Jornal Svenska Dagbladet
11 de junho de 2014
por Vanessa Barbara
Sete anos atrás, quando o Brasil foi escolhido para sediar a Copa do Mundo FIFA 2014, o ministro do Esporte Orlando Silva prometeu que “nenhum centavo de dinheiro público” seria gasto na construção ou na reforma dos estádios. Segundo ele, tudo viria da iniciativa privada.
Hoje, quase 97% dos investimentos nos doze estádios veio do dinheiro dos contribuintes. E isso incluindo as três arenas privadas.
A Copa do Mundo irá custar 25,5 bilhões de reais ao Brasil, dos quais 85,5% de recursos públicos, sejam de financiamento federal ou dos orçamentos municipal ou estadual. Isso sem contar o montante de 1,1 bilhão de reais em isenções fiscais concedidas pelo governo federal à FIFA e suas parceiras.
Oito anos atrás, na Alemanha, as instalações esportivas custaram 2,2 bilhões de dólares (4,8 bilhões de reais), mas os clubes e os investidores privados financiaram 60% do total. Mais tarde, na África do Sul, a construção e reforma dos estádios alcançou um montante de 2,7 bilhões de dólares (5,9 bilhões de reais), a maior parte de fontes públicas. O que o país africano gastou para sediar o evento chegou próximo a 25% do seu orçamento anual de educação, um patamar que veremos ser superado no Brasil, onde o total de recursos será igual a 27% do orçamento federal de educação. (Na conta não entram os orçamentos municipais e estaduais.)
A rigor, um terço do orçamento total foi investido em projetos de infraestrutura, como soluções de mobilidade urbana para as cidades-sede. Em São Paulo, de acordo com a última Matriz de Responsabilidades – publicada pelo governo federal em novembro do ano passado –, 548 milhões de reais foram utilizados para promover intervenções viárias no entorno do estádio. E só. Nada foi investido no nosso sistema metroviário superlotado ou em corredores de ônibus. O antigo projeto de um monotrilho ligando o aeroporto ao metrô foi abandonado devido à lentidão das obras e sucessivos adiamentos.
Ano passado, catorze projetos de mobilidade urbana foram cortados do orçamento da Copa, a maioria deles monotrilhos, VLTs (veículo leve sobre trilhos) e corredores de ônibus. Para a cidade de Manaus, por exemplo, não houve nenhum investimento nessa área. Os projetos remanescentes se restringem aos arredores dos estádios – em outras palavras, o importante agora é garantir o acesso às arenas, não melhorar a mobilidade urbana em geral.
E assim se foi um terço dos 25,5 bilhões de reais. Dos recursos restantes, 30% foi alocado para melhoria dos aeroportos e 7% para segurança (como dito antes, 30% foi empregado nos estádios). Os investimentos privados se concentraram nos aeroportos, enquanto os governos locais ficaram totalmente responsáveis pelos setores de telecomunicações (182 milhões de dólares) e segurança (860 milhões de dólares). Nos últimos anos, o orçamento oficial foi constantemente atualizado e continuou crescendo, a ponto de um consultor alemão afirmar a uma revista britânica que “dinheiro claramente não é um problema no Brasil. Eu não sei de onde eles tiram, mas estão gastando uma quantidade incrível na Copa do Mundo.”
E ainda assim, a maior parte do trabalho está longe de ser concluída.
Nosso estádio mais caro, o Mané Garrincha, localizado em Brasília, custou 1,4 bilhão de reais. Foi inteiramente construído usando o dinheiro dos contribuintes do Distrito Federal, a um custo de 22.644,96 reais por assento.
Menos de oito meses após a inauguração, o teto apresentou goteiras. Trabalhadores foram vistos enxugando o chão durante uma partida oficial da Copa das Confederações. Recentemente, o Tribunal de Contas do Distrito Federal encontrou evidências de 337 milhões em superfaturamento, que ainda estão sendo investigadas. A auditoria revelou inúmeras irregularidades na construção do estádio, como compras inadequadas de material, erros graves nos cálculos do custos de frete, além de dispensas em multas por atraso nas entregas e um prazo perdido no requerimento de isenção de impostos.
Da mesma forma, o projeto para um sistema de VLT em Brasília foi cortado em função de irregularidades no processo de licitação. (Suspeita-se que houve transferência de recursos entre os dois principais competidores na disputa.)
E não é só isso: ano passado, após um escândalo público, o governo de Brasília teve de cancelar a licitação para a compra de 17 mil capas de chuva, que seriam distribuídas à polícia – o custo total era de 5,35 milhões de reais. O preço de cada capa: 315 reais. Numa manobra quase marxista (Groucho, não Karl), tentaram até mesmo convencer a população da alta qualidade do produto: “É uma capa especial, com sistema reflexivo, que permite exercer a atividade policial, correr, pular muro, tem encaixe para painel balístico”, explicaram. Ninguém engoliu. Possivelmente porque a Copa será disputada num período de seca.
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Em janeiro, o presidente da FIFA, Joseph Blatter, disse que o Brasil estava mais atrasado nos preparativos para a Copa do Mundo do que qualquer outra nação sede, mesmo tendo tido sete anos para se aprontar. Em março, o secretário-geral da FIFA Jérôme Valcke sugeriu que poderíamos ser “os piores organizadores do pior evento de todos os tempos”.
Concordo: até o momento, oito trabalhadores morreram na construção dos estádios. De acordo com a Coordenação Nacional dos Comitês Populares da Copa, ao todo 250 mil pessoas foram removidas à força de suas casas para dar espaço ao megaevento futebolístico. Esses despejos foram frequentemente marcados por violência policial e desrespeito aos direitos humanos.
Não que esperássemos algo diferente. Afinal, vivemos num país em que até as crianças sabem o significado de “fraude na licitação”, “caixa dois”, “sonegação”, “extorsão” e “corrupção”. Outro dia, meu sobrinho de quatro anos estava brincando na sala com seus bloquinhos de madeira e me perguntou o que eram “estádios superfaturados”. Juntos simulamos um colapso estrutural causado por materiais de péssima qualidade e planejamento malfeito.
Aqueles que levantam a voz contra o gasto excessivo, as remoções forçadas, a violência da polícia, a corrupção e a desigualdade não encontram muita ressonância. Ainda que os protestos tenham aumentado, o governo acena com mais repressão policial, com medo de que alguém estrague a festa bilionária. Até mesmo manifestantes pacíficos têm sido tratados como terroristas, e o governo decidiu empregar o Exército para garantir a segurança durante a Copa.
Enquanto isso, os fãs do futebol lutam para comprar seus ingressos, que são caros e disputados. Um amigo só conseguiu o seu para Coreia do Sul vs. Bélgica (o menos desejado dos jogos que acontecem em São Paulo), e os meus foram para três partidas em lugares a até mil quilômetros de distância de casa. Cada ingresso me custou em média 380 reais, o que equivale a metade do nosso salário mínimo mensal. É virtualmente impossível conseguir ingressos para as partidas do Brasil.
A meu ver, já somos os campeões do pior.
Este texto foi publicado originalmente no jornal Svenska Dagbladet, da Suécia, no dia 11 de junho de 2014. Tradução do original em inglês: Giovane Salimena.