Revista Harper’s Bazaar
Agosto de 2013
por Vanessa Barbara
Tenho acompanhado com rigor e método a cobertura das manifestações populares pelo Facebook, como um interessado em finanças que abre o The Wall Street Journal todos os dias no café da manhã.
Meus correspondentes preferidos são um amigo que é analista de marketing e mora a duas quadras do Palácio Guanabara, no Rio de Janeiro, e outro que é detentor de uma janela privilegiada na Haddock Lobo, na Consolação, em São Paulo, bem onde a Tropa de Choque costuma confraternizar com os manifestantes.
O primeiro é dado a coberturas em tempo real e funciona como uma agência de notícias que repassa as informações dos colegas. O segundo é mais opinativo, tem novidades em primeira mão e vive rimando “polícia” com “delícia”. Jornalista de formação e pai de uma menina, ele admitiu que “o Brasil acordou. Mas pediu só mais cinco minutinhos, deitado no berço esplêndido”.
(Contrariando as expectativas, ele chegou até a colaborar com o comando da Polícia Militar dando informações sobre o trajeto da manifestação. “Para ajudá-lo, vazamos o seguinte mapa que circula dentro do movimento: nele percebemos que os vândalos sairão do Leste Europeu em 330 d.C., atravessarão a Europa, cruzando com os hunos e os visigodos, e chegarão à África em 419 d.C., de onde partirão para saquear Roma, em 455 d.C”, informou.)
Ágil e polifônica, a cobertura das manifestações pelas mídias sociais tem algo de quixotesco. Além de divulgar os protestos oficiais do Movimento Passe Livre, o Facebook serviu para propagar dois grandes eventos no mês passado: a Manifestação Contra a Copa de 1954, que ocorreu numa tarde de sábado, e a Levitação do Palácio dos Bandeirantes, no dia 18 de junho, organizada por um amigo que é cientista político.
“Em 1967, cidadãos pró-paz nos Estados Unidos tentaram levitar o Pentágono, que tomava decisões desastradas e assassinas na Guerra do Vietnã. Em 2013, me parece razoável tentar levitar o Palácio dos Bandeirantes, onde trabalha o governador do estado de São Paulo”, explicou.
Em plena Copa das Confederações, também foi anunciado um novo direcionamento para os protestos: “Acabo de criar o Movimento Passe Certo”, decidiu um jornalista na minha timeline. “Não vamos sair das ruas enquanto Hulk e Daniel Alves seguirem na Seleção”.
Na rede foi possível aprontar-se para os confrontos escolhendo a indumentária adequada (casaco impermeável, tênis) e os acessórios essenciais para se proteger das bombas de gás e spray de pimenta: óculos de natação, máscara de soldador, snorkel e cilindro de oxigênio. “Tem que ver o que é permitido além do vinagre”, alertou um programador de computadores. “Acho que chá de boldo e molho shoyu foram vetados.”
Meu vizinho da frente, que é policial militar, também contribuiu com sua visão dos acontecimentos. Os amigos cariocas, mineiros, gaúchos e baianos me mantiveram informada sobre o andamento dos protestos pelo Brasil, enquanto meus conterrâneos alertavam sobre os trajetos, localização da polícia, presos e feridos – tanto quanto o 3G permitia.
FORMAÇÃO DE QUADRILHA
A Revolta da Salada foi o assunto que dominou as madrugadas juninas. Após muito debate, chegou-se à conclusão de que a “cebola será a próxima”. Primeiro caiu o tomate (muito caro), depois o vinagre (muito revolucionário), então logicamente a próxima vítima do vinagrete seria a cebola. “Que tem múltiplas camadas, como a sociedade”, filosofou um analista de sistemas.
Alguns jovens se organizaram pelo Facebook e, de chapéu de palha e trajes caipiras, compareceram aos atos portando uma faixa: “Formação de quadrilha”.
Os slogans mais compartilhados foram: “O povo/ Unido/ É gente pra caralho” e “Dilma, que vergonha/ A tarifa está mais cara que a maconha”, além do instrutivo: “Eu já falei/ Vou repetir/ Eu já falei, vou repetir”.
