The New York Times
22 de março de 2014
por Vanessa Barbara
SÃO PAULO, Brasil — AMERICANOS são predadores. Invadem outros países, aproveitam-se das populações locais e exploram seus recursos. São tipicamente vorazes, oportunistas e altamente adaptáveis. Dizem que são sujos; podem tolerar a vida em áreas poluídas e por vezes carregam doenças às quais os nativos não têm imunidade. Agora mesmo estão causando um grave dano ecológico ao mundo.
Estamos falando obviamente dos tigres d’água americanos, ou orelhas vermelhas – tartarugas semiaquáticas originárias do sul dos Estados Unidos. Nas últimas décadas, esses animais (Trachemys scripta elegans) espalharam-se ao redor do globo, incentivando alguns biólogos a apelidá-los de ratazanas do mundo réptil (o que é praticamente um insulto). Essas tartarugas são listadas pela União Internacional de Conservação da Natureza (IUCN) como uma das cem maiores espécies invasoras do mundo. Hoje são encontradas em todos os continentes, exceto na Antártida, em mais de 70 países e ilhas, e no meu remoto bairro paulistano.
(Há cinco delas vivendo ilegalmente no meu quarteirão. A minha favorita é a doce Tartaruga Moisés; por motivos que logo ficarão óbvios, a identidade de seus donos permanecerá anônima.)
A importação de orelhas vermelhas é proibida no Brasil, na União Europeia e por toda parte. Na Austrália, quem tem o animal em casa está sujeito a multa de até US$ 110 mil ou cinco anos de prisão.
O problema remonta ao fim dos anos 50 e começo dos anos 60, quando criadores americanos passaram a vender as tartarugas da espécie. Elas são bastante atraentes como animais de estimação: os filhotes são criaturas muito verdes do tamanho de moedinhas, com faixas vermelhas perto dos olhos. São fofas, espertas e fáceis de manejar. Contudo, dobram de tamanho no período de um ano, atingindo até 30 centímetros de diâmetro (o tamanho de uma folha de papel A4). E podem viver por 40 anos.
Em inglês, são chamadas de “sliders” (escorregadias) por causa da avidez com que mergulham do alto de pedras e troncos em direção à água quando alguém se aproxima. A parafernália obrigatória do proprietário inclui um aquário grande (mais de 100 litros) com uma área seca, um termostato, um filtro potente (tartarugas fazem uma sujeira atroz e a água tem de ser trocada parcialmente toda semana), dois tipos de lâmpadas ultravioleta e muitos pacotes de ração. É muito mais trabalhoso do que a maioria dos compradores imaginava, e por isso os animais são abandonados na natureza.
Em 1975, a FDA americana proibiu a venda de tartarugas pequenas (com menos de 10 centímetros de casco) no país, numa tentativa de evitar a contaminação por salmonela em crianças. Tartarugas de todos os tamanhos podem carregar a bactéria, mas filhotes são mais populares no mercado de animais de estimação. Como resultado, as vendas domésticas caíram e os criadores mudaram de foco para o mercado estrangeiro.
As vendas dispararam no fim dos anos 80, após o lançamento do desenho animado “Tartarugas Ninja”, cujas protagonistas são quatro orelhas vermelhas corajosas e comedoras de pizza. De 1989 a 1997, mais de 52 milhões de indivíduos foram exportados dos Estados Unidos para o mercado estrangeiro. Quando atingem a idade adulta, as tartarugas são às vezes abandonadas em lagos e rios próximos, introduzindo a espécie em outros ecossistemas.
Hoje os australianos podem ser considerados os maiores predadores das orelhas vermelhas. “Elas são tão resistentes quanto botas velhas”, disse Scott O’Keeffe, especialista em biossegurança, a um jornal local. “Podem viver em águas de péssima qualidade e comem praticamente de tudo.” O Departamento de Agricultura e Alimentação do país empreende uma feroz campanha de erradicação daquelas que a mídia chama de “imigrantes ilegais”, “ameaças”, “impostoras” e “pestes”. A política oficial é matar todas as que forem encontradas.
Anos atrás, um jornal celebrou a captura de uma tartaruga na véspera de Natal: “Tendo logrado escapar das autoridades desde que foi contrabandeada para a Austrália, a ‘grande e exótica’ criminosa foi capturada por uma dona de casa de Melbourne e será sacrificada.” Naquela altura, o governo já tinha passado cinco anos montando armadilhas para esse indivíduo específico, e chegara a contratar um especialista para ajudar a enquadrá-la. “É provável que exista outra tartaruga de orelhas vermelhas, menor, no lago Blackburn”, alertou o artigo. (Eu diria que “slider” é um nome apropriado para foragidas tão notórias.)
As orelhas vermelhas são consideradas pestes ambientais fora de seu habitat natural porque competem com as tartarugas nativas por comida, parceiros, áreas de postura de ovos e lugares ao sol. São muito mais espertas e agressivas que as demais espécies, como o tigre d’água brasileiro (Trachemys dorbignyi).
Aqui no Brasil, os donos de tartarugas ilegais estão sujeitos a multa de 500 reais e até um ano de cadeia, mas é possível entregá-las sem ônus. Em teoria, os quelônios proscritos são transferidos para zoológicos ou criadouros credenciados pelo Ibama, embora todos saibam que esses locais estão lotados – não há mais vagas para americanas. De acordo com um biólogo do Ibama, a eutanásia não é a prática oficial por aqui, mas, do ponto de vista ambiental, é preferível o animal ser abatido do que causar desequilíbrio a todo um ecossistema. “Em matéria de equilíbrio ecológico, o indivíduo não tem importância”, afirmou.
Mesmo na maior parte dos Estados Unidos é proibida a comercialização de orelhas vermelhas e, em vários estados, a eutanásia é a regra. O procedimento padrão para sacrificar tartarugas, de acordo com a Associação Veterinária Americana, é bem atroz: primeiro o animal é sedado, depois decapitado. Então, na sequência, é preciso destruir seu cérebro ainda ativo, pois as tartarugas americanas são animais obstinados, teimosos e difíceis de morrer.
Corra, Tartaruga Moisés, corra. E arrume uma assessoria de imprensa mais decente.
Este texto foi publicado em inglês no New York Times do dia 22 de março de 2014. Tradução da autora.