Blog da Companhia das Letras
21 de janeiro de 2013
por Vanessa Barbara
Todo mundo tem suas fases literárias. Nos últimos tempos, passei por uma época só de histórias policiais, outra de romances longos demais, uma de livros psiquiatricamente relacionados, outra de não ficção e uma dedicada ao Ian McEwan. Até que fui cair, sabe-se lá como, na fase do luto. Mais especificamente: relatos de viúvos.
O prelúdio foi Luto e melancolia, de Sigmund Freud, e Sobre a morte e o morrer, de Elisabeth Kübler-Ross, que já citei por aqui. Depois vieram os livros autobiográficos, especialmente prolíficos na última década, com a descrição de longos casamentos que se romperam após a morte de um dos cônjuges. É a chamada “literatura do luto”.
São textos doloridos, pesados, carregados de memória e perda. Há uma beleza crua na tentativa de retratar o que significou aquele relacionamento, indo e voltando no tempo, repensando as memórias de acordo com o vazio do presente. São livros geralmente redigidos em poucos meses, no ano posterior à morte do cônjuge, verdadeiras tentativas de exercer o que Kübler-Ross descreve como uma etapa essencial ao processo de luto: contar sua história vezes sem conta, em detalhes. “É preciso desabafar. O luto deve ser testemunhado a fim de ser curado.”
O primeiro ano sozinho contém muitos pontos críticos — a escritora Joan Didion pensava com frequência no que o casal estava fazendo naquele dia no ano anterior, até que a morte completou 366 dias e ela só conseguia pensar que àquela hora, no ano anterior, o marido já estava morto. É preciso aprender, por exemplo, a voltar para uma casa silenciosa e a dormir sozinho numa cama grande. Aprender a evitar o que Joyce Carol Oates chama de “ralos emocionais” — lugares carregados de memória.
Os livros listados a seguir são tentativas públicas de compreender a perda, desafiando uma sociedade na qual se espera que os viúvos sofram em silêncio, na qual ser “forte” é a norma. É como se os autores procurassem ceder ao luto a fim de poder lidar com ele. Muitos são, a um só tempo, tristes e belos, pesados e esperançosos. (Vamos esperar que a minha próxima fase seja mais animada, talvez alguma coisa com viajantes no tempo e animais falantes.)
– O ano do pensamento mágico, de Joan Didion (Nova Fronteira, 2006): Neste clássico da literatura do luto, a jornalista americana aborda o período que sucedeu à morte súbita de seu marido, o roteirista de cinema John Gregory Dunne. Ele sofreu uma parada cardíaca no apartamento do casal, enquanto esperava o jantar. Da noite para o dia, Didion se vê obrigada a lidar com a perda de seu companheiro nos últimos 40 anos enquanto se dedica a cuidar da filha única, Quintana, gravemente hospitalizada por conta de uma pneumonia.
A autora fala de suas reações irracionais ao lidar com a morte, uma espécie de desarranjo mental provocado pela dor do luto: recusou-se a doar os sapatos do marido porque pensou que, quando John “voltasse”, iria precisar deles. Usou a mesma lógica ao recusar-se a doar seus órgãos, que lhe seriam igualmente necessários. Chegou a imaginar se a morte também teria ocorrido em Los Angeles, onde o fuso horário era diferente e ainda não havia chegado a hora. Embora externamente se comportasse bem e parecesse forte, que é afinal o que se espera de uma viúva — que não demonstre sua dor —, Didion era dominada pelo pensamento de que a morte do marido era reversível. Cedendo a essas emoções, ela se lança a um relato pormenorizado dos dias que precederam e sucederam o fato, tentando expurgá-los e compreendê-los. “John estava falando, aí então não estava mais”, conta.
Ela também incorpora pesquisas médicas sobre a doença do marido e lê tudo o que pode sobre luto. “Em tempos difíceis, aprendi a ler, estudar e destrinchar as coisas. Informação é controle. Considerando-se que o luto é uma das emoções humanas mais universais, sua literatura me pareceu notavelmente esparsa.”
Algumas edições deste livro terminam com excertos de Noites azuis (Nova Fronteira, 2011), em que Didion fala da morte da filha, ocorrida um ano e meio depois.
– Carta a D.: História de um amor, de André Gorz (CosacNaify, 2008, escrito em 2006):Curto relato autobiográfico do filósofo francês André Gorz sobre seu relacionamento de quase 60 anos com Dorine Keir, vítima de um erro médico que lhe provocou uma doença crônica e dolorosa. Um dos mais tristes da lista, não só por seu desfecho, mas pelo teor arrependido de Gorz, que afirma ter sido injusto com Dorine.
“Preciso reconstituir a história do nosso amor para apreender todo o seu significado. Ela foi o que permitiu que nos tornássemos o que somos; um pelo outro, um para o outro. Eu lhe escrevo para entender o que vivi, o que vivemos juntos.”