Os portadores de cartazes também ganharam inspiração adicional com os comentários no Twitter. “Eu tô tão puto que fiz um cartaz” foi o mais popular, seguido de perto por “3,20 só se for open bar” e “Pelo direito de ficar parado”.
Um dos trocadilhos mais infames foi cometido na legenda de uma foto: “Tropa de nhoque vai de encontro às massas”. Também gostei da imagem de um flautista mambembe entretendo as forças policiais, da foto antiga de um protesto contra o aumento na tarifa do bonde e do vídeo de um jovem dançando uma canção dos Bee Gees diante dos “poliça”.
Em Belo Horizonte, correram boatos de que o governo pretendia mandar a Marinha para conter os manifestantes, pois tinha “um mar de gente se aproximando”.
Na tarde dos protestos de 13 de junho, a imagem mais repassada era de uma enquete promovida pelo apresentador José Luiz Datena, na qual ele perguntava: “Você é a favor de protesto com baderna?”. A turma do “sim” ganhou por 2351 votos a 998.
O personagem mais comentado foi um rapaz enorme, careca e com o rosto pintado de branco, que ficou encarando um grupo de anarquistas durante o ato na Avenida Paulista e quase apanhou. Questionado por um repórter, disse, em voz baixa, ser um estudante de psicologia fazendo uma experiência comportamental.
Já meu post preferido foi o de uma moça que, na passeata, encontrou uma amiga que não via há anos e com quem fez aulas de kung fu. “Ao avistá-la, corri em sua direção e fingi que ia dar-lhe uma bicuda na cara”, contou. “Ainda gritei: ‘iááááááá!’. Mas não era ela.”
OS NINJAS TOMAM AS RUAS
Foi através das redes sociais que fiquei sabendo da Pós TV (www.postv.org), emissora livre que faz frente aos veículos tradicionais utilizando a tecnologia do streaming (transmissão simultânea de vídeo pela internet). De celular em punho, os jornalistas da Mídia Ninja (Narrativas Independentes, Mídia e Ação) cobriram as manifestações ao vivo, conversando com populares, fugindo da polícia e andando até 10 km sem parar. Num dos links (http://twitcasting.tv/ninja2rj), há uma caixa de comentários através da qual os espectadores podem opinar e fazer perguntas.
No dia 11 de julho, os ninjas acompanharam a greve em mais de 20 cidades, com uma audiência de aproximadamente 20 mil pessoas por link. Os últimos protestos no Rio de Janeiro contaram com três ninjas gravando em pontos diferentes.
Madrugada adentro, o correspondente da TV Globo em Nova York, Jorge Pontual, chegou a tuitar: “Se a bateria do Ninja não morrer, eu não durmo esta noite”.
O coletivo foi criado para atender à demanda por um novo tipo de jornalismo, com uma lógica múltipla que agregasse referências distintas e um contato com acontecimentos mais próximos do indivíduo. “Há uma crise dos intermediários, sejam os partidos ou a própria mídia”, afirmou um dos fundadores em entrevista para o jornal Meio&Mensagem. “A rede e a rua se fundiram”, concluiu.
É curioso perceber que debates tão importantes como a crise na representatividade democrática e o modelo de transporte público que queremos adotar nas cidades tenham sido suscitados por comentários muitas vezes despretensiosos e apartes irônicos nas mídias sociais, ganhando as ruas e desembocando no que o historiador britânico T. J. Clark chamou de “momento político extraordinário” do país. No fim das contas, o celular e as redes sociais podem até propiciar uma gestão flexível da nova política, aumentando em muito a potencialidade da democracia direta.
No Facebook, há poucas semanas, meu amigo com camarote na rua Haddock Lobo se queixou da volta súbita das postagens cotidianas em sua timeline. “Já vi até gente falando do frio em São Paulo. Tudo normal de novo. Seguem fotos das férias em família”, informa, um tanto decepcionado.