Não vai ter clima

Postado em: 13th junho 2014 por Vanessa Barbara em Crônicas, Folha de S. Paulo
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Folha de S.Paulo – Folha na Copa
13 de junho de 2014

por Vanessa Barbara

Hoje, pela primeira vez em seis meses, deixei meus amigos na rua e fui ao estádio. Pela primeira vez, abri mão de cobrir os protestos contra o gasto excessivo de dinheiro público num evento privado, contra as remoções violentas, a repressão, os desmandos da FIFA, e fui sem meu capacete para o lado de lá – o lado de quem não apanha, o de quem tem sempre passagem livre e mais direitos do que estou acostumada a ver.

Torci moderadamente, me arrepiei na hora do hino e pedi pênalti quando alguém caiu um pouco longe da área, quase na marca central do campo. Posso ter questionado, em voz alta, a reputação ilibada do árbitro, e até envolvido a senhora mãe dele em alguma atividade de cunho duvidoso na área do entretenimento íntimo.

Mas não houve jeito: algo em mim morreu da última Copa pra cá.

Talvez porque, há sete anos, tenham nos prometido um evento “sem um centavo de dinheiro público”, e hoje o resultado é 85% do orçamento saído do erário. Talvez por causa da isenção de impostos oferecida cordialmente pelo governo à FIFA, que afinal é uma entidade sem fins lucrativos, quase filantrópica.

Talvez por ter visto a resposta oficial das autoridades a cidadãos que protestavam pacificamente, talvez por haver inalado uma quantidade excessiva de gás lacrimogêneo enquanto exercia o meu direito básico de discordar; enfim, talvez foi por isso que torci hoje com o ânimo de quem está gripado, os ombros caídos, o pensamento lá longe.

De manhã, enquanto eu comia canapés e papeava despreocupadamente com executivos de empresas, 50 dos meus amigos ficaram feridos num protesto que não pôde sequer começar, uma manifestação legítima que se uniu aos metroviários recém-demitidos e contou com a participação de um povo do contra que insiste em sair na rua para apanhar.

Sei que dei uma risada alta e com gosto quando, no início do jogo, falou-se em “um aperto de mão pela paz”, e quando três pombas foram soltas em nome da “tolerância e respeito aos direitos humanos”.

As aves alçaram voo, mas ficaram se debatendo nas paredes do estádio e dentro dos camarotes, procurando saída, a um só tempo desesperadas e cegas.

Temi pelo destino e pela integridade física daquelas três pombas, porque todos nós sabemos o tratamento dado a quem se desvia da rota ou não está mais nos planos oficiais.

Felizmente, desta vez a artilharia antiterrorista não precisou ser acionada. 

  1. Rogério disse:

    Bom texto minha vizinha do bairro do Mandaqui. É sempre assim: os “domesticados”, os “detentores” tem privilégios nesse país…quem não é da “classe” sofre violência do Estado literalmente ou simbolicamente.
    Abraço!