Blog da Companhia das Letras
18 de março de 2013
por Vanessa Barbara
Foi minha mãe quem me ensinou a ler. Não só as palavras, as sílabas e os adjuntos adnominais, que aprendi fazendo a lição de casa do meu folgado irmão (provavelmente em troca de um amendoim que ele pegou do chão), mas a lidar com os livros e a tratá-los com carinho.
Quando eu era pequena, ela abria volumes enormes de capa dura, com ilustrações de ciclopes e sereias, e lia em voz alta os mais antiquados contos de fada. Desses que continham afogamento de bebês, decepamento de membros e pássaros arrancando os olhos de princesas.
Às vezes lia o que tivesse em mãos no momento: me lembro de um volume com capa de papelão sobre arqueologia bíblica que passamos semanas desvendando. E a série de aventuras de dom Camillo, do escritor italiano Giovanni Guareschi, que ela contava com voz macia imitando gestos e entonações, enquanto descobria ela mesma a trama ao virar as páginas.
Decifrava histórias infantis, gibis e romances adultos usando o mesmo ritual: sentada na cabeceira da cama, esticava as pernas, abria o livro no colo, limpava a garganta e começava. Percorria os parágrafos com os dedos. Às vezes se detinha numa passagem, correndo rapidamente os olhos, e por fim repetia os gestos do personagem: “Ele limpou o ombro esquerdo disfarçadamente, depois o direito com a escovinha, então coçou a testa e tocou a barriga. Entendeu? Fez o sinal da cruz sem ninguém perceber”.
Mais tarde, contou que às vezes mudava as histórias. Preocupada com alguma passagem forte demais para uma menina altamente impressionável, a revisionista de plantão abrandava diálogos, amolecia vilões e promovia o distanciamento brechtiano das tramas mais assustadoras. “É só um moço fantasiado de monstro”, ela ponderava. Os contos de fada dos irmãos Grimm, por exemplo, ganhavam novo final. Na história do menino teimoso, em vez de fazê-lo adoecer, morrer e sair com a mãozinha pra fora da cova, o que, convenhamos, é francamente grotesco, a narradora inventava algo sobre um tatu-bola amigável e um final feliz. Não sei como ela fazia com Olhinho, Doisolhinhos e Trêsolhinhos, trigêmeas briguentas que realmente possuíam a quantidade de globos oculares que apregoavam, mas sei que Cachinhos Dourados devia pedir “por favor” para tomar a sopa dos ursos e o Lobo Mau revelava ter escondido a vovozinha debaixo da cama.
Conforme fui crescendo, o revisionismo protecionista perdeu a força e passei a ler por conta própria histórias sangrentas da Agatha Christie ou do Stephen King, gerando pesadelos óbvios.
Ainda assim, qualquer livro que minha mãe estivesse lendo e julgasse interessante continuava a ser contemplado com leituras de trechos, ou mesmo um resumo do enredo. Passei eu também a destacar cenas que me chamavam a atenção, apontando com o dedo e as repetindo em voz alta. Aprendi a abrir o livro no colo com reverência, virar as páginas e alisá-las como se estivesse preparando o texto para um evento de gala.
Hoje em dia, meu sobrinho de 3 anos pede que a avó lhe conte histórias de livros infantis, gibis e catálogos de lojas. Vê-se que ela não perdeu o jeito: continua exímia adaptadora de enredos conforme a idade e o grau de atenção da criança, resumindo, reinterpretando e trazendo para perto da realidade as tramas mais aleatórias. A movimentada aventura urbana que inventou a partir de um folheto de supermercado já é lendária entre as crianças locais. Continua imitando as vozes dos personagens e, tal qual um empresário do entretenimento, faz sondagens periódicas da reação da audiência, que pode se ressentir de uma trama sem cachorros de chapéu e ir embora, decepcionada. (O que já aconteceu.)
O público anda cada vez mais exigente.