanto o austríaco subia a escadaria rumo ao topo da colina de Montmartre, o francês Didier Bensaid já estava lá em cima, vagando pelos arredores da Basílica de Sacré-Coeur. Tudo parecia deserto naquele horário, mas, reparando bem, havia um sujeito vagando de um lado para o outro, o olhar fixo num ponto distante, e outro francamente suspeito, que largou a mochila na esquina e se pôs a montar um tripé de fotografia voltado para o nada. “Impressão minha ou eles também…?”, pensou Didier. Um grupo de varredores cruzou a ruazinha na encosta da Sacré-Coeur, rumo ao trabalho, e estranhou a movimentação.

Os trânsitos de Vênus estão entre os eventos mais raros da literatura astronômica. Eles ocorrem em pares separados entre si por oito anos de diferença, mas, depois disso, demoram aproximadamente um século para se repetirem.

O último par de trânsitos se deu em 8 de junho de 2004 (observado parcialmente do Brasil) e em 5-6 de junho de 2012, visto em sua totalidade no Havaí, Alasca, leste da Austrália, Japão e Coréia. Antes disso, houve um par de trânsitos em dezembro de 1874 e dezembro de 1882. O próximo, só daqui a 105,5 anos.

O fenômeno tem sido historicamente importante para estimar o tamanho do nosso Sistema Solar. As observações de 1639, com a ajuda dos cálculos de paralaxe, ajudaram a determinar a distância entre o Sol e a Terra. O de 2012 foi uma boa ocasião para os pesquisadores de exoplanetas, que pretendem utilizar as informações coletadas durante o trânsito de Vênus para desvendar a composição da atmosfera de outros astros durante eventos similares.

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Mãos nos bolsos, Didier Bensaid, analista de investimentos do banco francês Société Générale, avistou meia dúzia de populares sentados numa colina gramada, de acesso proibido. Quase sem tirar os olhos do céu, resolveu pular a cerca e se juntar à turma, pondo em risco sua fama de cidadão cumpridor das leis. “Vocês também estão aqui para o trânsito?”, perguntou, ajeitando a boina e sacando a câmera fotográfica. Eram 5h45 da manhã. A grama estava molhada, de modo que Didier, o único homem de gravata, preferiu não se sentar. Alguém apareceu com a última edição da Astronomie Magazine e com uns óculos de observação para eclipses solares, e o francês assumiu o comando do grupo.

Foi o austríaco que os batizou de “Os Seis Aleatórios”, encontrando logo ao chegar um jovem casal franco-americano, dois brasileiros, um rapaz de moletom, uma senhora local e o compenetrado executivo francês. (Eram mais de seis, mas isso pouco importa.) Aquele parecia o melhor posto de observação do horizonte leste em Montmartre, embora corressem boatos de que havia um outro grupo para além da colina. “Esses devem estar vendo outra coisa”, brincou Didier.

Alexander trouxe de casa uma folha impressa com uma foto do trânsito de 2004, observado de Bordeaux, e contou que trabalhava com legislação espacial para a Agência Espacial Européia (ESA), tendo acabado de retornar de seu posto na Itália.

Já eram quase 6 da manhã e teoricamente o Sol já devia ter nascido. Acima da silhueta dos prédios e abaixo das nuvens pretas, uma faixa dourada surgia. Superando por um instante o típico catastrofismo francês, Didier intuiu que o disco solar devia estar oculto atrás dos edifícios e logo despontaria no céu, junto com a sombra de Vênus.

Numa mistura de francês e inglês, o grupo aproveitou os minutos de otimismo para instruir o rapaz de moletom, que havia acabado de sair de uma festa e não sabia bem o que se passava no Cosmos. Embora Vênus se interponha entre a Terra e o Sol todos os anos com tediosa regularidade, a marcha diante do disco é rara devido à diferença de eixos das órbitas entre os planetas. Em geral, Vênus passa logo acima ou abaixo do Sol. 

