As coisas que restam

Postado em: 27th março 2013 por Vanessa Barbara em Blog da Cia. das Letras, Crônicas
Tags: ,

Blog da Companhia das Letras
27 de março de 2013

por Vanessa Barbara

Untitled

 

Aprender uma coreografia nova de sapateado que envolva pausas dramáticas e movimentos excêntricos com o calcanhar; passar a noite comendo sequilhos; ir ao cinema ver o mesmo filme pela quinta vez só para decorar as falas da voz em off; pesquisar sobre rastros de lesmas e recitar as informações obtidas para um desconhecido numa festa barulhenta; andar na rua como se fosse um enviado secreto do governo da Rússia, um pirata ou um viajante no tempo.

Às vezes perdemos coisas importantes na vida e um conjunto de lápis de cor é o que nos resta; a decisão de pintar as janelas; de nos concentrarmos em campeonatos de mímica; de bater coisas no liquidificador e olhar debaixo da cama só para ver se tem gente. Pessoas vão embora e, na partilha extrajudicial, ficamos com os restos.

O que geralmente nos resta é cantar músicas com os olhos fechados, chacoalhando a cabeça feito um Ray Charles; comprar o próprio peso em palavras cruzadas; praticar o pingue-pongue com estranhos num domingo à tarde e competir como se a vida dependesse disso. Resta é cuidar das plantas, cultivar tomates e manter na sala uma bola gigante de plástico; passar a noite no telhado examinando o céu e aguardando impacientemente a explosão da Eta Carinae; arrumar as gavetas; jogar fora coisas importantes; contar piadas ruins e aprender uma língua morta.

São coisas que nos salvam quando nada mais parece existir: ler um romance russo numa única madrugada e se afeiçoar ao mocinho; consertar um relógio de ponteiros; escrever uma carta; fingir que acabou a luz. Levar um tombo de bicicleta e se ralar inteiro; conversar com estátuas; convidar alguém para tomar chá com sucrilhos.

Resta girar muito rápido enquanto se dança e perder o equilíbrio; espirrar e perder o equilíbrio; dar risada e perder o equilíbrio; viver tropeçando; ter uma crise de soluços. Repetir o swing out até ficar com enjoo; fazer a segunda voz das músicas; fingir que a vida é um musical da Broadway e conversar com o taxista cantando; tomar sol com as tartarugas; vestir uma roupa excêntrica; atualizar as vacinas; correr para pegar o ônibus.

São coisas que nos restam: o vazio, a raiva e a tristeza, mas também os chinelos de pano, as pessoas que tocam tuba, as luzes coloridas, o sorvete de manga e os velhinhos ao sol. Restam-nos as noites de rockabilly, as crianças vestidas de Batman, as piscinas aquecidas, os amigos de infância e o centro histórico de Macau − isso sem falar numa barraca de rua que só vende pijamas de flanela.

Restam, enfim, o amarelo, o azul e o umami, os filmes tolos dos anos 40, as Olimpíadas, o vento, o suco de maçã. Amigos que gostam de mágica, astronomia, pôquer, carpintaria, triatlo, futebol americano e que estão sempre para operar o joelho. As lojas de R$1,99, os jardins, os telescópios e as viagens com escala em Dubai. Sair para comprar couve. Escolher um novo abajur.

O que, veja bem, não é pouco.

  1. Gabriela disse:

    Essa crônica me emocionou muito. Cada substantivo, perfeitamente, no seu lugar. Uma bela homenagem. Parabéns!

  2. Rogério Rezende disse:

    Texto maravilhoso.

    Que coisas nos salvam quando nada mais parece existir…

    Colocaria Dido. As músicas dela, todas.

    Ouve esta, com olhos fechados

    https://www.youtube.com/watch?v=xn32EDxPfSc

    Abraço.