International New York Times
20 de fevereiro de 2014
por Vanessa Barbara
SÃO PAULO, Brazil – No Brasil, a polícia mata em média cinco pessoas por dia. Em 2012, de acordo com o relatório do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 1.890 pessoas foram mortas pela polícia, 351 em São Paulo. Isso representa 20% de todos os homicídios na cidade. Ao mesmo tempo, 11 policiais foram mortos em serviço e aproximadamente 100 foram executados em horário de folga, provavelmente a mando do crime organizado. Os policiais brasileiros têm três vezes mais chances de serem assassinados do que o cidadão comum.
Uma vez reclamei de como é difícil ser escritor no Brasil, mas parece que nossos policiais estão em uma situação bem mais delicada. Em São Paulo, soldados da PM ganham um salário mensal de R$ 3.023,29, incluindo benefícios e adicional de insalubridade. Trabalham em turnos de doze horas, começando por um período diurno (por exemplo: das 5h45 às 18h), seguido por uma folga de 24 horas, um plantão noturno (17h45 às 6h), e por fim uma folga de 48 horas. Isso resulta numa média de 42 horas de trabalho por semana.
Mas só em teoria. Os policiais reclamam que as regras são por vezes ignoradas, com muitas horas extras, mudanças bruscas na escala e pausas irregulares (ou inexistentes) para almoço. Alguns assumem trabalhos adicionais para cobrir as despesas, não só como seguranças privados (o que é ilegal), mas também num programa chamado “Atividade Delegada”, através do qual a prefeitura contrata policiais em seu tempo livre, oferecendo R$ 156 por um período de oito horas extras patrulhando as ruas.
Há dois tipos principais de polícia no Brasil. A civil se concentra na investigação de crimes, enquanto a militar tem o dever de manter a ordem pública e trabalhar na prevenção de crimes.
A polícia militar não faz parte do Exército, mas opera de acordo com princípios militares de hierarquia e disciplina. Eles não têm direito a fazer greve e formar sindicato, e estão sujeitos a um código penal de aspecto militar (isso quer dizer que transgressões no trabalho podem ser tratadas como motim ou traição, e são julgadas por um tribunal específico). Os policiais não estão autorizados a “publicar, divulgar ou contribuir para a divulgação irrestrita de fatos e documentos que possam concorrer para o desprestígio da Polícia Militar, ferir a hierarquia ou a disciplina”.
Também não podem desconsiderar ou desrespeitar, em público ou pela imprensa, os atos ou decisões das autoridades civis ou dos órgãos dos Poderes Executivo, Legislativo, Judiciário, e estão impedidos de expressar suas opiniões políticas. Ano passado, oito policiais do Ceará foram exonerados por participar de uma reunião. Outros três foram presos ao retornar de um debate público sobre a desmilitarização da polícia.
Como se não bastasse, o mesmo relatório do Fórum Brasileiro de Segurança Pública revelou que 70% dos brasileiros não confiavam na polícia. Em outras palavras, a instituição perdeu a legitimidade.
“Eu amo o meu trabalho, de verdade”, um soldado me confessou recentemente. “Mas o reconhecimento é zero. Nossos erros são esmiuçados. Temos frações de segundo para tomar a decisão de acelerar ou brecar, atirar ou recuar; em ambos os casos somos criticados.”
Outro tenente reclamou de que a mídia dá mais atenção para os casos de brutalidade do que para a morte de policiais. Ele lembrou que os policiais são muitas vezes os únicos agentes do Estado presentes nos subúrbios dominados pelo crime organizado. Às vezes se sentem acuados por todos os lados: imprensa, comandantes, políticos, juízes e cidadãos. “Tudo fica nas nossas costas.”
Mas a principal reclamação é a impunidade criminal. Muitos acreditam que o poder judiciário brasileiro é leniente e ineficaz. Os policiais estão cansados de prender os mesmos suspeitos dia após dia.