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Às 6h16, o brilho ficou mais forte, mas nada de disco solar. Agourento, alguém mencionou a expedição francesa de 1761, muito similar à nossa em termos tragicômicos – falou-se sobretudo de Guillaume Le Gentil, que saiu de Paris em março de 1760 para acompanhar o trânsito de Vênus em Pondicherry, colônia francesa na Índia. O obstinado astrônomo chegou à ilha de Mauritius em julho, mas, nesse meio tempo, a França declarou guerra contra a Inglaterra e não havia jeito de seguir viagem para o leste. Só em março do ano seguinte ele conseguiu embarcar numa fragata em direção à Índia e, apesar de faltarem poucos meses para o fenômeno, programado para o dia 6 de junho, calculou que chegaria a tempo.

O navio foi desviado de sua rota por uma tormenta e passou cinco semanas à deriva. Quando enfim se aproximava de Mahé, na Índia, o capitão recebeu a notícia de que a Inglaterra havia tomado Pondicherry, e, portanto, seria preciso navegar de volta a Mauritius. Foi o que fizeram. No propalado dia do trânsito, o céu estava limpo, mas Le Gentil não pôde fazer suas medições porque estava em alto-mar e o navio balouçava em excesso.

Como já chegara até ali, achou que fazia sentido aguardar o trânsito seguinte, dali a oito anos, em 1769. Enquanto isso, faria “todas as observações possíveis em geografia, história natural, física, astronomia, navegação, ventos e marés”, conforme anotou em seu diário. Viajou pela costa de Madagascar e decidiu que observaria o fenômeno de Manila, nas Filipinas. Ao aportar na cidade, deparou-se com uma incômoda hostilidade das autoridades espanholas. Em março de 1768, Le Gentil decidiu embarcar num navio português e retornar a Pondicherry, que havia sido devolvida à França alguns anos antes. Lá foi recebido com pompa e ganhou um terreno para construir um pequeno observatório, onde aguardou pacientemente.

Conforme a data se aproximava, sucediam-se belas manhãs de céu claro e previsão irretocável. Na véspera, Le Gentil brindou o governador de Pondicherry com uma série de observações do planeta Júpiter. O dia 4 de junho de 1769, por fim, amanheceu nublado e o astrônomo não enxergou nada. “Senti-me amaldiçoado e me atirei à cama, sem conseguir fechar os olhos”, relembrou. Uma inexplicável tormenta obscureceu o céu durante todo o decorrer do trânsito. Imediatamente em seguida, o tempo abriu e o Sol brilhou pelo resto do dia.

“É essa a sina que às vezes acomete os astrônomos”, desabafou Le Gentil. “Percorri mais de dez mil léguas e atravessei uma amplidão de mares, exilando-me de minha terra natal, só para observar uma nuvem trágica postando-se diante do Sol no momento exato da minha observação, afastando-me do fruto de minhas dores e de minha exaustão…”

Para piorar, o céu de Manila esteve absolutamente claro naquele dia.

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De forma até que previsível, Le Gentil caiu em depressão. Quando estava para se recuperar, sofreu uma forte disenteria que lhe adiou o retorno para casa. No caminho de volta, seu navio foi pego por um furacão e naufragou numa ilha, onde o infeliz teve que aguardar pelo resgate. Retornou a Paris em outubro de 1771, após onze anos e meio de viagem – não só perdera o trânsito de Vênus, mas também todos os seus bens e a esposa, além de ter sido dado como morto.

Foi mais ou menos o que houve com “Os Seis Aleatórios” de Montmartre, tirando a parte do naufrágio, da morte e das afecções intestinais: o trânsito deu-se oficialmente por encerrado às 6h55 e não foi possível ver nada. O céu permanecia irremediavelmente nublado.

Sonolentos, “Os Seis Aleatórios” saíram dali direto para o trabalho. “Pelo menos vou ser o primeiro a chegar”, comentou Alexander, que, afinal, confessou estar satisfeito com o encontro. “Certo, não vimos o Sol, mas estávamos lá, e isso nos tornou observadores tão dignos quanto os demais. Foi divertido, e é o que conta no final”. As fotos que o analista de investimentos francês tirou da faixa dourada de Sol se tornaram uma visão do trânsito de Vênus, à nossa maneira.

Um novo encontro foi marcado para Montmartre, naquela mesma colina, em dezembro de 2117. 


Extras

  1. raphael disse:

    Analisando as fotos, fico feliz que o rapaz de moletom se entrosou bem.