– Sobre Alice, de Calvin Trillin (Globo, 2007): Leve e curto, este livro de 93 páginas é uma homenagem do escritor da revista New Yorker à esposa Alice, com quem foi casado durante 36 anos e que morreu após complicações de um longo tratamento de câncer de pulmão. A esposa era tema constante de suas crônicas, e é assim que ele conduz este livro: como uma grande crônica de sua vida em comum.
Conta como ambos se conheceram numa festa de uma revista decadente, que existia “apenas para que todo mundo se casasse, projeto que exigiu festas cada vez maiores”. Lembra que Alice era sua principal e melhor leitora, a pessoa que ele queria impressionar. “Escrevi este livro para Alice. Na verdade, escrevi tudo para Alice.” “Educadora, escritora e musa” (conforme o obituário do New York Times), mãe de duas meninas, com grande sede de viver e cuidar das pessoas, era ela quem lhe explicava palavras como “heurística” e o enredo de filmes estrangeiros que acabaram de ver. Possuía uma teoria louca sobre impostos e a Lei de Fluxo de Caixa Compensatório, segundo a qual todo valor não gasto com luxos pelos quais você não pode pagar equivale a um lucro inesperado.
Nas palavras da amiga Nora Ephron, Alice passava o tempo todo cuidando dos outros — essas pessoas sob sua proteção eram “qualquer um que ela amasse, ou de quem gostasse, ou conhecesse, ou conhecesse alguém que conhecesse, ou que nunca tivesse visto antes na vida, mas tivesse ficado conhecendo depois que a pessoa achou o telefone na lista e ligou”.
O livro não é pesado e fala sobre a vida de Alice, não sobre sua morte. É um dos mais alegres desta lista.
– A widow’s story, de Joyce Carol Oates (Ecco, 2011): Após um casamento de “47 anos e 25 dias”, a escritora Joyce Carol Oates perdeu o marido, o editor Raymond Smith, devido a complicações cardíacas decorrentes de uma pneumonia. Absolutamente devastada, ela decide escrever este livro de 432 páginas e 86 capítulos sobre a internação, os dias que antecederam a perda e o que veio depois.
Ela fala do instante em que instintivamente se descobre, a partir das evidências mais irrelevantes, que algo está errado. Repisa infinitas vezes esse momento, o primeiro de uma série de eventos que culminarão na maior tragédia de sua vida. Descreve seu processo de luto — demorado e aparentemente interminável — como um chão repleto de serragem áspera por onde você precisa andar. “Pense em espelhos manchados em banheiros públicos. Pense em porta-toalhas quebrados quando não há nada em que enxugar as mãos exceto toalhas usadas e encharcadas.”
Em sua solidão, ela compara os viúvos a paraplégicos observando os outros dançarem, não com inveja, mas com uma espécie de descrença. Por vezes, é autodepreciativa e diz coisas como: “Agorafobia! Fiquei pensando: isso é algo que eu também devia tentar.” Ou: “Se alguém te pergunta: Como vai?, não se deve responder: Cada vez mais suicida. E você?”
J.C.O., a escritora de mais de 57 romances e novelas, deu lugar a Joyce Smith, a viúva. Até que, um dia, enquanto limpava os armários, encontrou um par de brincos que perdera. “Perdi o significado de viver e o amor de minha vida, mas ainda posso encontrar pequenos tesouros no lixo”. Há dois anos ela secasou novamente, desta vez com um neurocientista sem nada em comum com o meio literário.
– A grief observed, de C. S. Lewis (1960): É a resposta literária de C. S. Lewis à morte da esposa, Joy Davidman, que sofria de um câncer até então em remissão. Para o escritor britânico, o luto é como estar levemente bêbado. “Há uma espécie de lençol invisível entre o mundo e eu”, descreve. Ele mantém um diário nos meses seguintes à morte da mulher e descreve singelamente sua indignação religiosa e raiva de Deus, admitindo o quanto a perda abalou sua fé: justamente quando ele precisava de ajuda, sentiu a porta bater em sua cara, e um som de tranca e dupla tranca lá dentro. Porém, “aos poucos passei a sentir que a porta não estava mais fechada e aferrolhada. Será que foi minha necessidade frenética que a fechou na minha cara? Quando nada há em sua alma exceto um grito de socorro, talvez seja o exato momento em que Deus não o pode atender: você é como o homem que se afoga e que não pode ser ajudado por tanto se debater.”
Para o escritor, parte da tristeza é a própria sombra da tristeza, pois o enlutado não só sofre como não consegue parar de pensar no fato de que está sofrendo. “Não só vivo cada interminável dia em aflição, mas vivo cada dia pensando em viver cada dia em aflição. Será que estas anotações apenas agravam o processo?”, pergunta. Mas logo conclui: “Ao escrever, procuro me distanciar do ocorrido.”
Similar ao suspense ou à espera, o luto dá à vida uma sensação permanentemente provisória. É impossível ficar tranquilo. Até então, o viúvo tem pouco tempo; a partir dali, não há nada senão tempo. Um tempo quase que puro, uma sucessão vazia de eventos.