De acordo com Adilson Paes de Souza, tenente-coronel aposentado que conduziu um estudo sobre a brutalidade policial, o resultado é que alguns policiais podem decidir virar justiceiros. A mesma conclusão foi obtida num estudo sobre as práticas policiais no Rio e em São Paulo promovido pela organização de direitos humanos Human Rights Watch: segundo o relatório, muitas mortes de cidadãos que “resistiram à prisão” foram, na realidade, execuções extrajudiciais. Além disso, alguns policiais fazem parte de esquadrões de extermínio, “responsáveis por centenas de assassinatos todos os anos”.
Isso incorre, muitas vezes, num ciclo vicioso de vingança entre a polícia e o crime organizado. Mês passado, em Campinas, um policial foi morto na frente da esposa, durante um assalto; em poucas horas, doze pessoas foram executadas – aparentemente como vingança. Às vezes há casos de corrupção e envolvimento da própria polícia no crime organizado.
“Somos um dos países mais violentos do mundo, e a polícia faz parte desse conjunto descontrolado”, declarou o coronel da PM aposentado José Vicente da Silva Filho, em entrevista para a TV Folha. “Então é difícil ter uma polícia tão melhor do que nós temos”.
Em São Paulo, muitos atribuem uma queda recente nas mortes cometidas por policiais a uma lei que proíbe os agentes de transportar suspeitos feridos para o hospital e prestar serviços de primeiros socorros. Ao que parece, os policiais aproveitavam para transportar os suspeitos que eles mesmos feriram e então executá-los a caminho do hospital. Cinco meses atrás, um jovem supostamente cometeu suicídio dentro de uma viatura, após ter sido preso por roubo. Se isso é verdade, ele de algum modo conseguiu atirar na própria cabeça enquanto estava com as mãos algemadas nas costas.
Há dois anos, o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas recomendou que o Brasil extinguisse sua polícia militar; outros grupos internacionais criticaram a corporação por espancar e torturar cidadãos sob sua custódia. Mas a discussão permanece polarizada. As organizações de direitos humanos são muitas vezes vistas como apologistas do crime: “Alguns acreditam que investigar e punir abusos policiais enfraqueceria o braço da lei, fortalecendo os criminosos”, declarou o Human Rights Watch.
Hoje em dia, porém, mais e mais brasileiros estão prestando atenção no assunto, conforme a brutalidade policial é dirigida contra jornalistas e manifestantes políticos (muitos da classe média), em vez de atingir os pobres e negros de sempre.
Como participante assídua das manifestações que tomaram o país desde junho, testemunhei inúmeros atos de violência desnecessária contra manifestantes desarmados. Nesse período, um estudante e um fotojornalista profissional ficaram cegos de um olho após serem atingidos por bombas de efeito moral e balas de borracha. Três semanas atrás, a polícia deu dois tiros num rapaz que estava protestando contra a realização da Copa do Mundo. Ele teria ameaçado um policial com um estilete.
Nos protestos, muitos policiais trabalham sem tarjetas de identificação e inibem os jornalistas de filmarem e fotografarem. É recomendável aproximar-se deles com as mãos para o alto, falando de modo calmo e reconfortante. Numa pesquisa recente promovida pela Fundação Getúlio Vargas, 64% dos policiais confessaram estar despreparados para agir em manifestações.
Hoje, com a Copa do Mundo se aproximando e mais manifestações a caminho, há grande discussão sobre a desmilitarização da polícia. Isso poderia garantir mais direitos trabalhistas aos nossos profissionais, libertando-os de um código militar de conduta e disciplina que muitas vezes pressupõe um treinamento humilhante e marcado pela mentalidade de guerra. Também significaria conferir ao sistema comum de justiça a autoridade para julgar os crimes cometidos pelos policiais.
Isso pode ser uma importante tomada de distância do período da ditadura militar e um passo adiante rumo à criação de uma força policial legítima em que os policiais possam lidar com os civis não como seus inimigos, mas como cidadãos iguais a eles – ainda que tenham infringido a lei.
Este texto foi publicado em inglês no International New York Times do dia 20 de fevereiro de 2014. Tradução da autora.