Eu não entendo

Postado em: 22nd julho 2013 por Vanessa Barbara em Crônicas, Folha de S. Paulo, Revista

Folha de S.Paulo – revista sãopaulo
21 de julho de 2013

por Vanessa Barbara

Até pouco tempo atrás, passando pelo túnel Rebouças, no sentido da Consolação, lia-se uma frase escrita no muro: “Eu não entendo”.

Irmão grafiteiro, seja você quem for, fica aí um recado: eu também não. Há anos não tenho compreendido coisa alguma, fora uma ou outra lei da física e a certeza de que o 177-H vai demorar pra passar.

Não entendo, por exemplo, por que existem 198 salões de beleza para cada cinema na cidade; por que há mais pet shops do que padarias; mais agências bancárias do que postos de saúde; por que a piscina do Pacaembu fecha às 16h45, inclusive no verão; por que os novos abrigos de ônibus não protegem contra a chuva, não têm assentos suficientes e nem quadros de informações sobre as linhas –ou seja, só servem de suporte publicitário.

Não entendo por que justo na avenida Higienópolis há um iate clube.

Não entendo uma menina andando na rua com uma toalha enrolada na cabeça; assim como não entendo por que sempre falta cloridrato de sertralina nos postos da farmácia Dose Certa.

Ilustração Catarina Bessel

 

Difícil compreender por que os serralheiros do Mandaqui muitas vezes chegam para trabalhar com soluço e sabem falar frases em sueco; por que o sindicato dos jornalistas, na República, me lembra uma mistura de repartição contábil com um consultório de dentista da década de 1970, repleto de funcionários destacados só para repor os copinhos de plástico.

Misteriosos também são os desígnios das mulheres que vão de carro até a academia; do metrô que não chega dentro da USP; das férias de 75 dias dos vereadores da Câmara.

Não dá pra compreender como ainda não despoluíram o Tietê e o Pinheiros; nem por que só um em cada dez orelhões costuma funcionar.

Escapam-me por completo as motivações de um certo passageiro de ônibus, um jovem oriental que sacou um cubo mágico da mochila e pôs-se a resolvê-lo numa velocidade incrível, sabendo realmente o que fazia, e dali a dez minutos concluiu a empreitada, levantou-se de um salto e desceu no ponto seguinte.

Não saberia dizer se ele teve um timing e um senso de oportunidade incríveis, desses que só acontecem uma vez na vida, ou se a ideia era descer exatamente quando tudo estivesse terminado; sei que o restante dos passageiros soltou um suspiro coletivo de admiração, louvando o espetacular (e modesto) prodígio do terminal Princesa Isabel.

Não entendo por que é tão divertido avistar um conhecido num lugar inesperado –outro dia vi o meu irmão subindo a rua do colégio Salesiano e quase me arremessei para fora da janela do ônibus, acenando animadamente. (Ele fingiu que não me viu.)

Não entendo por que na vida tudo passa, menos o 177-H.

  1. J. Custer disse:

    Vi você na sexta no metrô. Entrei na Brigadeiro e você desceu na Trianon-MASP. Algum tempo depois, como faço todos os dias de segunda a sexta, peguei o 177-H (ele não passou, estava no ponto inicial) mas não a vi. Não entendo por que …

  2. Re disse:

    Não tenho nada contra interação social, mas, em todo caso,
    ao ler o seu texto “Eu não entendo”, adoto a mesma metododologia.

    Antes de terminar as últimas linhas, eu me senti “desculpada”
    pela introspecção (quase) sociológica ou (pseudo) antropológica com que me
    ocupo com os fragmentos do dia a dia. Ao almoçar em um Bovinos com colegas de
    trabalho, só consigo ver um grupo de nove senhorinhas (etnicamente distintas) e
    um único rapaz que tinha intimidade fraternal com todas; no metrô, parado no
    meio do túnel, não consigo tirar os olhos de um homem impaciente que conta sua recém
    saída da cadeia (imaginando uma cena do Tim Robbins); no ônibus, quase perco o
    ponto diante de um rapaz surdo/mudo que explica gestualmente a sua admiração
    pela beleza do rosto de uma menina (e me desculpei pela minha inveja “gospel”);
    e, na calçada, com nó na garganta, vejo
    um vira-lata mancando, sendo repelido como se fosse a causa de algum problema.

    Em todas essas cenas, mentalizo possíveis antecedentes,
    continuidades, decepções e injustiças, mas evito lógicas. Não passo incólume, a
    minha clara percepção ou predileção sobre o cotidiano acabam rendendo severas
    observações a respeito do meu pragmatismo zero e do meu (escasso) senso de
    praticidade, perante questões realmente “importantes”. Foi terapêutico ler o
    seu texto hoje, senti-me acolhida diante de tantas significações cotidianas…

  3. Re disse:

    Não frequento seções que exibem considerações e críticas dos
    leitores de jornais, revistas, blogs e, da primeira e única vez que me
    aventurei a mandar um e-mail para um colunista, transpirei medo e vergonha,
    torcendo para que, talvez, ele não tivesse tempo de abrir e-mails e, assim,
    eu poderia justificar a sua indiferença
    e resguardar meu orgulho.

    Não tenho nada contra interação social, mas, em todo caso,
    ao ler o seu texto “Eu não entendo”, adoto a mesma metododologia.

    Antes de terminar as últimas linhas, eu me senti “desculpada”
    pela introspecção (quase) sociológica ou (pseudo) antropológica com que me
    ocupo com os fragmentos do dia a dia. Ao almoçar em um Bovinos com colegas de
    trabalho, só consigo ver um grupo de nove senhorinhas (etnicamente distintas) e
    um único rapaz que tinha intimidade fraternal com todas; no metrô, parado no
    meio do túnel, não consigo tirar os olhos de um homem impaciente que conta sua recém
    saída da cadeia (imaginando uma cena do Tim Robbins); no ônibus, quase perco o
    ponto diante de um rapaz surdo/mudo que explica gestualmente a sua admiração
    pela beleza do rosto de uma menina (e me desculpei pela minha inveja “gospel”);
    e, na calçada, com nó na garganta, vejo
    um vira-lata mancando, sendo repelido como se fosse a causa de algum problema.

    Em todas essas cenas, mentalizo possíveis antecedentes,
    continuidades, decepções e injustiças, mas evito lógicas. Não passo incólume, a
    minha clara percepção ou predileção sobre o cotidiano acabam rendendo severas
    observações a respeito do meu pragmatismo zero e do meu (escasso) senso de
    praticidade, perante questões realmente “importantes”. Foi terapêutico ler o
    seu texto hoje, senti-me acolhida diante de tantas significações cotidianas