Por fim, o autor parece aceitar a perda e chega a redefinir sua fé e amor de forma positiva, argumentando que o luto extremado o mantinha distante da esposa. “Apenas nos momentos em que me sinto menos aflito é que ela surge em minha mente em sua realidade total”, conclui.
– The Best Day the Worst Day: Life with Jane Kenyon, de Donald Hall (Mariner, 2006):Neste livro, o poeta Donald Hall alterna memórias de seu casamento de 23 anos a relatos da leucemia da esposa, a também poeta Jane Kenyon. Pouco fala de seu luto, concentrando-se apenas nas lembranças.
Ambos passaram décadas vivendo e trabalhando juntos, isolados numa fazenda no interior com seus gatos e cachorros. Jogavam pingue-pongue diariamente, liam em voz alta um para o outro e ouviam música. De vez em quando, viajavam e organizavam leituras conjuntas em universidades. Jane sofria de depressão crônica e transtorno bipolar — escreveu um poema sobre o assunto, “Having it out with melancholy” — e Donald lidava diligentemente com suas recaídas periódicas. Poucos anos antes da doença da esposa, ele mesmo teve um câncer de cólon e quase morreu.
Jane era dezenove anos mais jovem que o marido. Quando acabara de completar 47 anos, foi diagnosticada com uma leucemia de um tipo raro e geneticamente recorrente. No intervalo de quinze meses, passou por dolorosas sessões intensivas de quimioterapia, sofreu um transplante de medula óssea e estava se recuperando aos poucos quando a leucemia reincidiu. Não havia mais nada a fazer.
Nesse período, a mãe de Donald e a mãe de Jane faleceram (a primeira de insuficiência cardíaca, a segunda de um fulminante câncer de pulmão, poucos meses antes da filha). Após os exames confirmarem o retorno da leucemia, Jane parou de tomar remédios e morreu num intervalo de onze dias — usou esse período para planejar o próprio funeral, escrever seu obituário e revisar um derradeiro livro de poemas. Passou as últimas noites conversando com Donald sobre as coisas mais importantes da vida: as tardes de verão no lago, as partidas de pingue-pongue, as leituras de Henry James em voz alta, as excursões de carro a Connecticut enquanto ouviam audiobooks de T. S. Eliot e Geoffrey Hill, e as duas décadas escrevendo poesia juntos.
– Say her name, de Francisco Goldman (Grove Press, 2011): O livro mais bonito da lista é também o mais recente: fala sobre Aura Estrada, jovem escritora mexicana que se casou com o jornalista Francisco Goldman e faleceu poucos anos depois, após ser atingida por uma onda na praia. O livro de memórias de Goldman conta histórias divertidas, destrincha o passado da esposa, interroga seus parentes e dá uma perfeita noção da personagem, de modo que, ao final do livro, conhecemos Aura em profundidade. Como um bom jornalista, Goldman estuda sobre ondas e vento e tenta entender como o acidente pôde ocorrer.
O livro começa com um poema de Frank O’Hara: “I wouldn’t want to be faster/ or greener than now if you were with me O you/ Were the best of all my days”. Diz que a solidão do enlutado é impenetrável pois a sociedade parece incapaz de acomodar tamanha dor. Conta que não consegue mais viajar. “O mundo, não só Paris, é idiota e odioso demais para se percorrer sozinho.”
Há trechos curiosos e bastante representativos daquilo que Joan Didion descreve como o desarranjo mental do viúvo. “No assento à minha frente sentou um garoto vestido de Homem-Aranha, viajando com os pais. Eu devia me vestir assim, pensei. Talvez amanhã eu me vista assim. Por um instante, me pareceu tão plausível e até razoável que amanhã eu pudesse me vestir de Homem-Aranha que fiquei com um pouco de medo.”
Além disso, Goldman vai elucidando pequenos mistérios ao longo da narrativa, como, por exemplo, o motivo da separação dos pais de Aura. É um livro que desliza facilmente, feito um romance de ficção.
“O choque abriu uma ferida em mim e uma espécie de buraco em minha cabeça, as memórias começaram a jorrar como se fossem sangue. Ao mesmo tempo, sentia a necessidade de investigar tudo o que havia ao redor dela, para capturá-la e, ao mesmo tempo, deixá-la partir.”
Vanessa Barbara nasceu em 1982, é jornalista e escritora. É autora da graphic novel A máquina de Goldberg (Quadrinhos na Cia., 2012, em parceria com Fido Nesti), O livro amarelo do terminal (Cosac Naify, 2008, Prêmio Jabuti de Reportagem), O verão do Chibo(Alfaguara, 2008, em parceria com Emilio Fraia) e do infantil Endrigo, o escavador de umbigo (Ed. 34, 2011). É tradutora e preparadora da Companhia das Letras, cronista daFolha de S.Paulo e colaboradora da revista piauí. Ela contribui para o blog com uma coluna mensal.
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