O Brasil está cansado de tomar bronca (tradução)

Postado em: 27th maio 2014 por Vanessa Barbara em Traduções
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(Flavio Morais)

(Flavio Morais)

The International New York Times
27 de maio de 2014

por Vanessa Barbara

SÃO PAULO, Brasil – A essa altura, o Brasil devia provavelmente estar de castigo para a vida toda, sem videogame ou sobremesa.

No mês passado, o vice-presidente do COI (Comitê Olímpico Internacional), John Coates, disse que os preparativos do Rio de Janeiro para os Jogos Olímpicos de 2016 eram os piores que ele já viu.

Antes disso, Sepp Blatter, presidente da Federação Internacional de Futebol (FIFA), afirmou que o Brasil estava mais atrasado nas providências para a Copa do Mundo do que qualquer outro país-sede que ele já vira, ainda que tivesse tido sete anos inteiros para se preparar. Então, em março, o secretário-geral da FIFA, Jérôme Valcke, declarou que corríamos o risco de ser os “piores organizadores” do “pior evento”. Ele já havia dito anteriormente que o Brasil precisava de um “pontapé na bunda”.

Olha, isso foi cruel. Os brasileiros, tratados historicamente como crianças obedientes dentro do cenário mundial, sempre se submeteram à sabedoria superior das autoridades estrangeiras. Cinquenta anos atrás, depois que o presidente João Goulart foi deposto por um golpe militar de direita, a presença norte-americana no nosso cenário político era tão ostensiva que um humorista lançou uma campanha falsa para o embaixador dos Estados Unidos: “Chega de intermediários – Lincoln Gordon para presidente!”.

Mais tarde, nos anos 80 e 90, aderimos sem reclamar aos programas de austeridade e reestruturação da dívida impostos pelo Fundo Monetário Internacional – ainda que eles implicassem a violação da nossa soberania nacional e o sofrimento dos mais pobres. Nem chegamos a reclamar quando a Rihanna veio para um show e supostamente pediu que todos os objetos amarelos fossem removidos de seu camarim; nem quando a Lady Gaga exigiu seis lhamas em seu hotel. Até mexemos o café da Jennifer Lopez em sentido anti-horário, conforme solicitado.

Somos reconhecidos como uma nação tolerante que cede alegremente parte de seus direitos de exploração nos campos de petróleo para empresas estrangeiras. Somos amigáveis, condescendentes e cordiais. Gostamos de agradar.

Mas há uma sensação crescente de que a FIFA e o COI estão indo longe demais no papel de pais exigentes.

Tentamos nos comportar para a Mãe FIFA, sobretudo na frente das visitas. Quando ela quis que servíssemos cerveja dentro dos estádios, nós alteramos nossas leis para permiti-lo. Quando ela pediu isenções fiscais para si mesma e para seus prestadores de serviço, nós consentimos. Quando exigiu que pedíssemos sua permissão para promover eventos tradicionais de rua, como as festas juninas, durante o período da Copa, nós concordamos.

Até agora gastamos R$ 25,6 bilhões para agradá-la, 85% do total vindo dos cofres públicos, por meio de investimentos municipais e governamentais, financiamentos federais e isenções de impostos. Despejamos muitos cidadãos de suas casas para construir estádios e infraestrutura relacionada, e criamos zonas estritas de segurança no entorno das arenas oficiais. Nós reprimimos de forma diligente aqueles que protestaram contra o megaevento, jogando gás lacrimogêneo em manifestantes desarmados e tentando acusá-los de terrorismo. Procuramos até nos convencer de que a Copa irá trazer enormes benefícios para a economia local, apesar de tantas evidências em contrário. Ainda assim, a FIFA nunca parece estar satisfeita.

Não adianta reclamar para o Comitê Olímpico Internacional, já que este assumiu o papel de pai nesse drama familiar. Ele também reprova tudo o que fazemos: reclamou dos atrasos nas construções, criticou a poluição dos lagos e rios da capital fluminense, e disse que estamos piores do que a Grécia às vésperas nos Jogos Olímpicos de 2004. “Sua irmã mais velha tirou notas melhores”, foi o que o ouvimos dizer.

É como se ambos esperassem um pianista clássico virtuoso quando tudo o que conseguiram foi um amante do punk rock que só conhece músicas de três acordes. Bem, se quisessem pontualidade, deviam ter escolhido os alemães ou suíços. Nós, brasileiros, somos ligeiramente diferentes.

No mês passado, Mário Gobbi, presidente do Corinthians (que é proprietário do Itaquerão, um dos estádios da Copa), afirmou que os atrasos são parte da nossa cultura. “Não conheço nenhuma reforma e nenhuma construção que sejam entregues no prazo”, disse, em entrevista.

Vou dar um exemplo para ajudar o sr. Gobbi: o sistema de metrô de Salvador, capital da Bahia, está sendo construído desde 1997. O governo já gastou mais de R$ 1 bilhão para 6,5 km de trilhos, que começarão a funcionar no dia 11 de junho, véspera da abertura da Copa. (Dois anos atrás, o Tribunal de Contas da União levantou suspeitas de R$ 400 milhões em superfaturamento e desvio de verbas. As acusações ainda estão sendo investigadas. O Ministério Público também denunciou empresários por associação criminosa, formação de cartel e fraudes na licitação.)

Outro exemplo: 22 anos atrás, ajudei num abaixo-assinado pela despoluição do rio Tietê, em São Paulo. Hoje, após US$ 1,6 bilhão em investimentos e 1,2 milhões de assinaturas, ele ainda fede.

Para abrir uma empresa no Brasil é preciso vencer treze procedimentos burocráticos – obtenção de alvarás, preenchimento de formulários e outros – que demoram um total de 107,5 dias úteis, de acordo com um estudo recente do Banco Mundial. Alvarás de construção levam 400 dias para ser emitidos, e é necessário aguardar 58 dias só para ativar a eletricidade.

Certa vez, um homem na Bahia teve de esperar quatro anos para agendar um teste diagnóstico chamado urofluxometria num hospital público.

De modo que a FIFA e o COI podem ralhar o quanto quiserem: só iremos terminar tudo no último minuto. E quando isso finalmente ocorrer, haverá estouro de orçamento e mesmo uma porção de acidentes de trabalho. Como alertou o sr. Gobbi, numa declaração nonsense em que celebrava o fim da construção do Itaquerão: “Entre mortos e feridos, todos se salvaram”.

Desta vez, faremos do nosso jeito. Não adianta nos colocar de castigo. Tampouco adianta chamar o Tio Sam; ele não quer mais ter nada a ver com essa família maluca.


Este texto foi publicado em inglês no The International New York Times do dia 27 de maio de 2014. Tradução da autora.

  1. marcos disse:

    te amo