Blog da Companhia das Letras
2 de outubro de 2012
por Vanessa Barbara
Desde que saí de casa, ano passado, tive de lidar com uma redução considerável no espaço útil para a biblioteca (ver “A questão das estantes”). Confrontada com um dilema espacial e com a questão da rinite alérgica, decidi tomar uma decisão drástica e levar comigo apenas os livros que se enquadrassem em uma de três categorias:
- Livros que ainda não li e pretendo ler. Atenção: exige-se honestidade.
- Livros que ajudei a fazer, seja traduzindo, preparando, fornecendo pitacos de natureza diversa ou escrevendo aparatos editoriais.
- Livros impossíveis de se desfazer.
A maioria dos títulos nas categorias 2 e 3 foi friamente encaixotada e alocada na lavanderia. São seis caixas transparentes divididas por ordem alfabética de sobrenome do autor — de Abramo a Eliachar, de Fitzgerald a Hustvedt, de Joyce a Orwell, de Passos a Quino, de Ramos a Yeats.
Na estante com portas de vidro da foto acima ficaram apenas os livros que pretendo ler (ou reler) num futuro próximo. Estes permanecem à mão e à vista durante todo o dia, o que também me ajuda a manter boas perspectivas de vida e facilita o buliçoso processo de escolher o próximo livro para ler.
Quando acontece uma coisa muito ruim ou inesperada em nossas vidas — por exemplo, ser demitido de um emprego de vinte anos por comparecer repetidamente ao trabalho com cheiro de verdura cozida, ou morte de tartaruga, ou perder todo o dinheiro para um chefe da máfia —, enfim, quando somos desestruturados por algum incidente, todos deviam selecionar os livros (e pessoas) que gostariam de manter à vista. Só merecem tal honraria aqueles que trouxerem alguma boa expectativa, como os romances clássicos que a gente nunca conseguiu ler ou os lançamentos de não ficção com histórias curiosíssimas sobre caçadores de lulas. Livros que não nos façam recordar o passado e carreguem, em si, a possibilidade de gerar lembranças novas em folha.
Uma das coisas que aprendi de um ano pra cá (além de dançar o charleston) é que, com o tempo, podemos percorrer as mesmas ruas e frequentar os mesmos parques sem que isso necessariamente nos traga memórias difíceis. A cada passagem por uma esquina, vamos agregando novas sensações e preenchendo a calçada com outras experiências.
Assim também podemos, de início, ocupar os dias com livros estranhos, romances por vezes desinteressantes ou lamentáveis até que não seja mais preciso fazer esforço para prestar atenção. Um dia você apanha da sua estante de vidro um livro incrível de reportagens ou um volume de contos com as obras completas do Bruno Schulz e se vê absorto numa vida diferente, melhor ou pior, mas envolvente.
Daí para, quem sabe, conseguir ler O grande Gatsby e enxergar outras coisas no capítulo final, ou mesmo visitar Long Island sem sentir nada além de vontade de dançar o charleston com um chapéu engraçado, daí pra frente é um pulo.
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Vanessa Barbara nasceu em 1982, é jornalista e escritora. Publicou O livro amarelo do terminal (Cosac Naify, 2008, Prêmio Jabuti de Reportagem), O verão do Chibo (Alfaguara, 2008, em parceria com Emilio Fraia) e o infantil Endrigo, o escavador de umbigo (Ed. 34, 2011). É tradutora e preparadora da Companhia das Letras, cronista da Folha de S.Paulo e colaboradora da revista piauí. Ela contribui para o blog com uma coluna mensal.
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